A imprensa como instrumento de dominação

Coluna Democracia e Política

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Privatização e liberalismo

No dia 9 de maio, Zero Hora realizou quatro reportagens que definem o perfil do jornal. No Informe Especial, Túlio Milman na nota “Catraca” anunciou que a prefeitura está prestes a lançar o edital para contratação de consultoria externa para reestruturação da Carris. Milman destacou o “prejuízo da Carris” no valor de 45,4 milhões cobertos com recursos do Tesouro, “agravando ainda mais a crítica situação das finanças da prefeitura”. Informe Especial destacou ainda que a empresa dá prejuízo a sete anos, acumulando 271,96 milhões. Mas não lembrou o argumento dos servidores de que uma empresa de referência tem preço.

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

A segunda foi a entrevista com Flávio Rocha, pré-candidato à Presidência pelo PRB. A reportagem é tudo que a direita imagina: com 60 anos, Rocha é o candidato do Movimento Brasil Livre, MBL, e como afirma a reportagem, é conhecido por pregar “a liberdade na economia e o conservadorismo nos costumes”. Defende o armamento da população, redução da maioridade penal, o fim do “marxismo cultural”, mas é como o “defensor da sabedoria suprema do livre mercado” que o candidato revela a que veio, o de ser o arauto do liberalismo.

O que é interessante na entrevista são os detalhes. Para Rocha o estado é um ninho de “parasitas”, “se tornou um Robin Hood às avessas”, “algo que precisa ser urgentemente reduzido”, ainda que não pareça contradição quando o próprio exige mais serviços de educação, saúde, justiça e polícia. Sua entrevista é clara, é dar um discurso de legitimidade a privatização como objetivo, exatamente o objetivo da consultoria relatado por Milman. Há, um esforço de contrapor, óbvio, outras interpretações a visão de Rocha,  o que é feito pela Jornalista Débora Ely ao entrevistado quando sugere o significado do apoio do MBL, de onde sai uma das mais preciosas interpretações do movimento “Admiro a maturidade intelectual do MBL”. E o pior vem em seguida: “Já ouvi dizer que sou o candidato do MBL, da Igreja Evangélica, da FIESP, do varejo, dos empresários. A cada alegação, sinto muita alegria do quão plural é minha candidatura”. Medo.

A terceira é o artigo de Darcy Francisco Carvalho dos Santos, “Impostos e Sociedade”, para quem ao longo do tempo “foram criadas vantagens funcionais muitas das quais já foram extintas ou estão em extinção na União e Estado, como licença-prêmio, incorporação de funções gratificadas e triênios”. Santos não se culpa por sugerir o caminho da precarização do serviço, o que a retirada de direitos significa. O texto dá o serviço publico como prejuízo como um dado, funcionando como um “novo nascimento” para a relação contratual entre servidores e Estado. Nada mais nefasto.

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

A quarta e última reportagem “O que pode mudar no funcionalismo”, de Marcelo Gonzatto, é de longe, o mais agudo ataque ao serviço publico. A fazer o levantamento das propostas de Marchezan para o funcionalismo,  segundo o governo “economizariam pelo menos 135 milhões do tesouro ao longo de quatro anos”. A reportagem arrola dos dados de economia, os valores são contabilizados como se fossem produto sem culpa de uma aritmética financeira dura e cruel.

Imprensa como agente de exclusão

O que as quatro reportagens têm em comum? Serem um ataque direto ao serviço público municipal. Sou servidor público municipal e me senti diretamente atingido pelas reportagens. Porquê? Porque em nenhum momento as reportagens se referem às origens, justificativas ou histórico das supostas “vantagens”. É aí que está o perigo, sequer a reportagem as trata como direitos, prefere tratar como “vantagens”, como “custo”. A novidade é: o servidor não é um recurso humano a ser valorizado, é um custo a ser reduzido. A desumanização é total. A ausência de cumprimento de acordos também.

Luís Felipe Miguel em Dominação e resistência (Boitempo, 2018) no capitulo intitulado “A estrutura da dominação” assinala a difícil convivência entre a igualdade política formal e a exclusão da maior parte dos cidadãos dos processos decisórios. Para Miguel, o liberalismo demarcou um campo do ordenamento político, e nesse sentido, a agenda da imprensa é um elemento decisivo nos mecanismos de dominação nas democracias representativas liberais, daí a necessidade de buscar formas de combatê-la. A hipótese aqui apoiada nas ideias de Miguel é: pela sua narrativa, a imprensa, em especial ZH, também é responsável pela produção da exclusão na capital.

Miguel usa três conceitos ao longo de seu texto para demonstrar sua tese que são úteis para entender o lugar de ZH na construção do discurso neoliberal da capital. O primeiro é o de “seletividade das instituições” de Claus Offe “As instituições políticas possuem uma seletividade própria, correspondente aos interesses do processo de valorização do capital”. Veículos da imprensa local como Zero Hora estão ligados à dependência estrutural em relação a acumulação privada, quer dizer, a imprensa dita “burguesa” é uma instância de seletividade, “na medida em que privilegia a expressão de interesses”. Não é assim no caso das reportagens apontadas? Não é da essencial de uma visão liberal o estado ser combatido e os servidores públicos execrados?

