Filosofia do Martelo: santificação do riso e vias de fuga – parte II

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

*Paola Cantarini Guerra

Considerar-se-á o Direito, posto e em discussão, enquanto fonte de sentido para a vida humana, desmistificando-o como ciência e prática distantes do cotidiano, para além, portanto, da positividade e formalismo do Direito, que atualmente predominam, favorecendo o debate de ideias e uma melhor consideração de questões atuais de suma importância para uma maior compreensão do ser humano. O que se espera, de um modo geral, é colaborar para uma maior compreensão sobre a relação indissolúvel entre Direito, Filosofia, Arte, mitopoética (magia e religião) e de como tais elementos se conjugam e se relacionam entre si. Buscou-se, em suma, analisar a relação entre Direito e Arte (envolvendo também a mitopoética) e o papel desta como forma de subversão e transgressão, bem como a transgressão e a subversão quanto à metodologia, à pedagogia e à epistemologia. A relação entre o Direito, mitopoética (magia e religião) e Filosofia revela-se já na própria linguagem, na esteira do que propõe Rossenstock-Huessy (“A origem da linguagem”), com seu caráter sacramental (Johann Georg Hamann), exigindo um determinado contexto para que surja, devocional, reverente, ritualístico, mimético, por mítico-religioso. O Direito teria um conteúdo espiritual, como uma forma de Religião, assim como o capitalismo, enquanto modalidades de imaginação do real. O Direito ao se revelar e se manifestar através da linguagem, compreende em tal relação uma composição entre os aspectos jurídico, religioso e mitopoético, visto de forma indissociável das práticas mágicas, já que repleto de mitos, ritos e atos performáticos; a analogia com a Religião se revela por serem ambos fundamentados em dogmas, havendo, ainda, associada a ambos, toda uma estrutura dogmática de conhecimento, a fim de especular-se racionalmente sobre tais dogmas. Direito, magia e Religião dependem de uma sanção para confirmarem e terem eficácia seus dogmas, coibindo as ações por meio da sanção sacrificial, portanto. Sanção etimologicamente revela uma consagração, ligando-se ao sagrado e também à santificação, ao santo, como também ao sacrifício. 

A partir do reconhecimento de que “Deus está morto” e com isso a Religião, tal como se refere Roger Bastide ao mencionar o dito de Nietzsche, o qual corresponderia, por sua vez, ao dito associado a Michel Foucault sobre a morte do Homem (e do humanismo), chega-se ao pronunciamento de Heidegger, em sua célebre carta a Jean Beaufret, no sentido do despropósito e da impertinência do humanismo. Corroborando tal entendimento, Nietzsche sustenta, outrossim, que o Estado de Direito pode ser somente estado de exceção, enquanto restrição parcial da verdadeira e própria vontade de vida, pois trata-se de um ordenamento hostil a vida, um ordenamento destruidor e dissolvente do homem, uma via oblíqua verso ao nula. Destaca-se, pois, o paralelo entre política e religião, vez que a própria soberania nasce da ideia de divindade, no tocante à doutrina bíblica cristã, da criação do mundo, advindo a criação do nada (“ex nihilo, ex nulla”), e não “ex materia”, como postulavam os gregos (“caos original”). Assim como Deus partiria do nada (“nulla”) para criar o mundo, enquanto o político decide a partir do nada (“nulla), o Estado nasce da criação de um organismo artificial, de que resulta o “Deus mortal”, a que se refere Hobbes. Ao colocar em ação essa investigação somos necessariamente lançados para as profundezas do vazio existencial, a nadificação do deserto que incessantemente cresce, para aludir ao conhecido dito nietzscheano.

 

