Entrevista com Peter Häberle

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

Foto: Arquivo Jornal Estado de Direito

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O Jornal Estado de Direito apresenta a entrevista concedida por Peter Häberle, um dos maiores nomes do Direito Constitucional da atualidade, por intermédio do Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet (PUCRS), também responsável pela tradução das respostas, tradução realizada em parceria com a acadêmica de Direito (PUCRS) e bolsista de iniciação científica Joana C. Ripoll.

 

Carmela Grüne – O senhor poderia descrever brevemente por que razão os direitos culturais são importantes para a promoção de uma Constituição aberta?
Peter Häberle – Trabalhemos primeiramente com os conceitos. Pelo menos desde o Pacto Internacional da ONU de 1966 distinguimos entre direitos econômicos, sociais e culturais. Do ponto de vista do direito constitucional comparado, que é fundado em perspectiva científico-cultural, costumamos desdobrar os direitos culturais em grupos temáticos, quais sejam, a liberdade religiosa, a liberdade científica e a liberdade artística. Uma novidade que deve ser acrescentada são os direitos do cidadão à sua própria identidade cultural, especialmente presentes nas constituições latino-americanas. Conforme o meu ponto de vista, os três direitos culturais clássicos são os direitos primordiais do ser humano e do cidadão (o da cultura clássica propriamente dita (Hochkultur, ou Alta Cultura, em tradução mais literal), da cultura popular e das culturas alternativas: conceito aberto de cultura). Ninguém menos que Goethe as conjugou em um dito maravilhoso: “aquele que tem ciência e arte, tem religião; aquele que ambas não tem, que tenha religião”. Os chamados direitos culturais são a fonte de tudo aquilo que o desenvolvimento do Estado Constitucional ao longo do tempo nos oferece. De um lado, eles fornecem o fundamento cultural de cada Estado Constitucional, pois o Estado é, por sua vez, uma obra criativa de diversas gerações, diversos estudiosos, artistas, indivíduos e cidadãos de diversos países. Tomemos os clássicos de Aristóteles a J. Rawls, as invenções de grandes artistas cujas obras compuseram a matéria prima para o tipo Estado Constitucional, ou em grandes indivíduos e cidadãos do mundo em particular, tais como I. Kant (“Paz perpétua”, 1795, “intenção cosmopolita”), M. Gandhi (“desobediência civil”), A. Schweitzer (“veneração diante da vida”) ou, por último, N. Mandela como figura espiritual de integração para a nova África do Sul (nation building, constitution making). Quanto ao tema da constituição aberta, eu o trabalho na pergunta de número 4. Constituição “como cultura” é um paradigma geral, expressando-se, por exemplo, na tetralogia dos feriados nacionais, hinos nacionais, bandeiras e monumentos nacionais, bem como na proteção do patrimônio cultural.

 

