Entrevista Jair krischke: “A história da fundação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH)”

Jair: … em 31 de dezembro de 78, encerrou a vigência do AI-5, toda aquela barbaridade que o AI-5 acolhia. Então, nós já tínhamos pensado antes, de que a partir daí nós iriamos nos organizar oficialmente. Logo nos primeiros dias de janeiro, começamos a promover reuniões. Aqui no Rio Grande do Sul se diz que nos meses de janeiro e fevereiro tu não consegue reunir ninguém, né? Reunimos 30, 35 pessoas, reuniões semanais. E aí nós organizamos um seminário que chamou-se Seminário de Justiça de Direitos Humanos. Em março de 79, logo depois do AI-5. Lá no Colégio Anchieta e foi feito o seminário que ao final propusemos a criação de uma entidade, uma sociedade civil. A época não se falava ONG, era impensável. E os participantes concordaram e submetemos a um estatuto, tinha tudo pronto, tudo aprovado, elegeu-se a primeira diretoria. Dia 25 de março de 79, logo após Carmela, nós fomos fazer aquilo que é a rotina, nós fomos registrar no cartório. E chego com toda a documentação no cartório, e o titular a quem eu conhecia olhou, e muito sério disse assim: tu quer me criar problema? Não doutor J., só quero registrar uma entidade. Não, não vou registrar. Está certo, mas me negue por escrito, por favor. Tu queres me criar um problema. Conversamos, não adiantou nada. Aí eu propus a ele: doutor J., o senhor estuda devagar, dentro de uma semana, 10 dias eu passo aqui e o senhor me dá uma resposta mais pensada. De fato, passaram-se esses dias, eu volto lá, ele tinha já a negativa escrita e assinada. Por sentença judicial, o Movimento de Justiça e Direitos Humanos obteve o seu registro

Carmela: Em que data?

Jair: 80. Uma data muito significativa.

Carmela: Qual?

Jair: 11 de Agosto. Dia do advogado

Carmela: Dia do Advogado

Jair: De 1980. Não é interessante isso?

Carmela: É, com certeza.

Jair: Por quê? Porque mesmo pessoas cultas, pessoas informadas, como o titular de um cartório, que sabia que o AI-5 havia terminado sua vigência, mesmo ele não acreditava. 

Carmela: Podemos considerar esse fato um exemplo de negativa de direitos, o chamado antidireitos humanos. 

Jair: Sim

Carmela: Pela própria falta de negação ao direito de existência, de uma entidade.

Jair: Esta coisa singela, que é um registro.

Carmela: Sim

Jair: Que está previsto na lei. Nada precisava ser inventado. Era assim, continua sendo assim. Mas a negativa… e tu vê, se tu quiseres te mostro depois, está escrito lá que por sentença judicial…

Carmela: Porque isso é a prova, há quanto tempo a gente vem lutando para que se tenha garantia de protagonismo dentro da sociedade. 

Jair: Exatamente. Então assim, isto foi sempre muito difícil, esse espaço. A nossa primeira sede foi no Edifício Santa Cruz, 22º andar. E no final dos anos 70, 79, princípio de 80. Tu sabe que havia uma prática do aparelho de repressão. Eles usavam uma bombinha de mau cheiro, cheiro de ovo podre. Isso, várias vezes, em algumas votações na Assembleia Legislativa, os agentes do aparelho repressivo disparavam, ficava um mau cheiro. Nós fomos também objetos dessas bombinhas de mau cheiro. O 22º andar… nem respirava. Então isto, para nós sempre foi uma marca, ainda na ditadura, ainda na ditadura, eu estou te falando 79, 80. Mas era, digamos assim, era mais explícito. Depois com a tal de “redemocratização”, nós continuamos sendo hostilizados, mas de uma forma mais velada, não tão escancarada. E agora, nesses últimos tempos, já na campanha eleitoral do ano passado, ficou claro, pelo discurso do candidato à presidência, que o tema direitos humanos seria execrado. No Brasil não se “combate” direitos humanos com argumentos. Estas pessoas, elas os combatem de forma rasteira. Sempre com a desqualificação. E o interessante é que há uma parcela importante da sociedade civil, da opinião pública que aceita esse discurso. Tem pesquisas, Carmela, que a mim me surpreendem. Por exemplo, a pena de morte. Uma antiga pesquisa, feita em Porto Alegre, os simpatizantes da pena de morte, vivem na periferia da cidade. Os prováveis alvos da aplicação de uma pena de morte, achavam muito boa a solução. E a mesma coisa o tema direitos humanos. Há intencionalmente, no Brasil, uma desinformação e o que existe muito é uma desqualificação do valor dos direitos humanos. E isto é muito claro. Eu também reconheço que nós somos muito incompetentes no enfrentar isso. Na construção de um discurso, especialmente junto aqueles que são as vítimas das violações. Não temos sido felizes, reconheço. 

Carmela: E essa questão de como a gente vê o monopólio dos meios de comunicação, em que pese, hoje a gente tem a internet, como uma ferramenta que acaba oportunizando coisas boas e ruins. Mas ainda esse monopólio também contribui significativamente para essa alienação, para quem seriam esses direitos humanos, não é?

