A razão da idade: mitos e verdades.

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

A Razão da Idade: Mitos e Verdades. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001, 248 p.

 

 

        Em Lido para Você anterior, com minha leitura sobre o trabalho Sujeitos de Direito Invisíveis: o Clamor Silenciado de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, de Gabriela Maria Fernandes Mendonça. Dissertação de Mestrado.  Brasília: UnB/Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares-CEAM/PPGDH-Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2019, 107 p., conclui afirmando que a Dissertação aposta no sujeito da emancipação de si próprio, projeto em construção, no que me faço aliado (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Construção Social e Teórica da Criança no Imaginário Jurídico. In A Razão da Idade: Mitos e Verdade. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001), livro editado num tempo de Ministério da Justiça, mesmo em governo de orientação econômica neoliberal (FHC) mais cidadania e promoção dos direitos humanos (PNDH1; PNDH2) e menos interior e segurança, sobre o qual, em breve, o terei  Lido para Você.

        Lembro isso para retomar a promessa ali anunciada de escrever um Lido para Você, exatamente sobre a obra que agora ofereço como sugestão de leitura, importante na conjuntura de enorme retrocesso na efetivação de direitos segundo uma estratégia de governança de ataques contínuos à Democracia, à Constituição, ao Estado de Direito, aos Direitos Fundamentais e aos Direitos Humanos.

        Naquele texto, em função da obra de referência para a leitura, eu salientava nesse tempo de desdemocratização e de desconstitucionalização, o assalto em especial aos direitos das crianças e dos adolescentes tendo como alvos táticos a flexibilização do ECA e a tentativa de redução da maioridade penal.

        Em relação a esse ponto – a redução da maioridade penal – registrei no texto as iniciativas em curso. Recupero o que então anotei: há poucos meses (março de 2019), o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determina a redução da maioridade penal para 14 anos para crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, organização criminosa, associação criminosa e “outros definidos em lei“. De acordo com mesma proposta, a maioridade penal para os demais delitos também cai, mas para 16 anos.

        Essa iniciativa guarda plena sintonia com o pensamento do Presidente, pai do Senador e membro de seu Partido que, no mesmo dia 8/8, data do julgamento no STF, em declaração feita tendo a seu lado o Ministro da Justiça, anunciou que conversará com o presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM-AP) para que os parlamentares aprovem a proposta de reduzir a maioridade penal para infrações como tráfico de drogas, lesão corporal seguida de morte e sequestro:  “Eu vou pedir para o Davi Alcolumbre, o presidente do Senado Federal, que lá tem uma Proposta de Emenda da Constituição que passou na Câmara, para reduzir a maioridade penal para alguns tipos de crime. Não era o que eu gostaria. Eu gostaria que passasse simplesmente para 16 anos, e a maioridade plena seria a partir dessa idade. Mas a Câmara botou ali, para ter acordo com alguns partidos, que só por exemplo tráfico de drogas, lesão corporal seguida de morte, sequestro, que essa pessoa seria julgada como se adulto fosse”. O Presidente também afirmou que a proposta servirá para “deixar as pessoas na cadeia”. “Eu espero que o Davi Alcolumbre, vou pedir para ele botar em pauta, ele é o dono da pauta no Senado”, afirmou. “É mais um passo. Se passar, é mais uma forma de deixar na cadeia essas pessoas.” O ministro Sergio Moro, ao seu lado, também se mostrou favorável à medida. “Acho que, para crimes graves, cabe uma discussão da redução da maioridade penal.” (https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-pede-que-senado-aprove-reducao-da-maioridade-penal/).

        Assim, enquanto o STF, acolhendo a corrente que destaca a dimensão educadora do ECA, o sentido pedagógico das medidas sócio-educadoras que realizam o fundamento da proteção e da humanização dos sujeitos eventualmente em conflito com a lei, o intuito das políticas públicas e de segurança continua a seguir o princípio de repressão, de retribuição punitiva, de criminalização do social, de higienização, aliás repudiadas pelo Supremo, dando ressonância a atitudes que bem se acomodam ao mecanismo de purgação das próprias mazelas que consuma, dissimulando suas responsabilidades no instrumento expiatório que apazigua as suas consciências, com o sacrifício de bodes expiatórios previamente selecionados e estigmatizados num processo que se inicia com a internação criminalizadora mas que tolera docemente a solução de extermínio.

