APAC – Uma ilha de possibilidades: Direitos Humanos no sistema carcerário.

Coluna (Re)pensando os Direitos Humanos, por Ralph Schibelbein*, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

       Para quem se debruça sobre as problemáticas da segurança pública no Brasil, parece evidente que a política de encarceramento em massa é um ponto nevrálgico da violência no país. Para além de um resquício escravocrata, segmentado para pretos, pobres da periferia, a super população prisional brasileira, em grande parte, alavancada pela guerra às drogas, não possui expectativa de ressocialização. Significa então que investimos tempo, esforços e dinheiro em um sistema ineficaz, pra dizer o mínimo. E que mais do que reduzir, o que faz é aumentar o problema, violando a Constituição Federal, a Lei de Execução Penal e os Direitos Humanos.

Foto: Pixabay

       Prisões tomadas pelas facções, taxas de reincidência acima de 70% e aumento exponencial do encarceramento nas últimas décadas são sinais que devemos repensar a temática. Para além de uma mídia sensacionalista policialesca, do populismo penal e do quanto pior melhor, trazemos a reflexão para o campo da ciência e das evidências. Como alternativa, ciente de suas contribuições e de seus limites, queremos abordar o método APAC. (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado).

       A APAC nasce em 1972, na cidade de São José dos Campos – SP, através de um grupo de 15 voluntários cristãos, sob a liderança do advogado e jornalista Mário Ottoboni, no presídio Humaitá, para evangelizar e dar apoio moral aos presos. A inexperiência no mundo do crime, das drogas e das prisões proporcionou a criação de uma experiência revolucionária. Quando de sua criação, a sigla significava “Amando o Próximo Amarás Cristo.”

       Com a intenção de humanizar a pena de prisão, da valoração humana baseada na evangelização, resolveram criar o método APAC para ajudar os presidiários, inicialmente, da sua cidade. Tiveram a primeira oportunidade quando uma greve assolou a cidade e o juiz de direito entregou alguns presidiários, que não tinham onde ficar, para ficar sob os cuidados desse grupo de pessoas a pedido do presidente do APAC.

       No ano de 1974, a equipe que constituía a Pastoral Penitenciária, concluiu que somente uma Entidade Juridicamente organizada seria capaz de enfrentar as dificuldades e as vicissitudes que permeavam o dia a dia do presídio e assim foi instituída a APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, uma entidade jurídica sem fins lucrativos, com o objetivo de auxiliar a Justiça na execução da pena, recuperando o preso, protegendo a sociedade socorrendo as vítimas e promovendo a Justiça restaurativa.

       A FBAC – Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados foi fundada em São José dos Campos/SP no dia 09/07/1995, sob a presidência de Mário Ottoboni. É a entidade que congrega, orienta, fiscaliza e zela pela unidade e uniformidade das APACs do Brasil e assessora a aplicação do Método APAC no exterior. Está filiada à Prison Fellowship International – PFI, organização consultora da ONU para assuntos penitenciários.

       Atualmente, sob a coordenação da FBAC existem mais de cinquenta APACs presentes em sete estados brasileiros. Elas podem se encontrar em diferentes estágios, que vão desde somente organizada juridicamente e fazendo trabalho de mobilização, até as que já possuem seu próprio Centro de reintegração social e trabalha com regimes fechado, semiaberto e aberto.

       Tendo como visão humanizar o cumprimento das penas privativas de liberdade, oferecendo ao condenado condições de recuperar-se e, ainda, proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a Justiça restaurativa a FBAC tem como meta principal consolidar as APACs existentes e desenvolver estratégias para implantação do método APAC em todas as comarcas do Brasil.

       A missão é congregar as APACs do Brasil e assessorar as APACs do exterior, mantendo a unidade de propósitos das Associações, e orientar, assistir, fiscalizar e zelar pelo fiel cumprimento da metodologia APAC.