Jair: Sim. Eu diria assim, desse trabalho que nós realizamos, eu ando muito pela nossa América Latina, países pobres, um outro ainda mais pobre que o Brasil. Mas vejo que a questão dos direitos humanos, tem outro tratamento. Há na opinião pública um respeito aos direitos humanos. Aqui do lado, no Uruguai, na Argentina, no Chile, no Paraguai, há um respeito. E no Brasil é que há esta postura e ela foi construída. Quando tu falas em meio de comunicação, eu vou dizer assim: no Brasil começou via rádio. E eu costumava dizer Carmela, que a ditadura brasileira foi mais qualificada – e quando eu falo qualificada, de qualificado para o bem e para o mal – o que dos vizinhos, da América Latina. Ela foi muito sofisticada. Ela desenvolveu sim, muito, a chamada guerra psicológica. Militares brasileiros souberam usar isso com maestria. E o que eu vou te dizer é fruto da minha vivência, nunca parei de me debruçar em uma investigação, um pouco mais científica. A ditadura brasileira, ao perceber que nos países vizinhos o tema direitos humanos tinha uma certa importância, conquistou um espaço na opinião pública, principalmente na Argentina. E que os militares que participaram dos crimes seriam levados aos tribunais, a ditadura brasileira atirou-se. Então via programas de rádios, os programas bem populares, passou a veicular um discurso contra os direitos humanos. é muito interessante isto.

Carmela: Como eram esses programas? Como seria nos rádios? O senhor se lembra da época?

Jair: Sim. Um destes radialistas elegeu-se até senador, S. Z. Ele começava as 06:00hs, ia até meio dia, na Rádio Farroupilha. Tinha uma audiência infinita. Elegeu deputado estadual e o elegeu senador. Com um discurso popular. E estes programas tinha por ouvintes quem? 

Carmela: A população…

Jair: Mais pobre

Jair: Mais desprotegida, mais violada em seus direitos humanos. Mas não é só esse fenômeno, em São Paulo, não lembro agora o nome, o sujeito também elegeu-se deputado.

Carmela: Sim, estou tentando me lembrar.

Jair: O mesmo motivo. E aqui…

Carmela: Usando a comunicação.

Jair: Exatamente. E qual?

Carmela: O rádio.

Jair: O rádio, não o jornal. As tiragens dos jornais no Brasil sempre foram baixíssimos. Então lá na periferia ninguém lê jornal. Mas o rádio escutam lá. E esse discurso, ele entrou porta a dentro, das pessoas. Nós temos aqui um documentário antigo, que se fez sobre a pena de morte. Então uma senhora na favela, em São Paulo, dizia, uma pessoa bem humilde. Ela dizia: essa dos direitos humanos, tem que pegar os bandidos e levar para casa, dar pão de ló para eles. E tu olhando a senhora, humildíssima. Mas que assimilou esse discurso. E ela dizia isso com uma grande ênfase. Leva… não esqueci, e dá pão de ló para eles. Então isso no Brasil funcionou, eu digo assim, nós não termos tido ainda a capacidade de contrapor alguma coisa. E logo no final da ditadura, e a polícia era mais violenta ainda, do que hoje. Muito mais violenta. E ela ia na periferia da cidade, cotidianamente, davam pontapé na porta, entravam e levavam as pessoas que bem entendiam. Não imagina como era brutal. E nós do movimento elaboramos uma cartilha que tratava da violência policial e o habeas corpus. Porque as pessoas não sabiam que não é necessário um advogado para impetrar um habeas corpus. Essa cartilha era bem didática, depois te mostro. E inclusive tinha lá uma proposta de habeas corpus. E dava roteiro, para que as pessoas… tinha o que fazer. Bem, então nós mandamos imprimir não sei quantos mil e o nosso trabalho nas favelas, levar. Não precisou muito tempo para me dar conta que as pessoas não leem. Nem uma cartilha com muito desenho. Porque em termos de comunicação tu vais ver que é ótima a cartilha. Ai no segundo passo, nós transformamos em audiovisual, no tempo que eram os slides. Mandamos colocar um projetor em uma mala, que a gente podia ir em qualquer lugar, abrir a mala e projetava. E uma boa locução. Eu tenho ainda ai… e distribuímos a cartilha. Mesmo assim era difícil. Eu lembro que uma bela dessas noites, a reunião na associação de moradores porque isso eu acho importante de referir. Nesse período nós ajudamos a organizar 132 associações de moradores.

Carmela: Que ano isso?

Jair: Isso já tinha começado antes, mas foi em 79, 80, 81, 82.

Jair: 132 associações de moradores em Porto Alegre e Região Metropolitana. A organizá-los. Para que eles entendessem de que se havia dificuldades, a única forma de vencer era uma organização. E nisso a gente procurava ser muito pedagógico, como assim? Nós ensinávamos para eles como fazer uma reunião. O que o presidente tem que fazer, o secretário, tesoureiro o que faz. E a gente propunha, frente as suas necessidades, a gente passou um levantamento, seria mais fácil de resolver. E propúnhamos uma ação imediata, para que? Para que…

Jair: Para que as pessoas realizassem a experiência da vitória. Porque era mais fácil, a conquista te dá aquela satisfação e tu acredita que o caminho é a organização. A gente foi em parada de ônibus, buraco na rua, fomos para a escola, luz elétrica, água. Na medida do crescente. Nós unidos e organizados, nós conseguimos vencer. Tu começa com o mais fácil ao mais difícil, a derrota, põe tudo abaixo. E estou te contando isso porque nós marcávamos as reuniões para as 20:00hs, …

Carmela: Lá na associação?