        Por isso a importância de resgatar o texto agora Lido para Você. Editado em 2001 ele ganha enorme atualidade porque naquela ocasião como agora, os discursos criminalizadores voltam a se organizar, incrementando do senso comum uma retórica que passa a ser encampada pela governança e que se espraia para os âmbitos legislativo e judiciário que implementam, avaliam e sancionam políticas públicas, de novo numa gramática que junta numa mesma chave as categorias mitos e verdades.

        O livro, organizado para contrapor posições com “embasamento técnico, legal e pedagógico” ao emergente movimento que começava a se expressar em “proposições no Congresso Nacional, que defendem a redução da maioridade penal, no rastro da desinformação, da segregação e do preconceito e, ainda, da cultura de violência que permeia a nossa sociedade”, reuniu material relevante, escreveram na Apresentação o Secretário de Estado dos Direitos Humanos (MJ) Gilberto Vergne Saboia e o Presidente do Conanda Claudio Augusto Vieira da Silva, “para refutar o imaginário popular de um idealismo inconsequente, mas sabemos que o embate se trava no campo político, onde as conquistas exigem estratégias, ações pertinentes e articulação de todos os interessados na relevante defesa de direitos dos adolescentes em conflito com a lei, em consonância com os avanços democráticos do país” (p. 11-12).

        Contendo depoimentos colhidos em eventos, audiências e textos autorais de um arco plural de interpretes desse campo o livro oferece um sumário altamente qualificado importante para ainda servir de contraponto a tendências mais agressivas da conjuntura hostis ao reconhecimento da titularidade de direitos de crianças e adolescentes, com recuo evidente nos avanços democráticos do país.

        Para esse objetivo, vale ter à mão, esse formidável catálogo de posicionamentos: Depoimento na audiência pública sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, realizada em 10/11/1999, Antônio Nabor Areias Bulhões; A Razão para manter a maioridade penal aos 18 anos, Dalmo de Abreu Dallari; A idade penal mínima como cláusula pétrea, Eugênio Couto Terra; Parecer à proposta de emenda constitucional, visando a reduzir o limite etário da inimputabilidade penal, Fábio Konder Comparato; A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal, Flávia Piovesan; A inimputabilidade penal como cláusula pétrea, Gercino Gerson Gomes Neto; A desnecessária e inconstitucional redução da maioridade penal, Goffredo da Silva Telles Júnior e Eros Roberto Grau; Imputabilidade e maioridade penal, Ivette Senise Ferreira; A construção social e teórica da criança no imaginário jurídico, José Geraldo de Sousa Junior; Reduzir a idade penal não é a solução!, José Haroldo Teixeira da Costa; Inimputabilidade não é impunidade, Jussara de Goiás; A impossibilidade de alteração do artigo 228 da Constituição Federal: a busca dos ideais constituintes e de seus valores democráticos, Luiz Alberto David Araújo; Redução da idade de imputabilidade penal – aspectos constitucionais, Márcia Milhomen Sirotheau Corrêa; A idade de responsabilidade criminal dos adolescentes, Maria Ignês Bierrenbach; Os desafios da implantação das medidas socioeducativas no Brasil, Maria Stela Santos Graciani; Audiência pública sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, realizada em 10/11/1999, Miguel Reale Junior; Sim à garantia para a infância e juventude do exercício dos direitos elementares da pessoa humana. Não à diminuição da imputabilidade penal, Olímpio de Sá Sotto Maior Neto; Infância ameaçada, Rita Camata; Delinquência juvenil se resolve aumentando oportunidades e não reduzindo idade penal, Túlio Kahn.

        Um time de peso, cujo lastro para formar opinião teórico-política é indiscutível e que tem sido convocado até o presente para intervir criticamente na cena social e acadêmica. A esse time, no livro, se juntaram manifestações de movimentos e de entidades, transcritas na obra sob a forma de manifestos e moções. Nos manifestos anota-se: Comitê Gaúcho Contra a Redução da Idade Penal; Comitê Pernambucano Contra a Redução da Idade Penal; Imputabilidade e Cidadania – Forum DCA; Juristas pela Manutenção do Art. 228; Manifestos de Belém pela Infância; Movimento Contra a Redução da Maioridade Penal do Estado de São Paulo; Por Que Não Reduzir a Idade Penal – Frente de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Minas Gerais; Pronunciamento da CNBB Sobre o Rebaixamento da Idade Penal; Respeito às Crianças e aos Adolescentes, na Voz da Cidadania Brasileira – Entidades de Promoção dos Direitos Humanos de Minas Gerais.

