Desconsideração à inversa: o Caso Marcelinho Carioca

Coluna Descortinando o Direito Empresarial

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72 Semana – Desconsideração à inversa: o Caso Marcelinho Carioca

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.647.362 – SP (2017/0004072-0)

RELATORA:    MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE:          L.COELHO E J. MORELLO ADVOGADOS ASSOCIADOS

ADVOGADOS:           JOÃO PAULO MORELLO E OUTRO(S) – SP112569

FÁBIO DA ROCHA GENTILE – SP163594

RENATO VAQUELLI FAZANARO – SP376384

RECORRIDO: MPF PROMOCOES COMERCIAIS LTDA – ME

RECORRIDO: DIVINA INSPIRACAO PUBLICIDADE E PRODUCOES ARTISTICAS LTDA

RECORRIDO: MARCELO PEREIRA SURCIN

ADVOGADO: CLAUDIA CRISTIANE FERREIRA – SP165969

EMENTA CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE. MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXISTÊNCIA. INCIDENTE PROCESSUAL. PROCESSAMENTO. PROVIMENTO.

  1. O propósito recursal é determinar se: a) há provas suficientes da sociedade de fato supostamente existente entre os recorridos; e b) existem elementos aptos a ensejar a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
  2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos do art. 987 do CC/02.
  3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir.
  4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.
  5. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório.
  6. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15.
  7. Recurso especial conhecido e provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 03 de agosto de 2017(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI Relatora

Foto: Luis Dantas/Wikimedia Commons

Foto: Luis Dantas/Wikimedia Commons

 

COMENTÁRIO RECURSO ESPECIAL Nº 1.647.362 – SP (2017/0004072-0)

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem como sinônimo os seguintes termos: penetração da pessoa jurídica, levantamento do véu, superação da personalidade jurídica e disregard of legal entity (AQUINO, 2015).

O CC prevê a aplicação da desconsideração da seguinte forma:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

O CDC também traz aplicação da teoria da seguinte forma:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

  • 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Topologicamente foi inserido no Título III, do Livro III do novo CPC o instituto da desconsideração como intervenção de terceiros que o prevê da seguinte forma:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

  • 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

De acordo com Tomazette (2008, p. 223), para a aplicação do instituto da desconsideração da personificação, de modo que o patrimônio dos sócios responda pelas dívidas contraídas pela sociedade “é necessário que se configure a fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial”.

É importante ressaltar que a desconsideração pode ser aplicada às avessas (inversa), ou seja, se um sócio se utiliza da sua própria personalidade de forma abusiva, pode sofrer a aplicação do instituto para atribuir a responsabilidade à sociedade ou à Eireli (AQUINO, 2015).

O Enunciado nº 11 da I Jornada de Direito Processual Civil estipula que “aplica-se o disposto nos arts. 133 a 137 do CPC às hipóteses de desconsideração indireta e expansiva da personalidade jurídica”.

A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio que deseja ocultar o seu patrimônio transferindo-os para a propriedade da sociedade sem, no entanto, modificar o capital social.

Já o Enunciado nº 42 da I Jornada de Direito Processual Civil estipula que: “é cabível a concessão de tutela provisória de urgência em incidente de desconsideração da personalidade jurídica”.

Existem os seguintes exemplos para elucidar a desconsideração à inversa:

(a) É aplicável a regra da desconsideração da personalidade jurídica na forma inversa quando o devedor se vale da sociedade à qual pertence para ocultar bens que, se estivessem em nome da pessoa física, seriam passíveis de penhora ou mesmo se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular. Somente se aplica a teoria da desconsideração se forem verificados os requisitos de sua incidência e poderá o juiz, no próprio processo de conhecimento, execução ou cautelar levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. A confusão patrimonial foi identificada pelo juiz, que observou que o bem se encontrava em nome da sociedade, porém era utilizado apenas para fins particulares do sócio majoritário. Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, se a finalidade da regra da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, é possível a desconsideração inversa (REsp 948.117/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010).

(b) A conveniência do instituto surge se o devedor esvazia o seu patrimônio, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica da qual é sócio. É artimanha comum, por exemplo, aos cônjuges ardilosos que, antecipando-se ao divórcio, retiram do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, alocando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, pulverizando assim os bens deslocados. Desta forma, pode o juiz desconsiderar personalidade jurídica, alcançando bens que estão em seu próprio nome, entretanto, para responder por dívidas que não são suas e sim de um ou mais de seus sócios. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva. Se as instâncias ordinárias concluem pela existência de manobras arquitetadas para fraudar a partilha, a legitimidade para requerer a desconsideração só pode ser daquele que foi lesado por essas manobras, ou seja, do outro cônjuge ou companheiro, sendo irrelevante o fato de ele ser sócio da empresa. (REsp 1236916/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/10/2013, DJe 28/10/2013).

A desconsideração à inversa ocorre quando os sócios para evitarem perda de patrimônio transferem para a sociedade os seus bens com o intuito de lesar terceiros, sem, contudo, modificarem o capital social da sociedade.

Referências

AQUINO, Leonardo Gomes de. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário: Brasília: Kiron, 2015.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial. Teoria geral e direito societário. São Paulo: Atlas, 2008. V. 1.

 

Leonardo Gomes de AquinoLeonardo Gomes de Aquino é Articulista do Estado de Direito, responsável pela Coluna “Descortinando o Direito Empresarial” – Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito Empresarial. Pós-graduado em Ciências Jurídico Empresariais. Pós-graduado em Ciências Jurídico Processuais. Especialização em Docência do Ensino Superior. Professor Universitário. Autor do Livro “Direito Empresarial: teoria da Empresa e Direito Societário”.

 

 

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