Vivemos um “Admirável mundo novo[1]”? Questão que nos empurra a observar que o mundo em que vivemos encontra-se em constante modificação, seja por um imposição da própria natureza, seja por um árduo labor técnico-científico do ser humano. Alterações na realidade que atingem o auge de sua potencialidade em razão dos recentes conhecimentos no campo da biotecnologia – de forma simplista aqui entendida como tecnologia no campo da biologia.
O ser humano há milênios – desde a domesticação de plantas e animais – lida com a biotecnologia. No entanto, nas últimas décadas, o conhecimento foi mais longe, alcançando o que em dado momento era reservado à ficção científica. Temas que parecem extraídos de textos de H. G. Wells, como “A Ilha de Dr. Moreau”, ou mesmo dos escritos de Robert Louis Stevenson, como “O estranho caso de Dr. Jekyll e Senhor Hyde”, batem a porta da mais pura realidade contemporânea. O homem atingiu potencial técnico antes restrito ao campo da ficção científica. Uma capacidade de produção que, como aclara GADAMER, implica, invariavelmente, em um cambio de realidade.
Encontramo-nos em uma era de transição de incertezas. Um momento da história em que a ciência já desvendou alguns, dos ainda incalculáveis, mistérios do genoma humano, viabilizando uma substancial melhora da medicina e da farmacologia. No entanto, as possibilidades que podemos vislumbrar destes novos conhecimentos vão mais além, englobando técnicas avançadas como clonagem, hibridação, entre outras. Não podemos antever que, por meio destas novas técnicas, chegaremos até mesmo a criação de uma “nova” espécie humana? Fazendo uso de recorte do título de um impressionante livro de Steven Fuller: a uma “humanidade 2.0”?[2]
Certo é que a tecnologia atual viabiliza o mapeamento genético de qualquer ser vivo, inclusive do ser humano, além de permitir a respectiva manipulação de sua identidade. Identidade genética aqui observada como as características genéticas de cada indivíduo – seu genoma. Estamos diante da era da “genetécnica”.
O ser humano, no atual estágio da técnica sobre os genes, atinge a real capacidade de manipular sua própria estrutura genética. Momento em que devemos saber separar duas modalidades de engenharia genética humana, a primeira aplicada sobre as ditas células somáticas – aquela em que não há implicação hereditária – e a segunda sobre as células germinais – que ocasionam a transmissão, às gerações futuras, da alteração gênica imposta. A primeira, prima facie, atrai usos essencialmente terapêuticos, razão pela qual é comumente comparada a tratamentos médicos corriqueiros. Esta, digamos, “de mais fácil aceitação social”, ocasiona, neste brevíssimo texto, a opção por dedicarmo-nos nas próximas linhas a engenharia genética sobre células germinais.
A genetécnica sobre células humanas germinais, desperta uma série de temores a respeito dos desconhecidos efeitos futuros sobre a identidade genética, assim como sobre o patrimônio genético humano. Muito questiona-se sobre a possibilidade de, por meio da técnica, estarmos transformando a essência do “ser” humano. Discussão que “esquentou” quando a Inglaterra estabeleceu, por meio de lei, a viabilidade de uso terapêutico da genetécnica celular germinal em seres humanos, mais especificamente sobre o popularmente denominado “DNA mitocondrial”.
Aqui deparamo-nos com a pioneira legislação a autorizar a transferência do núcleo de uma célula germinal cujas mitocôndrias apresentem defeitos (que seriam transmitidos aos descentes e teriam o potencial de lhes ocasionar graves problemas de saúde) para uma célula saudável. Técnica que inadvertidamente vem sendo tratada como a “procriação por 3 pais”. Inadvertidamente porque, apesar de afastar-se a transmissão genética da mitocôndria “defeituosa”, os cientistas afirmam que o genótipo sofrerá insignificante alteração.
No entanto, o que nos importa neste momento é a observação de que já existe, em algum rincão, legislação permissiva de aplicação de genetécnica germinal humana. Fato que ocasiona uma série de interrogantes: a humanidade deseja, ou merece, esta permissividade? A viabilização da posta em prática poderia ocasionar o retorno de alguma das históricas políticas eugênicas? Qual o efeito de autorizações desta espécie para a identidade e o patrimônio genético humano? Devemos temer ou agradecer tal espécie de iniciativas legislativas? Sendo estas algumas das infindáveis questões que o tema desperta, nos parece que o mundo em que vivemos guarda interessantes relações para com aquele apresentado na ficção de HUXLEY.
[1] Aqui uma não despropositada referência ao título de uma obra em que desenhada, através de um exercício criativo, um futuro em que a humanidade teria sua realidade totalmente centrada na tecno-ciência. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2009.
[2] Fuller, Steve. Humanity 2.0: What it means to be human past, present and future. Palgrave Macmillan, 2011.
Autor – Doutorando em Direito Público pela Universidade de Burgos (Espanha). Advogado e Diretor do Curso FMB.