Novo Velho Inimigo: O Antiterrorismo no Brasil e o Retorno do Discurso da Doutrina de Segurança Nacional

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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 José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho. Novo Velho Inimigo: O Antiterrorismo no Brasil e o Retorno do Discurso da Doutrina de Segurança Nacional. Londrina: Editora Thoth, 2025, 175 p.

 

                   

José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, que é Mestre em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB), se credencia para a análise que oferece neste livro, com o acumulado de um percurso acadêmico que antecede a sua titulação, e que pode ser aferido em alguns de seus ensaios anteriores, todavia, aproximativos do tema de sua dissertação.

Assim, por exemplo, o seu ensaio A suposta superação da Doutrina de Segurança Nacional pela tipificação dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, publicado em Crimes contra o Estado Democrático de Direito. Em Perspectiva, publicado em 2024, pela Editora D’Plácido, na Coleção Acesso à Justiça e Políticas Públicas, coordenada por Alberto Carvalho Amaral, Bruno Amaral Machado e Cristina Zackseski, que tembém organizam o volume no qual José Roberto traz o seu ensaio.

José Roberto foi meu aluno no curso de pós-graduação e se envolveu fortemente no processo de pesquisa que o programa acadêmico, a partir da linha que co-lidero – O Direito Achado na Rua – e que dá nome ao Grupo de Pesquisa do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

Assim que, em obra decorrente desse período – O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, ele venha a se destacar como co-organizador e autor.

Confira-se em https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/, a recensão da obra e a distinção de Em Três Décadas do Sujeito Coletivo de Direito: um Panorama Crítico, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, artigo em que ele faz um balanço crítico acerca da produção acadêmica sobre o conceito de Sujeito Coletivo de Direito. Na primeira parte do ensaio, o autor delimita um possível diálogo entre a produção d’O Direito Achado na Rua e o Humanismo Dialético com a noção de subjetividade jurídica proposta por Pachukanis; e, na segunda parte, por sua vez, observa que, no contexto político do Século XXI, a dimensão materializadora dos direitos deve ser aquela a ser mais ressaltada ao se dissertar sobre o Sujeito Coletivo de Direito.

Esse trabalho, aliás, mostra o quanto a reflexão de José Roberto se amplia com perspectivas interdisciplinares aptas a estabelecer conexões problemáticas e complexas para melhor articular os temas monográficos que recorta em abordagens mais avançadas, tal como o faz em sua dissertação.

O livro tem origem na Dissertação, Defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB, em maio de 2024, tendo como Orientador o professor Marcelo Neves e participando da Banca as professoras Camila Cardodo de Mello Prando e Cristina Zackseski, além do Professor Rogerio Dultra dos Santos.

O resumo da dissertação se presta também para sintetizar a obra publicada:

 

O estudo em mãos objetiva responder à pergunta “É possível evidenciar a influência (ou retorno) da Doutrina de Segurança Nacional na virada discursiva/conceitual de inimigo externo para inimigo interno nos Projetos de Lei brasileiros relativas ao terrorismo?”. Inicialmente, em uma delimitação conceitual, é definido o que se entende por “inimizade”, “inimigo”,“medo”,“terror”,“terrorismo ”e“ terrorista”. Diante de tal explicitação, constrói-se, nas segunda parte, tendo no terrorista um inimigo, a história da Doutrina de Segurança Nacional e seu contexto na Guerra Fria, dando ênfase à questão do inimigo interno.Em seguida, na terceira parte, inicialmente, argumenta-se tendo em vista a transição no Brasil do inimigo externo (vulgarizado na imagem do terrorista muçulmano internacional, quem arcou o advento da Lei n.13.260/2016) para o inimigo interno (a figura do terrorista esquerdista subversivo). No fim da terceira parte, é analisada a influênciada Doutrina de Segurança Nacional nos Projetos de Lei pesquisados no site da Câmara dos Deputados (a partir das palavras “Lei 13.260 ”e“ Comunismo”). O trabalho conclui que o anticomunismo presente em tais instrumentos, somado à defesa do Ocidente contra um inimigo interno (mas movido por uma conspiração internacional) que aterroriza a população e degenera a sociedade, se mostra, portanto, como uma influênciada Doutrina de Segurança Nacional na legislação brasileira. Trata-se, nesse sentido, de uma tendência minoritária, contudo, não menos significativa, dado que demonstra que o caminho adotado em tais vias para se combater o terrorismo é um marcado pela nostalgia em relação ao ideário da Ditadura Militar Brasileira.