       Todas APACs seguem o método baseado em 12 fundamentos: Participação da comunidade; Recuperando ajudando recuperando; Trabalho; Espiritualidade; Assistência jurídica; Assistência à saúde; Valorização humana; A Família; O Voluntário e o curso para sua formação; O Centro de Reintegração Social (CRS); Mérito; Jornada de libertação com Cristo.

       O método APAC embora não seja tão recente (criação em meados dos anos 1970) ainda é pouco popular no Brasil. Até mesmo entre pessoas que trabalham com assuntos como educação prisional, o programa não é muito conhecido. Há algumas pesquisas sobre a associação e poucas reportagens na mídia. O método é mais conhecido no estado de São Paulo e principalmente no de Minas Gerias, o estado em que surgiu a proposta e onde mais se concretizou, respectivamente.

       Laura Jimena Ordóñez Vargas, colombiana que mora no Brasil, em sua pesquisa etnográfica de doutorado afirma que:

       As APACS são as únicas prisões que aspiram serem consideradas plenamente legais: excepcionalmente são um exemplo de obediência a legislação relativa a execução penal e, por isso, se lhes outorga o adjetivo de prisões alternativas. Assim, elogiadas e celebradas pelo seu significativo avanço na promoção dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, as APACS  atualmente, são replicadas como política pública penitenciária do estado de Minas Gerais, e sua expansão atinge outros estados brasileiros e países do mundo[1]

       Em uma verdadeira imersão em três APACS mineiras (Itaúna, masculina e feminina e a masculina de Santa Luzia) Vargas a partir de um olhar antropológico estuda a possibilidade de humanização atrás das grades.

       As APACS representam, sob vários pontos de vista, uma inequívoca vantagem sobre o sistema prisional dominante. Neste sentido, há que se celebrar os avanços obtidos e aprender com eles, sendo justificável que se lute para que os pontos positivos dessa reforma se estendam ao conjunto do sistema. As APACS podem ser pensadas como iniciativas modelo, de tipo piloto, que devem ser reconhecidas, não obstante as criticas e correções de rumo que se haveria de fazer para readequar e dar escala ao que se identifica como configurado avanço no sistema prisional[2]

       José do Nascimento Lira Júnior em sua dissertação de mestrado analisa o papel da religião dentro das APACS na recuperação dos indivíduos que participam da instituição. A religião cristã está presente fortemente desde a fundação e permeia os valores do método. Uma das principais críticas que se fazem à instituição é justamente sobre o papel da religiosidade.

       Lira Júnior questiona:

       Condenados que confessam outras religiões não cristãs, como o judaísmo e o islamismo, por exemplo, podem se adequar a um método que, tanto na teoria como na prática, é baseado em princípios puramente cristãos? Por um lado, na teoria, não existe imposição religiosa, por outro lado, na prática, percebe-se que as atividades religiosas na APAC são obrigatórias uma vez que são encaradas como ato socializador devendo contar com a participação de todos os recuperandos[3]

       Lira Junior realizou um estudo de caso da APAC Itaúna – Minas Gerais em 2009. Esta instituição é considerada um modelo apaqueano, vista como a mais antiga e consolidada atualmente. Existindo há mais de trinta anos, a APAC de Itaúna hoje concentra também a sede da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenado (FBAC), órgão que dirige e orienta as APACS de todo o país.

       A APAC de Itaúna funciona em um prédio próprio, administrando os três regimes de cumprimento de pena: fechado, semiaberto e aberto, sem a presença de policiais militares, civis, ou de agentes penitenciários. Com um índice de reincidência inferior a 10% a APAC de Itaúna tornou-se referência em nível nacional e internacional, no tocante à recuperação de presidiários.