        A minha participação no livro, conforme o título de meu texto indica, não apenas reforça o entendimento de que a idade de imputabilidade é cláusula pétrea insuscetível de revisão mesmo por meio de emenda constitucional. Mas se centra, fortemente, nas questões sociais que circunscrevem o tema, que afetam o enfoque jurídico que deve considera-las.

        Conforme saliento, entre os mais destacados trabalhos produzidos no programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília tem relevo o da professora Márcia Milhomens Sirotheau Corrêa, também membro do Ministério Público do Distrito Federal, originalmente dissertação, logo publicada pelo selo prestigioso de Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, Caráter Fundamental da Inimputabilidade na Constituição.

        Desenvolvido como estudo vinculado à linha de pesquisa do programa, cujo eixo temático era voltado para a realização da Constituição, o trabalho de Márcia Corrêa é forte na fundamentação do ponto de vista claramente plasmador do imaginário dos juristas, de que a redução da maioridade penal tornou-se um impossível jurídico porque nem por emenda constitucional esse limite etário pode ser diminuído.

        A Autora, que tem manifestação no livro agora Lido para Você, traz por certo que a inimputabilidade penal antes dos 18 anos é uma posição jurídica subjetiva, constituindo-se em núcleo essencial de um direito que veio a ser petrificado por força do artigo 60,  par. 4o., inciso IV, da Constituição.

        Trata-se, disse antes, de entendimento amplamente consagrado, reiteradamente manifestado , em face de discussões recorrentes trazidas à agenda do Congresso Nacional, como por exemplo, a que se apresentou com a Proposta de Emenda Constitucional 171/93, que tinha por objeto reduzir a idade penal para 16 anos. Em artigo altamente esclarecedor, no qual desmistifica à luz de dados do Ilanud – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, o uso alarmista de ocorrências infracionais para inflar as teses criminalizadoras do comportamento de crianças e adolescentes, com o intuito de deslocar os institutos e procedimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente para o Código Penal, Oscar Vilhena Vieira (Um atentado contra o futuro, Correio Braziliense, Brasília, 24/10/2001, p. 5) realça uma vez mais que “a garantia do artigo 228 da Constituição, que expressamente estabelece a idade penal aos 18 anos, abriga uma cláusula pétrea, e qualquer atentado a ela constituirá fraude constitucional”.

        A PEC foi arquivada, como deveria ser. Mas a conspiração criminalizadora da infância apenas hiberna e nos seus despertares, nunca perde a oportunidade para novos ataques a esse princípio fundamental. Daí a necessidade de salvaguardar os argumentos e os precedentes, para fortalecer a cidadela dos direitos fundamentais e dos valores democráticos.

        Assim que o estudo de Márcia M. Sirotheau Corrêa encontrou ressonância e acolhimento hermenêutico na segura orientação de seu diretor de tese na Faculdade de Direito da UnB, professor Gilmar Ferreira Mendes, hoje ministro do STF e que, não por caso, mas por coerência, atualizou o entendimento de sua discípula, conforme se viu no julgamento de 8/8, com seu voto e com a unanimidade do Plenário rejeitou uma ação apresentada pelo PSL, partido base do atual Governo, que flexibilizava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e facilitava a apreensão de menores para averiguação.

        O ministro Gilmar Mendes, entendeu que a Constituição garante a liberdade para todos os cidadãos e argumentou que a ação busca eliminar esse direito a crianças e adolescentes. “A implementação de uma política higienista que, em vez de reforçar a tutela dos direitos dos menores, restringiria ainda mais o nível de fruição de direitos, amontoando crianças em unidades institucionais sem qualquer cuidado ou preocupação com o bem-estar desses indivíduos“, destacou o Ministro em seu voto, afirmando ainda “que a flexibilização do ECA enfraqueceria as regras do regime democrático e do Estado de direito”.