CG – Até que ponto pode o Direito, e podem os direitos humanos em especial, ser um fator para a transformação social?
PH – Quanto mais dirigente seja a “força normativa da constituição”, no sentido de meu mestre K. Hesse (1959), tanto mais precisamos estar esclarecidos de que a força diretiva e promocional da Constituição e do Direito é limitada. A história demonstra que volta e meia há desenvolvimentos políticos, em âmbito estatal ou internacional, que fogem ao controle. Pense-se em guerras, genocídios, crimes contra a humanidade, crises financeiras globais e no Google, que se apresenta como se fosse um Estado. Diante destas situações, a força diretiva e governante da Constituição e do Direito é bastante presente, em especial nos países emergentes (tais como o Brasil ou a Índia) e nos Estados Constitucionais plenamente estabelecidos, como os encontrados na “velha Europa”. Trata-se aqui do tipo Estado Constitucional e de sua “sociedade constituída”, também sociedade civil. A meta estatal do Estado de Direito, mas também a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, bem como os direitos de participação cultural e social, constituem a sociedade. Tranformação da sociedade assim constituída somente deveria ser ousada no sentido filosófico de Sir K. Popper, isto é, na forma de seu “social piece meal engineering”. As tranformações devem, portanto, ser cautelosamente planejadas. De acordo com esta premissa, os direitos humanos são indispensáveis, haja vista que todas as inovações, todos os novos pensamentos, todas as invenções e descobertas partem hoje de seres humanos e de cidadãos imaginativos. Mesmo em âmbito da economia os direitos humanos contribuem muito. Pode-se citar a “destruição criativa” (“schöpferische Zerstörung”) de J. Schumpeter (graças às liberdades econômicas) e o “mercado como procedimento de descobertas” (“Markt als Entdeckungsverfahren”) – que, ao meu ver, soa melhor em termos de compreensão do que a noção de “procedimento do desenvolvimento (Entwicklungsverfahren)” – de F. A. V. Hayek. Evidentemente que a economia deve ser compreendida no Estado Constitucional de maneira meramente instrumental. Ela serve os direitos humanos e não tem um fim em si mesma. O objeto de todas as transformações da sociedade deve ser um ordenamento humano e uma relativa prosperidade para todos. “Cidadania através de formação”, como agora na Espanha, pertence à programática constitucional. O Estado, particularmente, mostra-se como “oficina” de novas ideias, tal qual demonstra a Suíça ou como pode ser também observado na Alemanha oriental.

 

CG – De que maneira pode o cidadão, na esfera pública, contribuir para a Democracia e o bem-estar social?
PH – Comecemos aqui também com uma delimitação mais precisa do termo que utilizaste: esfera pública deve ser entendida no Estado Constitucional como uma “tríade republicana”, isto é, nós diferenciamos os âmbitos em estatal, público e privado. Segundo uma expressão de G. Heinemann, a esfera pública é o “oxigênio da Democracia”. Algumas constituições tratam em seu texto de “liberdades públicas” (França, Espanha). Podemos, por último ainda, nos remeter a M.T. Cícero: “salus publica res populi”. O interesse público deve ser desenvolvido sobretudo por meio de procedimentos pluralistas: “salus publica ex processu” (1970). Uma palavra sobre Democracia: ela é “domínio sobre tempo”, e por essa razão a possibilidade de eleições, por exemplo, para presidente nacional é definida em dois turnos. Democracia somente pode ser concebida enquanto democracia pluralista, isto significa dizer que ela deve dar espaço a múltiplos interesses e ideias. Sobretudo, a democracia forma a consequência organizacional da dignidade humana, como tentei expor no Manual de Direito do Estado (Handbuch des Staatsrechts), em 1987. Os direitos civis ativos ou, para poder dialogar com a Suíça, os “direitos do povo”, devem ser concebidos a partir da dignidade humana. Agora, quanto ao terceiro aspecto, o do bem-estar social: No nosso entender, assim como naquele da Suíça, da dignidade humana deriva um direito fundamental ao mínimo existencial econômico. Os Tribunais alemães e o Tribunal Federal Suíço, posteriormente também algumas constituições escritas, reconheceram e implementaram este direito. O cidadão pode contribuir muito para o desenvolvimento do bem-estar social enquanto eleitor, no processo político de formação de opinião, ou também como voluntário, mesmo que possa, ainda, ser egoísta, no sentido da “mão invisível do mercado” (A. Smith). Parênteses: Possivelmente tenha a mão invisível do mercado um paralelo no texto clássico de Hegel sobre a “Astúcia da Razão”. Em tempos de crise econômica como a de hoje na Europa e nos Estados Unidos, pode ainda ser necessário impor sacrifícios e exigir renúncias dos cidadãos. Aqui é o lugar para um sistema tributário justo e para a regulação constitucional dos mercados nacionais e internacionais.