       Ralph Schibelbein, professor e pesquisador da educação no método APAC afirma também algumas curiosidades sobre os Centros de Reintegração Social (CRS) da região sul do Brasil. Comentando sobre seu estudo de caso na APAC Barracão, no Paraná, diz

       Apresentaram-me sua horta, onde além de ser uma ocupação e terapia, sai a salada que consomem diariamente. Ao lado da horta havia uma escada de madeira que era mais alta que o muro. Havia também muitas ferramentas como enxadas, foices e outros objetos cortantes. Talvez por ver minha expressão de curiosidade, os funcionários me informaram que por mais incrível que pareça, esses materiais não causavam nenhum medo de violência ou tentativa de fuga.[4]

       Frankarles Genes De Almeida e Sá realizou um estudo em que procurou demonstrar o método APAC de São Paulo como uma das soluções ao crítico contexto prisional brasileiro. A partir do estudo da associação paulista o autor defende que o método seja debatido e aplicado, sobretudo pelos dados referentes à reincidência, rebeliões e ressocialização. Segundo De Almeida o modelo APAC deveria ser instaurado e difundido no país pelos seguintes motivos:

       Por ser um método que têm como índice de reincidência menos de 10 % em todos os locais que é usado. Por conseguir fazer que de fato o preso volte a ter uma vida normal na sociedade. Os índices de rebeliões são pouquíssimos ou até mesmo nenhum em muitos casos. Por realmente cumprir o que demanda a lei 7210. Dar a dignidade merecida, estabelecida constitucionalmente. Ser um método de participação coletiva, baseada no voluntariado.[5]

       Embora as reportagens que existem sobre a associação, assim como os trabalhos acadêmicos e depoimentos de pessoas envolvidas direta ou indiretamente no processo, serem majoritariamente elogiando e reconhecendo a beleza e eficiência do método, também existem críticas. Uma das críticas mais contundentes é a Maria Soares Camargo e do Frei Betto. Segundo Camargo, que questiona a vinculação fundamentalmente católica, tal vinculação deixa clara a concepção triunfal do cristianismo, a volta da cristandade para solucionar os problemas humanos. Frei Betto, que escreveu o prefácio do livro de Camargo, comenta criticamente:

       O método APAC parece-se a uma “laranja mecânica” onde o preso é minuciosamente programado, a ponto de não obter espírito crítico, critério básico da liberdade de consciência. Formam-se seres “cristãos”, nos quais a religião é o carimbo de garantia da não reincidência. A cada “conversão”, a sociedade livra-se de mais um marginal que poderia ameaçá-la.[6]

       Além do questionamento sobre o radicalismo religioso, também há críticas sobre a quantidade reduzida de recuperandos atendidos pelas instituições pelo modelo de tratamento. Lira Júnior afirma que a APAC não trabalha com superlotação, portanto não comportaria mais 30 detentos; 2º) porque o método APAC, conforme opinião de vários entrevistados, é excelente, mas funciona apenas para aqueles delinquentes que desejam ser recuperados e que querem uma nova chance. A maioria das pessoas que se envolvem com a APAC acredita no método não como uma ideologia que está em processo de aperfeiçoamento, mas como uma técnica infalível desde que seguida à risca por todos aqueles que se envolvem, sejam voluntários ou funcionários.[7]

       Mesmo com algumas críticas, parece-nos evidente a diferença ao compararmos as características de tratamento entre o sistema carcerário comum e as APACs, evidenciadas tanto por trabalhos acadêmicos quanto por reportagens midiáticas.

       Nesse sentido Vargas (2011) afirma:

       O preso que estava dormindo no chão, tomando banho de agua fria, comendo com a mão e algumas vezes doente, passa a dormir em celas arejadas e limpas, com banheiros e agua quente. Comparte a cela tão somente com mais quatro presos e cada um tem a sua própria cama. Passa a comer em refeitórios com talheres e boa comida. Fica normativamente o dia inteiro fora das celas, com exceção dos que estão comprovadamente doentes que são autorizados a permanecerem nelas até se restabelecerem. A transferência de um sistema para o outro significa mudanças radicais nas condições materiais, físicas e psíquicas, inegavelmente muito melhores para os cumpridores das penas. Talvez a primeira e mais evidente tecnologia iniciatória dos sujeitos encarcerados das APACS é devolver aos recuperandos a condição de humanos da qual foram despojados no sistema comum, estabelecendo a fronteira entre o humano e o inumano entre ambos os sistemas[8]