O segundo conceito é o de “campo político”. Entendemos aqui o campo jornalístico como o campo político que define um dentro e um fora, que estabelece formas legítimas de discursos ou minimizam os riscos de presenças perigosas. O discurso jornalístico tem a capacidade de deixar de fora o discurso de grupos subalternos, como servidores públicos e dar lugar aos discursos dominantes, como de empresários e seus representantes. Não é o que faz a todo instante Zero Hora nas reportagens assinaladas? Ora o discurso dominante neoliberal que deseja a privatização da Carris, ou o discurso que prega a retirada do Estado, sempre é um ator hegemônico colocado em posição de poder em relação a outro, dominado, subalterno, colocado em segundo lugar, como os servidores públicos.

O terceiro conceito usado por Miguel é o de Estado como ossatura material da luta de classes, o que significa que o estado não é neutro, mas arena de lutas da classe dominante e por esta razão, o esforço do Prefeito Marchezan em espelhar no poder público os desejos da classe dominante. Esta classe quer o extermínio dos servidores públicos. E o discurso de ZH, ao menos neste dia, espelhou com clareza como a imprensa local participa da exclusão política estrutural e da dominação.

Essa imprensa dita “burguesa” representa a seu modo, como afirma o autor, também o refluxo de outra imprensa, de esquerda, isto é,  o campo jornalistico acompanhou o refluxo dos partidos de esquerda. A Prefeitura, neste sentido, e seguindo a leitura dos autores inspiradores de Miguel, voltou a ser o “balcão de negócios” das classes dominantes, isto é, com Marchezan, é a classe burguesa que participa diretamente do aparelho de estado. A Prefeitura, nesse sentido, é útil à acumulação capitalista e as políticas públicas do governo se tornam elementos legitimadores dessa posição.

No sentido dado por Miguel, o modelo de Claus Offe explica porque há uma dependência entre o Prefeito e os investidores privados, ou porque Marchezan insistentemente “presta contas” aos empresários. A dependência estrutural implica em atacar todas as situações que sejam limitantes para o capital, o que inclui a ação do Estado nos campos em que a iniciativa privada pode atuar, ou a recusa do aumento de impostos para prestação de serviços públicos, etc.

O exemplo de Miguel para política então torna-se interessante quando aplicado à imprensa. Ele sugere imaginar o funcionamento de determinadas instituições como algoritmos. Se for assim, a imprensa local burguesa age como um algoritmo, isto é, é capaz de filtrar projetos e reivindicações “utilizando critérios implícitos, relacionados com sua origem social”. Não é exatamente isso que ocorre com as reportagens indicadas, de que são a expressão de uma filtragem, que apesar da defesa de um jornalismo isento, na verdade a imprensa local favorece de forma sistemática determinados interesses?

Foto: Pixabay

Foto: Pixabay

Para imprensa, não somos todos iguais. De um lado, há os legítimos interesses do prefeito, das forças neoliberais e do mercado. De outro, há os interesses ilegítimos de servidores, numa leitura conservadora que jamais seria admitida pelos clássicos do jornalismo. O campo jornalístico é um espaço de exclusões? É claro que sim! E também é claro que há bons jornalistas em ZH, de esquerda inclusive, que lutam para que a visão do veículo seja a mais democrática possível ainda que, hajam interesses claramente envolvidos e visões de mundo – e de mercado – defendidas à exaustão.

Uma estratégia deste discurso hegemônico do jornal é a exclusão do discurso dos dominados do espaço publicado. Assim que vi as matérias, elaborei um artigo de opinião e o enviei à ZH. A resposta é que não seria publicado porque há cerca de 7 dias publiquei uma nota no leitor. Uma nota é, como se sabe, bem diversa de um artigo. Não se tratou de discutir a validade dos argumentos, a necessária contraposição aos autores, simplesmente, é uma exclusão.

A conclusão é que Zero Hora é um espaço aliado à ideia de defesa de mercado. É sua natureza. Só podemos lutar para que, nas frestas de sua ideologia, após barganha e negociação, respostas sejam colocadas a reportagens que atacam servidores, que atacam instituições, pois se trata sempre, no caso da imprensa, de uma disputa por espaços de jornal que se faz por disputa de projetos políticos. Na medida do acirramento da luta pela opinião pública, aumenta a exclusão do discurso opositor.É preciso reagir.

Para se saber de que lado está ZH, basta então acompanhar a rotina do jornal e as preferências que expõem a seletividade do jornal. Trabalhadores, mulheres e integrantes de minorias étnicas, além de servidores públicos, resta a tarefa de denunciar, se possível do interior do próprio veículo, sua ideologia.

É preciso, nesse sentido, denunciar a serviço de quem está o governo Marchezan pois, “um governo a serviço de outros interesses e outro projeto de sociedade precisa constituir novas estruturas que expressem a nova hegemonia”. É neste estágio em que estamos, é aí que a imprensa “dita burguesa” entra.

 

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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