 

CG – Com vistas à Constituição aberta, como o senhor vê o ativismo social e a democracia participativa?
PH – Ocupemo-nos agora precisamente com os seus termos. A ideia da “abertura do ordem constitucional” advém de K. Hesse (1967). Eu mesmo desenvolvi o postulado da “abertura da interpretação constitucional” em 1971 e em 1975 o levei a sério no âmbito do paradigma da – freqüentemente citada no Brasil – “comunidade aberta dos intérpretes da constituição”. A abertura da constituição e de sua interpretação implica sensibilidade para novos desenvolvimentos, superação justa de problemas sociais e o entendimento da constituição como um “processo aberto” (1969). Isso é possibilitado, por exemplo, por meio da admissibilidade de votos divergentes nos processos judiciais, segundo o modelo dos Estados Unidos da América, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, do STF no Brasil e do Tribunal Constitucional Federal na Alemanha. Há exemplos convincentes de que uma minoria judicial constitucional de hoje será maioria judicial constitucional amanhã. Tribunais constitucionais, por sua vez, também podem contribuir para a abertura da constituição e de sua interpretação, por meio de um ativismo judicial. O mesmo vale para a Democracia participativa. Para mim, a “Democracia semi-direta” da Suíça constitui um modelo paradigmático e único. Em todos os planos dessa comunidade política, isto é, seja nas comunas, nos cantões ou no plano federal, encontram-se seguidamente consultas populares. Salvo exceções, tais consultas têm levado a resultados muito razoáveis, até mesmo na seara do direito tributário.

 

CG – De que modo podem ser estabelecidas e implementadas novas formas de cooperação para um mundo mais inclusivo e para o estabelecimento da constituição aberta e pluralista?
PH – Par tamos do meu conceito de “Estado Constitucional Cooperativo”, como o concebi em 1978, obra que recentemente obteve uma versão em língua portuguesa no Brasil (2007, aos cuidados de Marcos Maliska). Em função da globalização, vivemos em um mundo, com todas as suas diferenças irrenunciáveis. Nós conhecemos formas de cooperação bastante densas, como por exemplo, na União Européia, que constitui uma comunidade constitucional de um tipo peculiar, bem como formas de cooperação mais soltas, tal como a sua, do Mercosul. A globalização somente é suportável se os Estados Nacionais Constitucionais permanecerem, todavia na forma de Estados Constitucionais multiculturais (como no caso do Canadá, da Austrália e também do Brasil), e se forem alcançadas modalidades de vinculação e cooperação regionais (a noção de uma “constelação pós-nacional”, tal como proposta por J. Habermas, é aqui refutada). Sem cultura, o ser humano e o cidadão ficariam literalmente sem chão sob os seus pés. Especialmente na União Européia há várias formas de cooperação que, no fim das contas, servem à preservação de uma constituição pluralista ou das constituições parcais. Os novos membros orientais da União Europeia já importaram dos velhos países europeus e de suas constituições pluralistas muitos textos, teorias científicas e decisões judiciais (minha “tríade”), por meio de complexos processos de recepção.

 

CG – Qual é o papel social de uma constituição aberta?
PH – A “constituição aberta” deve estar disposta a solver de modo transparente conflitos sociais por meio de uma gama de procedimentos (por exemplo, também pelo “status activus processualis” ou mediante os assim chamados “Ombudsman”), seja em âmbito comunal, seja na esfera dos parlamentos. Aqui o princípio da publicidade tem um papel central. O importante é que o texto constitucional escrito não reste meramente semântico, mas que seja convertido em realidade. Pense-se no princípio do Estado Social, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, na equiparação entre crianças nascidas dentro e fora do casamento ou no reconhecimento de uniões entre indivíduos do mesmo sexo. O ponto de partida para tudo é a dignidade humana e uma proteção da vida privada mais efetiva, ambas seguidamente ameaçadas pelo desenvolvimento tecnológico (exemplos: diagnóstico pré-natal, técnicas de manipulação genética, Google Street View). A “constituição aberta” pode também criar novos institutos, como as bem-sucedidas “comissões de verdade” na África do Sul e no Peru, assim contribuindo para a paz social.