Jair: Lá na associação. A gente ia lá na favela. As 20:00hs. E aparecia três, quatro, daqueles que eram os mais…

Carmela: Participativos.

Jair: Participativos. E a gente ficava esperando porque não tinha. E só depois do fim da novela que o pessoal começava a chegar. Então descobrimos que no Brasil nós temos os meios de comunicação, porque a TV… aquilo que passamos a chamar de mecanismos de contensão social. Entre isso a novela. Contensão social porque eu fico vendo a novela, eu não vou na reunião de associação de moradores, uma boa reunião de sindicato. Então aquilo que é fundamental para a democracia que é a participação, esse mecanismo surtiu, não usava a violência. E ele é fantástico na contenção. Chegou um ponto tal, que em uma dessas vilas populares, nós propusemos o seguinte: o nome do projeto, sugeri o nome, é Alienação Libertadora. Então não vamos fazer durante a semana a reunião mais, vocês vão ver a novela que tanto encanta vocês. E no sábado, nós vamos trazer aqui para o lugar da associação, um televisor e vamos assistir à novela juntos. E vamos discutir, não só o capitulo do sábado, mas toda a semana. Fizemos uma discussão que chamávamos de Alienação Libertadora. Então tu discutia isso que na vida real existe, as pessoas vivem assim. Então uma discussão de criação de consciência. E foram anos muito interessantes, muito interessantes. Mas o nosso repertório não foi suficiente, não foi suficiente para vencer essa barreira. Hoje, eu te digo assim, é mais complicado ainda. Porque aquilo que a gente criou com o mecanismo, de consciência social, política foi desvirtuado. Eu lamento dizer o que vou te dizer, mas é verdade, os partidos políticos cooptaram as direções das associações de moradores. Então ao invés de ser uma associação que trata do bem comum, passou a tratar da política eleitoral. Bem claramente, política eleitoral. E aí fica muito difícil, se trabalhar na consciência política ampla. E nos últimos tempos, Carmela, esses espaços têm sido ocupados por estas igrejas que chamam de pentecostais, eu ainda não consegui entender bem o que é isso, uma igreja pente… mas essas igrejas que na verdade são uns imensos caça níqueis. E que despolitizam, absolutamente estas populações, a presença deles lá na periferia é fantástica.

Carmela: E o discurso… muitos discursos que eles fazem, em relação ao antidireitos humanos, eles conseguem descaracterizar. Mas eles praticam e de certa maneira, eles prestam direitos humanos, mas eles não dizem que aquilo é direitos humanos. 

Jair: Não, desvirtuam, né? A mesma coisa é, não dizem que são cristãos, mas na prática não é, a prática não é cristã. É estelionato simples. É estelionato clássico. Então é muito complicado, é muito complicado. E ocuparam esse espaço. Nós fazíamos muitas reuniões nas capelas, igreja católica abria um espaço para nós. Tinha ditadura terminando, mas ainda tinha situações complicadas. Temáticas políticos. E em uma vila famosa aqui de Porto Alegre, lá de Sampaio, Petrópolis. E nós começamos lá um trabalho, criamos uma associação de moradores. E uma das grandes dificuldades que existiam era água, água potável. E havia alguns vereadores que a cada processo eleitoral faziam promessas, para colocar uma bica d´agua. E o pessoal se encantava com a possibilidade de uma bica d´agua. E nós chegamos com a proposta de agua encanada, não uma bica, agua encanada para todos. Isso é um dever da prefeitura. E as reuniões domingo de manhã. Um belo domingo de manhã, eu acabei sitiado dentro da capela, e com uma turma de facão na mão, comandada por um candidato. E que se não fosse o zelador da capela… de repente ele entra lá com um revolver, para expulsar os caras que queriam me matar, eles teriam me matado. E eu acabei saindo desse local já mais de 15:00hs. Evidentemente não preciso chamar a polícia que também tinham esta mesma opinião sobre nós. Eu te conto isso porque havia sim a exploração da necessidade.

Carmela: Uma usurpação por um poder individual, que nada de coletivo tem.

Jair: Então a cada eleição mais uma bica. E aí chegam uns malucos, não, tem que ser água encanada. Eu termino com a forma de coletar votos desse candidato. Eu te conto, para tu ver assim, como é difícil o tal dos direitos humanos. E isto que bem no princípio da nossa conversa tu falavas que a questão da consciência. Consciência social, política. E do ter direitos, que não são concessões, são direitos. Isso é difícil. Hoje, com essa presença fortíssima dessas igrejas pentecostais e ausência católica. A igreja católica nos abria portas. Até porque, quem da igreja católica ia para a periferia? O melhor dos seus quadros, aqueles padres e religiosos sensíveis a prestação social. Era o melhor deles, neste ponto de vista. E abriam, franqueavam os espaços, nos ajudavam muito. E o trabalho nesses anos foi impressionante. E atrás do Colégio Anchieta havia uma vila, Beco do Resvalo.

Carmela: Beco do?

Jair: Resvalo.

Carmela: Resvalo.