        A coerência atesta-se, tendo em conta o erudito prefácio que o ministro-professor ofereceu ao livro de Márcia Corrêa, fruto da Dissertação, onde resgata os fundamentos das chamadas “garantias de eternidade” das quais se extraem os princípios de “continuidade e de identidade da Constituição”, revelando o quanto estão próximas as ideias de “limites materiais de revisão e de cláusulas pétreas”. E afinal, abonando o entendimento exposto na tese para afirmar que “toda esta construção permite à autora alicerçar o seu raciocínio em torno do caráter de garantia fundamental da inimputabilidade do menor de 18 anos, tal como se pode depreender da síntese conclusiva do trabalho”.

        Evidentemente, não há ingenuidade nessa postura hermenêutica que impeça reconhecer os fatores de atualização de enunciados normativos sob o impulso de transformações sociais e que se possam acolher ao abrigo de mudanças constitucionais, sob pena dos assaltos corrosivos, como sustentou em arguição na banca examinadora o professor Inocêncio Mártires Coelho, ex-Procurador-Geral da República, decorrentes das “revoltas dos fatos contra os códigos”.

        A Autora preserva, entretanto, a sua convicção, aludindo à intocabilidade do núcleo essencial do direito à inimputabilidade penas antes dos 18 anos, por meio de revisão ou de emenda, ainda que reconheça que a subjetividade aí inscrita não pode ser a priori e definitivamente fixada. Daí que o professor Gilmar Ferreira Mendes, no prefácio referido, contemporize um trânsito possível por atualização constitucional, ressalvando o ponto de vista adotado na tese: “Esse juízo permite à autora concluir pela existência de uma certa flexibilidade no que se refere à identificação dos direitos protegidos por cláusula pétrea”.

        O que reforça a conclusão da Autora é, portanto, o sentido jurídico que se inscreve no imaginário constitucional, não só teoricamente, mas como consideração social, em processo constituinte de “situação concreta do indivíduo historicamente datado e situado”, a justificar a “proteção de determinadas posições e relações jurídicas”.

        É exatamente nesse ponto de intersecção que se dá o processo, que pode vir a ser constituinte, sustento eu, de construção social das categorias criança e adolescente, no quadrante em que se formulava o apelo de Oscar Vilhena Vieira, a partir do seu artigo citado: “Melhor seria que os senhores legisladores assumissem parte da responsabilidade que lhes cabe pela miséria e barbárie a que estão submetidos nossos jovens, buscando agir de forma mais eficaz e moralmente legítima para a solução do problema do que atentando contra o futuro das novas gerações”.

        A educadora paulista Maria Lúcia Prandi, coordenadora da Frente Parlamentar Estadual pelo Fim de Todo Tipo de Violência e Exploração contra Crianças e Adolescentes, em texto muito esclarecedor escrito para o Boletim Juízes Para a Democracia, publicação oficial da Associação Juízes para a Democracia, ano 5, n. 24, abril/junho 2001 – O Mito do Rebaixamento da Idade Penal – refere-se à criança e ao adolescente como expressões de um estágio do desenvolvimento do “processo de vida”, mas que se insere também numa realidade de criação social e de produção de sentido que permitem o “desenvolvimento de uma identidade social positiva”.

        Em outras palavras, a categoria criança é de algum modo uma criação social e histórica e não apenas um fato biológico. Não é o que apenas é, parafraseando Hegel, mas o que ela se torna em sua vida, realizando-se valorativamente, a partir das contradições que a constituem inicialmente.

        Emílio Garcia Méndez, respeitado oficial de projetos do Unicef e reconhecido criminólogo, levou às últimas consequências esse processo demonstrando, num texto antológico El Niño y el Sistema de la Justicia Penal: Elementos para una Historia Latinoamericana, publicado na coletânea Criminología en America Latina, organizada por Lola Aniyar de Castro, para Unicri – Instituto Interregional de Naciones Unidas para Investigaciones sobre el Delito y la Justicia, Roma, mayo 1990, o nascimento de uma nova categoria, a criança, retirada como identidade do mundo dos adultos.