 

CG – Até que ponto os Juízes e Tribunais têm legitimidade para controlar e assegurar a efetividade de políticas sociais, culturais e econômicas que não são cumpridas por parte dos órgãos estatais? A intervenção judicial é prejudicial para uma concepção democrática de Poder Constituinte?
PH – No Estado Constitucional, a independência dos (ao fim e ao cabo democraticamente legitimados) tribunais, em especial dos tribunais constitucionais (juntamente com suas garantias conexas, tais como o devido processo legal, o contraditório, a proteção jurídica e judiciária efetiva), constitui resultado essencial e feliz de um longo desenvolvimento que se deu mediante muitos percalços e muitas ameaças. Há diversos bons exemplos para o fato de que cabe aos tribunais assegurar a efetividade de políticas sociais, culturais e econômicas. Obviamente não podem exacerbar suas competências funcionais (divisão de poderes!). Pode-se citar o exemplar desenvolvimento de “direitos fundamentais não escritos” por meio do tribunal federal suíço em Lausanne, que posteriormente foram trazidos para o texto da nova Constituição Federal de 1999 (meu paradigma dos níveis textuais – Textstufenparadigma). Pode-se pensar também em novos direitos fundamentais que o Tribunal Constitucional Alemão desenvolveu. São exemplos o direito fundamental à autodeterminação informativa e à privacidade e integridade em sistemas técnico-informativos. Há também bons exemplos para o fato de que o Tribunal Constitucional Alemão assegurou a realização de exigências constitucionais em matéria social (já na equiparação de crianças nascidas dentro e fora do casamento). Especialmente na Alemanha, infelizmente, não raro os órgãos parlamentares falham na concretização e realização da Lei Fundamental. Essas atividades judiciais não são de maneira nenhuma prejudiciais para o conceito democrático de poder constituinte. De qualquer forma, ela deve ser compreendida como um processo aberto e pluralista, no qual, “ao longo do tempo”, muitas pessoas tomam parte. Acima de tudo, em uma análise maisprecisa, pelo fato de que a atividade constituinte pouco se diferencia da interpretação constitucional. Seguidamente julgamentos do Tribunal Constitucional Alemão acabam atuando como manifestações pontuais de atividade constituinte, o que, todavia, permanece controverso na esfera da doutrina constitucional. Por outro lado, é necessária muita sensibilidade por parte dos tribunais (constitucionais), que precisam encontrar um equilíbrio entre estática e dinâmica, entre inovação e conservação. A Corte Suprema dos Estados Unidos e o Tribunal Constitucional Alemão têm sido, de modo geral, bem sucedidos neste aspecto. A nova fase do STF em Brasília, especialmente quando da Presidência do grande professor de direito constitucional, G. Mendes , dá causa a muito otimismo. Pense-se na valorização do direito processual constitucional e a inclusão do terceiro imparcial no sentido do instituto do amicus curiae. Brevemente, quanto direito dos povos, hoje a matéria mais interessante do direito público: ele se revela como “direito constitucional da humanidade”. Aqui se situam a Corte Internacional de Justiça e os Tribunais da ONU. Precisamos de uma nova escola de Salamanca! Permita-me uma conclusão própria: eu agradeço pelas perguntas propostas pelo Prof. I. Sarlet e pela Direção do Jornal Estado de Direito, que foram melhores que as minhas respostas magistralmente traduzidas. Eu desejo aos estudantes do Brasil, que eu tive a oportunidade de encontrar por duas vezes em minhas viagens ao “país do futuro”, aquele otimismo essencial da sociedade civil, necessário para uma comunidade política. A ele deve ser somada uma consciência de “pedagogia constitucional”, como àquela presente na noção dos direitos humanos como objetivo educacional, expressa na constituição da Guatemala e na antiga constituição do Peru. Também depende das atuais gerações de estudantes de direito engajados de seu país a continuação da construção do Estado Constitucional no Brasil. Não menos importante, ainda, deve-se pensar na integração política e social indígena e na preservação dos recursos naturais e culturais de seu país, o que seu admirável texto constitucional postula desde 1988.

 

* Professor titular aposentado de Direito Público e Filosofia do Direito da Universidade de Bayreuth, na República Federal da Alemanha, e, atualmente, desempenha as funções de diretor do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Européia, do mesmo centro universitário.

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