Jair: De certo alguém caia lá. E a seguir era o Beco do Mijo. Uma zona da elite. E ali tinha uma velha vila da ocupação, e a empresa proprietária, em determinado momento, decidiu expulsá-los. Foi difícil porque a gente chegou lá e se organizou. Eu lembro que pela primeira vez nós conseguimos uma vistoria pelo eminente doutor juiz. O doutor juiz saiu lá do seu gabinete e foi a vila vistoriar. Nunca tinha acontecido, fantástico. E o que, claro, evitamos, mas possibilitou uma negociação. A empresa reparava, pagava, indenizava as pessoas, para que fosse… aquilo que está lá no Código Civil. E se conseguiu isso. Era um local super, hipervalorizado, do ponto de vista imobiliário.

Carmela: Mas tinha uma realidade ali que se não fosse uma vistoria, talvez não tivesse dado uma visibilidade.

Jair: Exatamente. Então veja como os tempos mudam, né?

Carmela: E eu vi que o senhor falou várias… que as pessoas têm uma ideia muito restrita a essa questão direito do bandido. Que é um direito do preso de ter uma condição.

Jair: Digna.

Carmela: Digna de pena, mas eu vi que o senhor em diversas passagens falou muito nessa questão da urbanização, do saneamento básico. Que apesar de ter passado já, quantos? Quase 40 anos, nós ainda vivemos em um país que não tem saneamento básico, em uma cidade, como Porto Alegre, as pessoas vivem no meio do esgoto a céu aberto. 

Jair: Eu vou te dizer assim, Carmela, eu faço um tipo de palestra, que eu chamo Palestra Rei Momo, é primeira e única, nunca mais me convidam. Uma delas eu fiz na Fundação Oswaldo Cruz, lá no Rio. E falei sobre saneamento básico e direitos humanos, lá na fundação. Que do lado dela passa um arroio considerado um dos mais poluídos do mundo, você sabia disso? 

Carmela: Não.

Jair: Tudo quanto é contaminante pesado que tu possas imaginar corre ali. E eu falei, trazendo uma discussão sobre o relatório da ONU, daquele momento, daquele ano. Quando eu fui fazer a palestra fazia 10, 15 dias que a ONU…

Carmela: É a palestra que o senhor deu na Fiocruz?

Jair: Exatamente.

Carmela: Sobre direitos humanos.

Jair: Direitos humanos e saneamento básico.

Carmela: Como foi?

Jair: O pessoal ficou espantadíssimo quando eu relatei o que a ONU dizia sobre saneamento básico. O relatório tinha saído 10, 15 dias antes. Que colocava o Brasil abaixo de vários países africanos, até da República Dominicana que eu conheço bastante bem, então pude referir. Até da República Dominicana nós estamos atrás. E falava do saneamento básico, por quê? Porque esse trabalho nosso na favela, nos deu conhecimento. E eu costumo sempre, quando falo disso, usá-lo… da Organização Mundial da Saúde que é o ciclo da saúde, que é habitação, alimentação, educação, saneamento básico. Esse é o ciclo dinâmico da saúde. Então tu tem uma população em sub habitação, não há alimentação, não tem educação, saneamento básico menos ainda. Então é uma forma também de perpetuar o quadro. Mas nunca mais me convidaram. Eu referi ao riacho que passava do lado da Fundação Fiocruz, dedicado à saúde. É o arroio mais sujo do planeta, não há um tão sujo como esse. Tudo que é metal pesado corre ali. 

Carmela: E a plateia?

Jair: Todo muito sério e tal. Essa questão do saneamento básico, como tu sabe, isso já é antigo… que o Estado não gasta um dólar com saneamento e acaba gastando cinco em medicina curativa. Bom, mas saúde não dá lucro, né? Não dá lucro, então é difícil. Mas voltando lá… essa experiência, nos enriqueceu muito, todos os nossos militantes enriqueceram muito com isso. Porque nesse convívio passaram a sentir as dificuldades, a questão dos direitos humanos. Os direitos humanos não existem na estratosfera. Existe um cotidiano das pessoas. É no meu cotidiano que os meus direitos são violados. Das mais variadas formas, como as pessoas não tem informação, passa despercebido, como se fosse natural. Eu costumo dizer, existe uma quantidade de situações, uma enorme quantidade. Que são muito rotineiras, comuns, mas que são absolutas violações aos direitos humanos. 

Carmela: Eu acredito que temos que fazer com que as pessoas não sejam indiferentes a uma situação de indignidade…