 

O Sumário da obra, traz o campos de identificação do Autor, e as indicações de outros elementos pré-textuais, o prefácio, as referências e, sobre o seu núcleo expositivo, a composição do livro:

CAPÍTULO 1

INIMIZADE E TERROR

1.1 O Inimigo Político

1.1.1 A inimizade e a desumanização

1.2 Um breve excurso: o medo diante do inimigo

1.2.1 Medo e terror

1.3 Apóstata da História: O Terrorista roda o Mundo

1.3.1 O que é o terrorismo?

1.3.2 O terrorismo na história

1.3.3 Quem é o terrorista?

1.4 O Anticomunismo como uma canalização de inimizades

 

CAPÍTULO 2

CONSTRUINDO O VELHO INIMIGO

2.1 O anticomunismo no Brasil

2.2 A Doutrina de Segurança Nacional

 

CAPÍTULO 3

O NOVO VELHO INIMIGO

3.1O terrorismo no Brasil no período Copa-Olimpíadas: Inimigo externo

3.1.1 Uma digressão: o Brasil e o inimigo externo pós-11/09

3.1.2 Olimpíadas de 2016 e o Estado Islâmico

3.2 O terrorismo no Brasil e a onda conservadora: Inimigo interno

3.2.1 A volta dos que não foram: as práticas da DSN incorporadas na Nova República

3.2.2 O que há de novo? Em que sentido é possível um retorno?

3.2.3 O retorno do terrorista, comunista e subversivo na legislação

 

CONCLUSÃO

 

O livro, conforme a descrição da Editora, oferece uma análise aprofundada de como a imagem do terrorista evoluiu na história brasileira a partir do século XX, examinando as mudanças de percepção e a influência das doutrinas políticas e sociais na formação do conceito de terrorismo no Brasil contemporâneo. Através de uma investigação crítica, o autor revela como essas transformações refletem e impactam o cenário político e social atual.

Dessa investigação resulta, também como síntese preparada para apresentar a obra, que:

 

Ao longo do século XXI, o Brasil consolidou a imagem do terrorista como um Inimigo Externo, inspirado pela figura do terrorista muçulmano internacional que ganhou destaque após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a subsequente Guerra ao Terror dos Estados Unidos. Essa visão foi consolidada na legislação brasileira com a promulgação da Lei 13.260/2016, em resposta ao crescente temor relacionado ao Estado Islâmico e aos possíveis riscos associados às Olimpíadas do Rio de Janeiro.

No entanto, uma mudança significativa está em curso: há um esforço coordenado para reconfigurar o terrorista como um inimigo interno. Esta transformação é evidenciada por uma série de Projetos de Lei que buscam redefinir o terrorista como o comunista “subversivo” e os movimentos sociais. Os parlamentares estão adotando uma abordagem inspirada na Doutrina de Segurança Nacional da Ditadura Militar Brasileira para promover essa nova percepção e assim, reprimir projetos políticos tidos como antagônicos

 

Do que se cuida, diz Cristina Zackzeski, no Prefácio, é o dar-se conta que o trabalho de José Roberto “explora o paradoxo de que esse inimigo não tem nada de novo, pois nos textos de projetos de lei examinados observa-se o comunista requentado que sintetiza os medos compartilhados, pois dele pode se esperar tudo, a qualquer momento, e proveniente de todo lugar”.

Tive ensejo de constatar vivamente porções desse paradoxo quando participei, como convidado da chamada CPI do MST, instalada na Câmara dos Deputados em 2024, afinal melancolicamente encerrada, sem relatório, mas que enquanto movimento difundido, serviu para expor todos esses elementos que a Obra organiza.

Veja-se, a propósito, meu artigo na Coluna O Direito Achado na Rua, publicada no Jornal Brasil Popular – https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/“CPI do MST: contexto e diagnóstico da situação agrária brasileira”.

Não foi outra a minha constatação, apresentada no meu artigo, de que, “embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática, em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público, o Judiciário e até o Legislativo, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas”.

Teria sido muito proveitoso ao estudo de José Roberto incluir em seus pressupostos, perspectivas de diferenciação do direito, entre nós, tão bem aplicadas a estudos de mesma base, como o faz o Professor Cristiano Paixão, da Faculdade de Direito da UnB.

