Aplicabilidade da astreinte nas dívidas de fazer e de dar (Parte I)

Na última coluna, tratei de uma questão ligada à classificação das dívidas em dívidas de dar, de fazer e de não fazer, qual seja: os poderes manejáveis pelo credor de uma dívida de dar em face da insatisfação do seu crédito. Gostaria, agora, de continuar a examinar essa mesma classificação – tida como a classificação básica das dívidas –, mas sob outro aspecto: o cabimento do mecanismo coercitivo da multa por atraso no cumprimento (a chamada astreinte) em sede tanto das dívidas de fazer como das dívidas de dar.

Começarei com a análise relativa às dívidas de fazer nesta coluna, prosseguindo, na próxima, com o estudo das dívidas de dar. Posto isso, pergunta-se: a multa coercitiva mencionada no art. 461, §§ 4º e 5º CPC/1973 (cf. artigos 537, caput, 536, § 1º, e 139, IV CPC/2015) tem aplicabilidade somente em sede das dívidas de fazer personalíssimas (ou infungíveis), somente em sede das dívidas de fazer fungíveis, ou, ainda, em sede de ambas?

Tanto a doutrina civilista como a processualista se dividem aqui em três correntes:

(i) para uma primeira corrente, a multa visando coerção para cumprimento específico não poderia ser utilizada nas dívidas personalíssimas, resolvendo-se o inadimplemento exclusivamente pela indenização por perdas e danos (conforme o art. 247 CC/2002), visto que nesses casos a preservação da liberdade e da dignidade da pessoa do devedor seria incompatível com esse mecanismo de pressão (nesse sentido, Paulo Lôbo, Direito civil – Obrigações, 2011, p. 107, e Humberto Theodoro Jr., Curso de direito processual civil II, 2007, pp. 36-37);

(ii) para uma segunda corrente, a multa não poderia ser utilizada com relação às dívidas fungíveis, já que para essas o art. 249 CC/2002 prevê o mecanismo da assinalação da execução a terceiro, que seria suficientemente satisfatório e, portanto, o único que poderia ser invocado pelo credor (nesse sentido, o autor argentino Luis Ramon Madozzo, Derecho processual civil: medidas cominatorias, in Revista de Direito Processual Civil I, Genesis; Sílvio Venosa – Direito civil II, 2013, p. 83 – embora não chegue a se filiar a essa tese, afirma que o campo específico de aplicação da multa periódica é o das dívidas infungíveis);

(iii) finalmente, para uma terceira corrente, a astreinte tem cabimento em qualquer das duas espécies de dívida de fazer (precisamente porque as justificativas contrárias apresentadas pelas outras correntes não se sustentariam – nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, Curso de processo civil III, 2008, pp. 75-77 – mas destacando, na p. 190, que a imposição de multa coercitiva é incabível nas dívidas de prestar declaração de vontade).

Qual dessas interpretações merece prevalecer? De fato, examinada criticamente, a primeira corrente não se sustenta, com a devida vênia: o art. 247 CC/2002 não afirma que seja cabível exclusivamente a indenização por perdas e danos nas dívidas de fazer infungíveis (e incabível a tutela específica); além disso, o fundamento da dignidade humana do devedor estaria sendo empregado de modo exagerado (somente quando esta corresse risco efetivo caberia sua invocação, o que não ocorre sempre) e antiquado (típico dos primórdios do instituto da astreinte, na França do século XIX).

Mas à segunda corrente não assiste melhor sorte: a existência do mecanismo do cumprimento por terceiro nas dívidas de fazer fungíveis não o torna necessariamente o único à disposição do credor (e do Juiz), ainda mais quando se pode imaginar um sem número de casos em que o cumprimento por terceiro, ainda que teoricamente possível, não se mostra desejável ou recomendável (e.g., do ponto de vista da celeridade, bastando imaginar a hipótese em que os terceiros com expertise residam em outro estado).

Portanto, a razão está, em verdade, com a terceira corrente: a astreinte tem aplicabilidade tanto em sede de dívidas de fazer fungíveis como em sede de dívidas de fazer infungíveis. Essa solução, ademais, atende a dois princípios do Direito das Obrigações (ou talvez postulados, no sentido empregado por Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2014, p. 163 e ss.) que devem ser aqui lembrados: o princípio teleológico da satisfação do credor (que está a receber todos os meios de que necessita para sua satisfação), e o princípio da menor agressão possível à esfera jurídica do devedor (o cabimento da multa periódica nas duas subespécies não é sustentado levianamente, mas justificadamente). É positivo, portanto, que a jurisprudência do STJ venha consagrando essa terceira vertente (cf. REsp 6.314, DJU 23.05.1991; REsp 521.184, DJU 24.08.2004).

(Continua na próxima coluna…)

Marcel Edvar Simões

Procurador Federal, Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA em São Paulo. Bacharel e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor de Direito Civil na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Membro do IDP, do IBDCivil e da ADFAS.

Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Cadastra-se para
receber nossa newsletter