Jair: Coisas que te saltam aos olhos. Caminhar na rua… tu vê. Quando a gente fica velho, a gente conta história antiga. Então vou te contar uma história antiga, sobre isso, daquilo que é muito comum e não é normal. Nem tudo que é comum é normal. Era prefeito o Olívio Dutra e estavam discutindo a duplicação dali da Praia de Belas, em função da construção do shopping. Então tinha que duplicar. E era necessário construir mais uma ponte do lado. E ali na margem do arroio tinha um pé de Timbaúba, uma boa árvore. Os ambientalistas, não, não, não, derrubar a Timbaúba para fazer uma ponte. E isto foi uma discussão que ganhou um bom espaço na imprensa. E o Olívio convocou uma audiência pública na prefeitura, para discutir o destino do pé de Timbaúba. Era umas 21:31hs, e o nosso escritório era na Andrade Neves, eu estou descendo, me cruzo com o Olívio. E o Olívio, como foi a audiência pública? Foi ótimo, tinha mais de 200 pessoas. Era um mês de junho. Era um junho frio. Tinha as crianças dormindo na rua, quando tu vai convocar uma audiência pública para discutirmos essas crianças? O que nós vamos fazer com essas crianças. Me refiro a essa imagem, o Olívio no bigodão, é mesmo. E continuamos conversando, olha Olívio, eu acho que se tu convocares, certamente duas pessoas: tu como convocante e eu que sugeri. Porque nós passamos a viver um momento em que a sociedade se preocupa mais com um pé de couve, do que um ser humano. Eu não vi nenhuma mudança de lá para cá, não vi. E, por favor, nada contra os ambientalistas, tem todo o nosso apoio. Mas e o ser humano? Sabe, e o ser humano? Tu vê que não há… lamentavelmente não há uma sensibilidade pública.

Carmela: É porque, nesse caso, tinha um interesse econômico. Que a princípio, com a suposta alegação do desenvolvimento do bairro, valorização do espaço, geração de emprego, é importante, mas sem pensar nessas pessoas que estão a margem.

Carmela: E o básico?

Jair: O problema do ser humano. Então, sabe, é uma situação no Brasil, que a mim me preocupa muito, nós não termos conseguido a forma de criar esta consciência dos direitos humanos. A vida me ensinou que esse é um tema que, os direitos humanos, além de serem conhecidos, eles têm sido aceitos.

Carmela: Tem que ser exercidos, isso?

Jair: Aceitos.

Jair: É. Eu conheço direitos humanos, aceito, aceito que aquele ser é igual a mim em direitos? E quer a mesma coisa que eu tenho? Esse é o exercício, fundamental. A vida me ensinou isso. De que além de conhecidos, tem que ser aceitos. Eu tenho que saber que vivo em uma comunidade que isso não pode ser nunca, nunca desprezado. E te conto assim… insisto muito nisso, nesta visão de direitos humanos, com algo social. E não está lá na estratosfera, que isso começa com a própria declaração, a linguagem que ela foi redigida, muito solene. Para as vítimas das violações é quase incompreensível… então, agora nós estamos atuando no movimento fortemente, em questão a mortandade as abelhas. Porque põe em risco a segurança alimentar, mundial. É algo seríssimo. No Rio Grande do Sul, para que você tenha uma ideia, de outubro até agora, morreram 500 milhões de abelhas. Esta abelha Apis, abelha europeia, que são criadas, né? As colmeias, agora, a abelha nativa não sabemos quantas. Isso é gravíssimo, então estamos trabalhando nisso. E nesse trabalho, e junto com outras organizações se criou a Apis Bio, dá para colocar especificamente isso. E o movimento está ali junto, tocando. Bem, e houve um episódio grave, de mortandade de abelhas, em 15 de outubro, que por sorte, os apicultores foram a delegacia de polícia e registraram uma ocorrência. E por mais sorte ainda, o delegado pediu uma perícia. Foi uma coisa rara, isso não acontece. E nesse episódio até o prefeito e a sua senhora foram vítimas, tomaram banho de agrotóxico, pararam no hospital. Então, pela primeira vez, nós tivemos o que o laudo percebe, dizendo o que causou a morte das abelhas. O que nos possibilitou oferecer uma representação ao Ministério Público. E fizemos um simpósio, e convidamos o promotor, muito particularmente, acometemos a usa saia justa porque entregamos a representação publicamente, ele teve que dar recibo. Tinha 381 pessoas, em um município de 3000 e poucos habitantes…. 

Carmela: E isso foi agora?

Jair: Agora em março de 2019. E me toca a falar sobre esse assunto. E na ida, eu fui com o pessoal do Uruguai, que também são vítimas disso, a gente trouxe para mostrar, que a dimensão do assunto é realmente grande. E no caminho eles me perguntaram, muito objetivamente, o que o dos direitos humanos tem a ver com mortandade de abelhas? Na cabeça deles. Tem a ver tudo, e não fui eu quem disse, foi Albert Einstein que disse, que no dia que desaparecerem as abelhas da face da terra, a humanidade tem mais 4 anos de sobrevivência. Então fala de vida, fala de vida, fala de direitos humanos. E você sabe da polinização, da segurança alimentar, vamos morrer de fome. Então isto tem tudo a ver com direitos humanos. Era briga com os produtores, que são enormes… possuem um excelente departamento jurídico, excelente departamento cientifico. Quando fomos até lá tratar dos direitos humanos e a tal da mortandade de abelhas, contei para eles o seguinte: olha, lá no Oriente Médio, vivem dois povos em conflito milenar, os árabes e os judeus. Eles têm religiões diferentes, mas estranhamente, tanto em uma religião como na outra, é proibido comer carne de porco. Certamente vocês aqui comem carne de porco seguidamente, não se sentem em estado de pecado. Então, por que será que dois povos que vivem um conflito milenar, tem religiões diferentes e as duas religiões recomendam a mesma coisa? É porque as regras de convívio, são regras de direitos humanos. Como não vamos confiar. Então aí está uma regra de direitos humanos, por quê? Nessa região o bem fundamental é a água, que é escassa. Muito escassa. E o porco é um grande consumidor de água, portanto ele é um animal antissocial. Porque a vida que acontecia no oásis, admitir um porco, eu tinha que excluir quatro, cinco seres humanos. Então vamos resolver o problema. A época não se abria uma discussão para os líderes religiosos é pecado e terminou o assunto. Mas na verdade, é porque o porco é um animal antissocial. O animal social é o camelo e a cabra que vão buscar fotossíntese fora do oásis, trazem ali para dentro na forma de leite, carne. E o porco… então é pecado. É essa a questão. Hoje, aqui, na Cidade de Mata, interior do RS, o porco, o antissocial é o agrotóxico. Porque nos prejudica o convívio social. Então é por isso que os direitos humanos estão aqui, com aqueles que pregam regras de convívio social. Como nós vamos conviver, isso é direitos humanos. Sabe que fui feliz nisso, fui feliz, as pessoas entenderam. Fui buscar um exemplo.