        Para ele, que confronta seus estudos analíticos com percepções que incluem análises históricas como as de Philippe Ariès, a partir do exame de pinturas (retratos de famílias) que captam o universo de sistemas sociais e os lugares dos indivíduos nesses sistemas, uma tese plenamente reconhecida é a de que na sociedade tradicional, e até já bem entrado o século XVI, a infância tal como ela é entendida hoje não existia: “refutando las tesis de la psicologia positivista que vinculan la categoria niñez a determinadas características de la evolución biológica, el enfoque histórico la presenta como el resultado de una compleja construcción social que responde, tanto a condicionamentos de caráter estrutuctural cuanto a sucessivas revoluciones en el plan de los sentimentos”.

        É um percurso de fato dramático. Nele atuam imperativos de procedência diretamente estrutural, como as de ordem econômica, ao miniaturizar o trabalhador espoliado, uma não-criança apta às peculiaridades da produção nas minas de carvão ou nos teares de uma Europa forjadora de um proletariado abundante necessário à primeira revolução industrial, sem identidade e sem direitos. Atuam também imperativos de ordem cultural que fazem contrastar o processo de desenvolvimento da noção de criança, num largo itinerário no qual se insere a luta evidente pela diminuição de seu sofrimento moral e físico, com a tolerância nas relações entre pais e filhos tornando, por exemplo, o infanticídio uma prática tolerada e até considerada normal até o século XIX (Méndez, op. cit.).

        Não é demais aludir ao acontecimento em si emblemático, recolhido por Emílio Méndez, que coloca a Sociedade de Proteção aos Animais, de Nova Iorque, como protagonista de uma intervenção da sociedade civil para exigir do Estado atuação protetora em face de abusos sobre criança praticados por familiares. O fato realça a condição de formação de uma consciência social para assimilar novas categorias no imaginário da própria sociedade. O relato, devidamente documentado, da atuação da Sociedade de Proteção aos Animais, em 1875, mobilizando a opinião pública para a consciência de proteção à criança, a partir da subtração da menina Mary Ellen, de 9 anos de idade, do pátrio poder de familiares que a maltratavam, coincide, na narrativa do criminologo argentino, com a criação da New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, pré=condição de um processo político-cultural importante para que em 1899, por meio do Juvenile Court Act de Illinois, se criasse o primeiro tribunal de menores nos Estados Unidos.

        Mas não devemos perder as lições de Goffman, que descreveu pormenorizadamente o processo de estigmatização, caracterizando a sua funcionalidade, não apenas enquanto produz formas de classificação de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, mas porque, ao produzir estereótipos, cria bodes expiatórios, atribuindo-lhes papel sacrificial.

        Penso que as mobilizações de ontem e de hoje que se traduzem em propostas como as de redução da idade penal, encurtando o espaço valorativo da criança e da adolescência, se inscrevem nesse processo perverso. São, como disse Oscar Vilhena Vieira, “um atentado contra o futuro”. Tanto mais quando se camuflam em contrafação cultural, criando etiquetas despistadoras para acomodar consciências lenientes e mal acomodadas nas práticas de solidariedade. A fabricação (ver a propósito dessa expressão seu uso crítico caracterizado em várias dimensões do que denomina “perversidade institucional”, pode ser conferida em FALEIROS, Vicente. A fabricação do Menor. Revista Humanidades n. 12, ano IV, fevereiro/abril, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987) dos rótulos distintivos – menor, pivete, trombadinha, menino de rua – não absolve a responsabilidade social de quem se deixa levar por eles. Ao contrário, arma o agente do extermínio e se faz cúmplice da barbárie em consequência de uma razão indolente, fechada a buscar mediações alternativas para aprofundar a cidadania em expansão, ou para remarcar com o Ministro em seu voto mencionado (8/8), “que a flexibilização do ECA enfraqueceria as regras do regime democrático e do Estado de direito”.

        Para os que se sustentam a resposta penal para um problema que é civilizatório, fique a lição de Diderot contida na Carta sobre os cegos para uso dos que vêem e o significado pedagógico do experimento moral nela contido que se refere, em última análise, à incomunicabilidade de sentimentos entre seres humanos, sobretudo se os colocamos à distância ética da possibilidade de reconhecimento de seus atributos especiais dos quais derivam os vínculos de responsabilidade e de deveres que se estabelecem a partir deles. No caso, os nossos vínculos de responsabilidade e deveres que devemos ter para a com as crianças, com o nosso futuro, em suma.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

 

 

 

 

 

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