​A tese de doutorado de Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinho, intitulada “A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro de 2001 e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito”, defendida na UFMG sob orientação de Menelick de Carvalho Neto, também nosso colega professor na UnB, analisa criticamente como os Estados Unidos responderam juridicamente aos ataques de 11 de setembro e os efeitos dessa resposta sobre o constitucionalismo contemporâneo.​

Na tese Cristiano Paixão argumenta que, após os atentados de 11 de setembro, os EUA adotaram medidas que suspenderam garantias constitucionais fundamentais, como o devido processo legal e o direito à defesa. Ele destaca casos de prisões arbitrárias, onde indivíduos foram detidos por tempo indeterminado, muitas vezes sem acesso a advogados ou julgamento, e mantidos em locais como a Base de Guantánamo ou em navios-prisão, criando um “limbo jurídico”.​

A tese utiliza a teoria da diferenciação do direito para mostrar, tal como procura fazer José Roberto, como o sistema jurídico norte-americano criou uma distinção entre “amigos” e “inimigos”, aplicando diferentes normas e procedimentos legais a cada grupo. Essa diferenciação resultou na criação de um “direito de exceção”, onde os chamados inimigos eram tratados fora das normas jurídicas tradicionais.​

O professor Cristiano Paixão interpreta o terrorismo não apenas como uma ameaça à segurança, mas como uma ideologia que molda a resposta do Estado, levando-o a adotar práticas que refletem a mesma lógica de violência dos terroristas. Ele argumenta que, ao suspender a constituição e adotar medidas excepcionais, o Estado espelha a violência que busca combater, criando uma dicotomia entre o bem e o mal, o amigo e o inimigo. Essa abordagem transforma o Estado em uma “contraface do terrorismo”, operando dentro da mesma dinâmica de combate ao que considera o mal.​

A tese está disponível em repositórios mas não chegou, ao que eu saiba, a ser publicada para maior alcance editorial. Contudo, bem próximo de todos nós na UnB e nos espaços de pesquisa constituídos pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, importantes estudos desse autor podem ser consultados:

PAIXÃO, Cristiano . Terrorismo, Direitos Humanos e Saúde Mental: o caso do campo de prisioneiros de Guantánamo. In: SOUSA JR., J.G.; DELDUQUE, M.C.; OLIVEIRA, M.S.C.; COSTA, A.B.; DALLARI, S.G.. (Org.). O Direito Achado na Rua, volume 4: Introdução Crítica ao Direito à Saúde. 1ªed.Brasília: CEAD/UnB, 2008, v. 1, p. 383-395.

 

PAIXÃO, Cristiano ; NETTO, M. C. ; OLIVEIRA, M. A. C. . Direito, cinema e terrorismo. In: MAGALHÃES, Juliana N.; PIRES, Nádia; MENDES, Gabriel; CHAVES, Felipe; LIMA, Eric.. (Org.). Construindo memória: Seminários Direito e Cinema. 1ed.Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009, v. , p. 155-161

 

PAIXÃO, Cristiano . Dicotomias deslizantes: público e privado em tempos de terror. In: Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira. (Org.). O novo direito administrativo brasileiro — o público e o privado em debate. Belo Horizonte: Fórum, 2010, v. 2, p. 21-38.

 

PAIXÃO, Cristiano . Derrida e o terrorismo: uma observação a partir da distinção homem/animal. In: EYBEN, Piero; RODRIGUES, Fabrícia Walace. (Org.). Derrida, escritura e diferença: no limite ético-estético. Vinhedo: Horizonte, 2012, v. , p. 235-247.

 

PAIXÃO, Cristiano . Direito à verdade, à memória e à reparação. In: PAIXÃO, Cristiano; SOUSA JUNIOR, José Geraldo; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; FONSECA, Lívia; RAMPIN, Talita. (Org.). Direito Achado na Rua, vol. 7 — Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. 1ªed.Brasília: UnB, 2015, v. 1, p. 273-281.

 

Tem razão Cristina, voltando ao Prefácio ao aludir que “A disputa pelas definições de terrorista canaliza uma energia que poderia ser investida no fortalecimento da dimensão política para o controle dos conflitos, e sinaliza formas de pensar as relações de poder que não se prestam à superação da insegurança objetiva ou subjetiva. O medo, enfim, atravessa todas as fronteiras, inclusive as definitoriais. Ele é uma fábrica de imobilidades, mas ao mesmo tempo de inquietações e solo fértil para os discursos de ódio e para própria violência”.

E nessa franja de contribuições sutis se localiza a obra de José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, principalmente quando ela contribui para percorrer criticamente o veio legislativo onde essa disputa fica bem clara.  Conforme diz Cristina, o trabalho de José Roberto acaba tendo como finalidade “repensar a democracia brasileira, que como outras democracias, é movimento, apresenta idas e vindas, mas ainda sobrevive e excede os limites do texto constitucional, assim como o controle e suas possibilidades não se restringe ao universo punitivo”.

 

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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