       O método APAC está aos poucos se tornando mais visível, porém mesmo em publicações acadêmicas quanto em reportagens midiáticas, o destaque é dado para as APACS do Estado de Minas Gerais, em especial a de Itaúna. Mais recentes na região sul do Brasil, encontramos APACs em

       Em sua dissertação de mestrado, Schibelbein fez uma análise sobre o aspecto da educação no método a partir de um estudo de caso da APAC de Barração (PR). Aspectos de uma relação baseada no diálogo, cuidado e solidariedade estão na base da metodologia apaqueana. Relações humanizadas e humanizadoras fomentam o exercício da cidadania. Segundo Schibelbein (2016) “APAC enquanto uma entidade civil busca através de cidadãos a proteção da própria sociedade, defendendo assim um empoderamento dos sujeitos a interferir positivamente na comunidade onde fazem parte”.[9] Se a APAC não é uma utopia (tal qual falava Thomas Morus), ao menos se coloca como um passo importante. E uma ilha de possibilidades.

 

[1] VARGAS, Laura Jimena Órdoñez. É possível humanizar a vida atrás das grades? Uma etnografia do método de gestão carcerária APAC. Brasília, 2011. (Tese de Doutorado – Antropologia).

[2] VARGAS, Laura Jimena Órdoñez. É possível humanizar a vida atrás das grades? Uma etnografia do método de gestão carcerária APAC. Brasília, 2011. (Tese de Doutorado – Antropologia).

[3] LIRA JUNIOR, José do Nascimento. Matar o criminoso e salvar o homem: o papel da religião na recuperação do penitenciário. (Dissertação de mestrado – ciências da religião – Universidade Mackeinze). São Paulo, 2009.

[4] SCHIBELBEIN, Ralph. Educação e Sistema Carcerário: um olhar sobre a educação no processo de ressocialização na APAC Barracão. (Dissertação de Mestrado – Educação –UDE Montevidéu/UI, 2016).

[5] DE ALMEIDA, Frankarles Genes. A Importância do método de associação e proteção aos condenados (APAC) para o sistema prisional brasileiro.  Revista Direito & Dialogicidade. Universidade Regional do Cariri – URC.  Ano III, v.III, dez. 2012.

[6] CAMARGO, Maria Soares. Terapia penal e sociedade. Campinas: Papirus, 1984.

[7] LIRA JUNIOR, José do Nascimento. Matar o criminoso e salvar o homem: o papel da religião na recuperação do penitenciário. (Dissertação de mestrado – ciências da religião – Universidade Mackeinze). São Paulo, 2009.

[8] VARGAS, Laura Jimena Órdoñez. É possível humanizar a vida atrás das grades? Uma etnografia do método de gestão carcerária APAC. Brasília, 2011. (Tese de Doutorado – Antropologia).

[9] [9] SCHIBELBEIN, Ralph. Educação e Sistema Carcerário: um olhar sobre a educação no processo de ressocialização na APAC Barracão. (Dissertação de Mestrado – Educação –UDE Montevidéu/UI, 2016).

 *Ralph Schibelbein é Professor, Mestre em Educação (UDE/ UI – Montevidéu- 2016), onde estudou a relação da educação e dos Direitos Humanos com o processo de (re)socialização. Pós-Graduado em História, Comunicação e Memória do Brasil pela Universidade Feevale (2010), sendo especialista em cultura, arte e identidade brasileira. Possui licenciatura plena em História pelo Centro Universitário Metodista IPA (2008) e pela mesma faculdade é graduado também em Ciências Sociais (2019). Atualmente é Mestrando em Direitos Humanos na Uniritter e cursa licenciatura em Letras/Literatura (IPA). 

 

 

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