Como na “Divina Comédia” de Dante, estaríamos mais próximos do inferno do que nunca, ou, teria a política moderna se transformado em comédia, em tragicomédia, ou nos dizeres de Agamben, em “hilaro-tragédia”? Está a porta do inferno aberta novamente? Agamben, em um dos seus últimos livros “Pulcinella ovvero Divertimento per li ragazzi”, Milao: Editora Nottetempo, 2015) traz uma importante reflexão acerca da relação entre comédia, teatro e política, afirmando a necessidade de buscarmos “linhas de fuga”, “linhas de saída”, possibilitando a renovação do pensamento acerca do mundo e da nossa existência (“via d’uscita” ou “via di fuga”), onde há uma catástrofe, aí há uma linha de fuga (Entrevista publicada no jornal Pagina 99, em 21 de novembro de 2015, nas páginas 24 e 25. Trad.: Vinícius N. Honesko, http://flanagens.blogspot.it/2016/09/do-desastre-nos-salvara-vileza-de.html), onde está o perigo também pode estar a salvação. A denominação linhas de fuga talvez tenha inspiração em livro conhecido de Guatarri, no sentido de serem necessárias as vias de fuga da intensa desterritorilização generalizada, possibilitando novas subjetivações, fugas dos paradigmas científicos dominantes, de verdades absolutas e saberes inquestionáveis. A comédia, portanto sendo retratada como forma de transgressão, outra forma de cura, portanto, da doença do homem no mundo, o homem visto como a doença do mundo, em sentido similar ao que já propunha Aristóteles, e depois de Nietzsche, Deleuze, vendo as artes, a literatura, a poética, como empreendimentos de saúde, em busca de uma forma de Religião ligada necessariamente à Arte, nos dizeres de Nietzsche, que não acreditava em um Deus que não saiba dançar. Como afirma Lacan, no seminário “Momento de Concluir”, a vida não é trágica, ela é cômica, ao que também acrescenta em “Televisão”, que quanto mais somos santo, isto é, sãos, mais rimos, e assim haveria uma chance de salvação das garras do capitalismo. O humor é a prova dos nove, como proclama nosso Oswald de Andrade, no Manifesto Antropofágico, assim como também propôs a equação poética “amor = humor”. Santificado seja o riso, como propõe de forma poética e avassaladora Nietzsche, que escreve não apenas com o cérebro como ele mesmo afirma em sua obra “Nascimento da tragédia”, mas escreve com todo seu corpo e sua vida, abrindo todo um mundo de mágico encanto, continuamente em movimento e em mudança, como um caleidoscópio, nos convidando a dançar, a rir e a ver a ciência – ao que acrescentamos, também ao direito -, sob a ótica do artista. Movimento que também se relaciona à emoção, já que tal palavra deriva do latim “emovere”, designando a propriedade de “spingerci al movimento”, ou seja, “empurrar” ao movimento.

É para semelhante cura da cultura que seria necessário mobilizar a Filosofia, pondo-a no comando da ciência, da política e também da Religião, mas como dizia Marx, na célebre terceira tese contra Feuerbach, como forma de transformar o mundo ao invés de somente interpretá-lo, uma forma, portanto, de saber prático, capaz de se juntar à função transformadora das artes. A favor de uma Filosofia que admite que erra, que resulta em contradições, a Filosofia como forma de pensar “altrimenti”, outramente, como uma busca contínua da alteridade, partindo-se das análises desenvolvidas por Foucault e Deleuze. A verdadeira Filosofia que se possa dizer ser de alto nível, aquela necessária para se fazer frente a uma política de alto nível, tal qual necessitamos atualmente, nesta época onde todos os valores foram substituídos por interesses egoísticos, tem por pressuposto ser paradoxal, pois o pensamento é paradoxal, isto é, ser questionadora. O trabalho filosófico o entendemos como um trabalho, antes de tudo, sobre si mesmo (Wittgenstein). O filosófico sempre contém algo de não filosófico, abarca o dentro de si e o fora de si. A Filosofia deve se importar mais com o questionamento do que com as respostas, deve envolver a contradição, própria da dialética, que também reconhecia a necessidade da contradição, já que funciona com base na síntese entre a tese e a antítese, e deve envolver não apenas o de dentro, mas também o de fora, não apenas o negativo, mas o positivo-afirmativo.

Pela descolonização permanente do pensamento, da linguagem, da comunicação, recuperando a Ágora, a praça pública, como ponto de encontro da comunidade, logo recuperando a comunidade em si e o espaço público já privatizado e abandonado, e (re)democratizando a Filosofia e o Direito, um pouco mais POP, do povo, e menos elitista e aprisionadores nas Cátedras muitas vezes fechadas em dogmas e preconceitos. Do que se trata é de libertar-nos, e de reconhecer a diferença, o outro, e no outro nós mesmos, um projeto de emancipação e liberdade de criação, pela soberania do artista, por um Direito liberto, tal como propunha DANTE, pela interdisciplinaridade e fertilização mútua dos saberes, sem fragmentação. A favor da democratização da Filosofia e do Direito, por uma simplificação da linguagem e compreensão, de certa medida, um Direito e uma Filosofia POP, não Catedráticos, não fechados às salas de aulas, mas abertos ao mundo, do mundo, buscando-se uma des(re)construção de questões clássicas-mitológicas das Tragédias e Comédias, trazendo-as para o tempo presente.Uma abertura dos saberes, própria ao ser aberto que somos, e que visa com isso a expansão dos campos do saber, uma experiência mais profunda e verdadeira, poética, sensível, visceral, recuperando-se a ligação, na verdade indissolúvel, que existe entre Direito-Filosofia-Artes-mitopoetica (Religião/Magia), correspondendo à figura gráfica, hologramática, do POLIEDRO, desenvolvido por Willis Santiago Guerra Filho em suas pesquisas acadêmicas e de docência.

 

* Paola Cantarini. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

Comentários

  • (will not be published)