Carmela: Longe.

Jair: Longe, para mostrar para eles, edificar o agrotóxico como o porco, é antissocial. Tu não imagina como é difícil isto, porque geralmente o apicultor é um pequeno agricultor. E quem espalha o seu veneno, é o seu vizinho. Com quem ele foi a escola junto ou foi padrinho de casamento, foi padrinho de filho. Então eles nunca vão a polícia. Exageraram e eles foram, e o prefeito… só que na nossa ida, a gente também fez um documentariozinho e vamos entrevistar o prefeito. O prefeito foi hospitalizado. O prefeito, então… no agrotóxico, parece que já estava mudando de opinião, a pressão política. Parece que foi o agrotóxico. Eu te conto para tu ver essa questão dos direitos humanos é complexa. 

Carmela: E muito mais amplo do que as pessoas podem imaginar.

Jair: Claro. Estão falando de saneamento, agora estão falando de abelha. O que tem a ver com alimento? Que são todas questões de direitos humanos. E por isso, é uma outra coisa que eu tenho muito clara, aqueles que são militantes de direitos humanos, nós temos um dever permanente de questionar a tal de autoridade, permanentemente. Nós temos que questionar a autoridade, é o nosso papel. Porque, eu digo assim, para tu viver em uma sociedade autorizada, esta sociedade tu tem que levar para o direito positivo, aquilo que vai regrar esta sociedade. É assim que a gente decidiu se organizar. Então eu tenho que ter claro que eu tenho que enfrentar as “autoridades”, e tenho também que questioná-las permanentemente. 

Carmela: A gente está sujeito a erros, não é?

Jair: Claro, mas eu digo, isto é uma coisa…

Carmela: E porque também as pessoas estão muito individualistas, infelizmente.

Jair: Ai a gente poderia ir lá para o processo de colonização que nós vivemos. Que é muito diferente do mundo hispânico. Porque eu vejo nos países hispânicos uma consciência social muito mais aguda do que a nossa. Não é a minha área, mas eu te digo assim: ….

Carmela: A importância que dão para a história e de difundi-la.

Jair: E nós vivemos hoje no Brasil, isso para nós é gravíssimo, esse passado recente. Eu tenho um amigo que diz que não é passado recente, me corrige sempre, é passado atual, porque não resolvemos. Não resolvemos e ele continua atual. Mas é assim Carmela, nós no Brasil não conseguimos vencer essa etapa, dessa passagem da ditadura para a democracia. Não conseguimos. Isso tu não imagina, como isso é difícil, como isso é difícil. A gente fala muito da minha experiência pessoal aqui, e até pela minha idade, amigo de várias pessoas e depois chegar ao poder. E as coisas se transformam, tu perde o interlocutor. E Fernando Henrique, um jovem sociólogo, várias vezes nos convidou para fazer palestra aqui na assembleia, várias vezes. Depois se torna uma figura importante para o cenário político brasileiro. Esse passado se esquecem. Depois, eu digo assim, o Lula nunca nos recebeu. E o pior de tudo, tão pouco a Dilma. Sabe, é uma coisa…

Carmela: É fundamental respeitar o caminho de protagonistas como o Senhor, não foi e não é fácil. Pessoas como o Senhor abriram espaços para outros, para que pudéssemos estar hoje em uma situação diferente. 

Jair: Quando tu fala de memória, eu não sei, eu estou fazendo uma grande lambança.

Carmela: Está ótimo!

Jair: Assim, Carmela, nesse ponto que tu fala, memória, que é um trabalho que nós temos permanente. Aqui o nosso grupo não abre mão e eu especialmente não abro mão de trabalhar isso. Depois eu vou te mostrar algumas coisas e tu vai entender porque eu estou dizendo isso. Depois de muita luta se conseguiu constituir a Comissão Nacional da Verdade. Muita luta, se conseguiu. Já no ato de assinatura, da tal de lei, houve um problema grave. Onde? No Palácio do Planalto. E o pessoal que estava tratando disso entendeu que deveria usar a palavra, na cerimonia, a filha de um desaparecido. Uma menina de excelente formação, psicóloga, gente de um discurso caustico, violento. E os militares não permitiram. E do outro lado estava J.G., bancando a postura dos militares. E a menina não falou. Começou assim, no ato de assinatura. Constituída a Comissão.

Jair: Constituída a comissão, dias depois uma das senhoras, comissária. A Rosa Cardoso me liga, queria o meu depoimento. Rosa Cardoso, minha querida amiga, ela é mais velha do que eu, para tu ter uma ideia. Ela deve estar com 84, 85. A Rosa foi advogada da Dilma, presa política. E a Rosa me disse: Jair eu quero o teu depoimento aqui na Comissão. Rosa, com muito prazer eu vou, principalmente um convite teu. Tenho um carinho, respeito por ti. Só que vocês estão tomando depoimentos a portas fechadas. Eu não dou depoimentos a portas fechadas, o meu depoimento é público. Tudo que eu disser é minha responsabilidade. Mas para te tranquilizar, tudo que eu vou dizer, vou usar documentos para… maravilha Jair, tu sabe que eu luto muito aqui com os colegas, agora vou dizer que tu colocou como condição, para ajuda-los. Está bem. Marcada a data e horário, eu fui para Brasília. Antes de começar… aquilo que eu disse está de pé. Tem um detalhe que eu não posso dizer publicamente. Porque uma pessoa que foi um importante agente condor, está viva em Montevidéu. E nós precisamos ir até lá e tomar o depoimento dele. E na ocasião, ele está com 85 anos, não dá para postergar muito. E ele é fundamental. Para que não imagine que eu estou te contando uma história, isso dá um CD com 800 e poucos documentos. Quando nós vamos a Montevidéu para tomar o depoimento dele? Esse depoimento era no mês de novembro, ela disse janeiro, está bem vamos em janeiro lá. Bem, terminando janeiro, eu liguei para ela, Rosa, não, não Jair, fevereiro. Março. Em abril eu me dei conta Carmela, eu nunca fiquei esperando por ninguém, me deu uma bobeira. Peguei um avião e fui para Montevidéu. O cara tinha morrido em março. Bem, no meu depoimento, digo publicamente, e exibo documento. A primeira operação condor… dezembro de 1970. Isso que dizem que a Operação Condor foi discutida e aprovada em 75, Santiago, no Chile. Não é assim. Lá se deu nome. Se fosse cristão, diria que batizaram a criança. Mas ela existia como criação brasileira… está aqui, primeira operação, dezembro de 1970, vítima o coronel J. C. de A. O., seu filho e um sobrinho. 

Carmela: As vítimas foram? O. você falou?

Jair: J. C. de A. O., seu filho, de nome J., e um sobrinho, de nome R. E está aqui os documentos. O filho do coronel J., está vivo e são no Rio de Janeiro. Já fiz tratativas com.… no Rio, meus queridos amigos. Está disponibilizada uma sala, equipamento para se gravar… do filho, foi vítima… as vésperas de ir ao Rio, para formalizar o documento. O depoimento. Recebo um e-mail, que tenho guardado, dizendo que a Comissão não iria. Olha, eu fico muito surpreendido, até duvido disso, não pode ser verdade. Mas tudo bem. Como eu me governo, vou tomar o depoimento, já tinha acertado com o pessoal do Rio. Mas se por alguma razão vocês acharem que eu mereço uma explicação um pouquinho melhor, me diga porquê. Aí mandaram, repassaram um e-mail, não autorizo. Um membro da Comissão, meu amigo. Fui com.… tomei o depoimento, vamos e tal. Mandei para a Comissão… se tu pegar o relatório, é um verbetezinho, três linhas. Não queriam…. Como eu mandei ficava chato, então põe um pouquinho para esse xarope do Jair não ficar… não queriam a verdade. Porque nesse documento tinha nomes de oficiais, de um diplomata, que depois veio a ser ministro de Relações Exteriores. Então não interessava. Foi uma Comissão da quase verdade. É um desrespeito a memória.

Carmela: Não existiu nada, então?

Jair: Não, não, não. O relatório feito, eu sempre digo, o melhor do relatório são as recomendações, são 29 recomendações. Esse é o melhor do relatório. No mais é mais do mesmo, não acrescentou nada aquilo que já se sabia. Se tu me disser, olha, sistematizou o que se sabia, sim, claro, reconheço. Mas de conteúdo não, de conteúdo não. E essa memória é fundamental para isto que tu aqui te propõe. É a questão da democracia, o exercício da democracia. Sem tu conhecer o ontem, como tu vai construir o futuro? Não tem como construir. Eu digo sempre, no Brasil não houve transição. Houve transação. E provo, faço constatar. Então nós viemos sempre capengas. E chegamos em um momento hoje, onde tu olha a nossa realidade política.

Carmela: Dá um… eu me sinto as vezes, não vou dizer de mãos atadas, mas dá um desespero. 

Jair: Te põe aqui no meu lugar, estou com 80 anos, dediquei o melhor da minha vida a luta por redemocratização. E nós chegamos nisso. E sabe que tem noites que eu paro, por onde sair? Onde está a porta de saída desta situação? O que fazer? Te juro que até agora não consegui nada. Como vou fazer? Em um país que tem 30 e tantos partidos registrados, eu vou te dar um número agora, que eu acho que tu não sabe. Quantos partidos estão na filha, aguardando registro na justiça eleitoral? 

Carmela: Não sei.

Jair: 75. Tem 34 que são registrados, é um absurdo. Em qualquer país. Mas tem 75 na fila. Apatifaram a política. Aí tu vai para o Judiciário… então onde tu vai te agarrar? E tu vê, esse parlamento, esse parlamento é um absurdo.

Jair: Eu te digo assim, é que nós chegamos a um ponto tal, o Congresso Nacional. No Exterior, quando eu falo bancada da bíblia, bancada da bala, bancada do boi, as pessoas me olham como eu seu fosse um extraterrestre. O que esse cara está falando? É inconcebível, em qualquer lugar do mundo tu falar, olha, nós temos no Brasil um Congresso, a bancada do boi. Reúne vários partidos, o conceito de bancada é um partido. Sabe, eles ficam malucos, não conseguem entender. Porque se constituiu essas bancadas, sempre na forma de interesses, que não são ao mais republicanos.

Carmela: Sim, e até eu estava em Portugal, conversando com um professor de Lisboa, Catedrático de Direito, o Eduardo Vera-Cruz Pinto. E ele disse para mim assim, ele é uma pessoa que se considera lá de direita. Mas tudo que eu falei sobre o projeto Direito no Cárcere, ele concordou plenamente. E lá eles fazem orquestra para presos, eles fazem projetos de assistência para as pessoas que não tem condição. Eles têm uma visão das políticas base, que elas têm que estar presentes, independente do governo, de direita ou de esquerda. Porque não se desenvolve economia se tu não tem renda.

Jair: São políticas de Estado. Isso até atenta contra o capitalismo.

Carmela: Sim.

Jair: Atenta contra o capitalismo. Agora quando tu fala de orquestra e tal, nos nossos arquivos tem umas preciosidades. E nós tivemos um trabalho muito forte na prisão, sabe? Nos nossos presídios, muito forte. Em um determinado momento, e uns presos do Jacuí que tinham pendores musicais, então constituíram um conjunto musical, a gente armou um show com eles. E entre eles tinha um uruguaio. Aí fizemos tudo, o diretor da SUSEPE era um promotor e depois chegou o procurador geral, não estou me lembrando o nome dele. Gente fina. Aí estamos todos lá, se apresentaram. Terminou o show, o uruguaio fugiu.

Carmela: Nunca mais?

Jair: Nunca mais.

Carmela: É difícil.

Jair: E fundamos, agora, há poucos dias recebi da França uma noticia, de uma pessoa que eu não falava, não via há horas. Que militou conosco na questão carcerária, nós fundamos a Associação do Familiares e Amigos de Presos. A direção mudava uma vez por semana. Porque os agentes pressionavam. Tiravam visita, então eu não vou mais ser presidente.

Carmela: Sim, ficou com medo.

Jair: Mas foi um momento muito rico. Tem aqui notícia de imprensa, etc. Mas era uma desigualdade, é claro, havia muito ainda. Se hoje é difícil, imagina naquela época. 

Carmela: Sim. Quando eu comecei, a cultura que a gente tem hoje com a direção, do que a gente começou, era muito diferente. Muito, uma fase do projeto, o projeto já chegou a ser alvo de negociação do Estado, para que se tivesse mais policiais, para atender a Cadeia Pública. Agora não vai ter mais o projeto Direito no Cárcere, até que se tenha policiais. Agora a Carmela não entra mais aqui até o governador dar mais policial, não tem segurança no presídio. E daí como o governador não mandou mais policiais, que deveria ter mandado, que é um absurdo a condição que eles trabalham, enfim, condições muito precárias também.

Jair: É verdade.

Carmela: Eles… os presos fizeram uma carta, se responsabilizando pela minha segurança. Naquela época. E daí depois, nunca mais tive esse problema. Mas são coisas que a gente…. Que marcam, né? 

Jair: Mas assim, esse teu cotidiano, tu sabe a dificuldade. E é uma dificuldade, às vezes, quase insuperável, se não insuperável. Mas tu faz, isso que eu gosto, tu fazes. 

Carmela: Não é fácil, né?

Jair: Não.

Carmela: Não é fácil, muita disciplina, né? Eu tenho que advogar, sou mãe, né? Tenho meus projetos. Mas a gente…

Jair: Por isso que eu digo, tu vai me explicar como tu faz tudo isso ao mesmo tempo.

Carmela: Estou aqui hoje para ouvir o senhor e esse vídeo, que depois o pessoal vai estar assistindo na internet, com certeza vai ficar, e eu quero ver se o senhor topa descer comigo, que eu queria tirar uma foto com o senhor em frente da Esquina Democrática, para botar na nossa conversa, acho que ela é bem representativa.

Jair: Está bom, mas eu quero te contar uma coisa. Que nós não podemos estar gravando.

Carmela: Então eu vou desligar. Então assim pessoal, quero agradecer a audiência de vocês, do Jair.

Jair: Foi maravilhoso, é um grande prazer.

Carmela: E esse relato, eu vou contar um pouquinho desse relato e algumas passagens que o Jair comentou aqui, no livro que vai sair sobre o Dicionário dos Antis, a Cultura Brasileira em negativo. Que vai abordar, o texto sobre antidireitos humanos. Eu comecei a fazer o texto e eu considero que a participação do Jair nesse trabalho é fundamental. Na verdade, eu tinha convidado ele para escrever o artigo, e daí, por uma questão de tempo, de logística, enfim, dos compromissos dele, ele topou a entrevista. E agora está registrado, para a nossa memória. Obrigada.

Comentários

  • (will not be published)