Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

Na obra “A corrosão do caráter – consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo” o sociólogo Sennett trata do capitalismo flexível, comparando-o com o capitalismo de longo prazo, sendo a principal característica do primeiro a flexibilidade, quando então o trabalho não é mais um comprometimento para longos períodos ou com significados mais permanentes, criando uma flexibilidade do caráter, isso para não falar em corrosão do caráter, já que este seria moldado mediante características necessárias para o trabalho de longo prazo, onde se permitia possuir uma linearidade de vida, com planejamento e motivação; daí o homem motivado ter se transformado, atualmente, em homem irônico. Trata-se, de certa forma, da continuação de sua pesquisa presente em livro anterior “The hidden injuries of class”[1] onde entrevistara Enrico, pai de Rico, trabalhador sindicalizado cuja vida era estruturada pelo cronograma do sindicato, em sua modalidade de trabalhar visando a sacrifícios para o futuro.
A partir de entrevistas realizadas com executivos demitidos da IBM em Nova Iorque, funcionários de uma padaria moderna de Boston, com Rico, filho de Enrico com Rose, proprietária de um bar em Nova Iorque, Sennett analisa a diferença entre os dois tipos de capitalismos, o de longo prazo (típico das organizações hierárquicas rígidas), e o capitalismo flexível (envolvendo um constante assumir riscos, flexibilidade, marketing de rede e trabalhos em equipes, poder com ausência de autoridade e responsabilidade do líder, com ênfase na aparência e juventude, e desprezo pela experiência adquirida). O novo capitalismo com sua lógica hipercompetitiva, daí o nome do livro “A corrosão do caráter”, cria um novo tipo de homem, o homem irônico, sendo a corrosão do caráter uma consequência inevitável. Tal capitalismo destrói a escala de valores e qualquer forma de disciplina ética, afetando o caráter pessoal, principalmente porque não propõe condições para construção de uma história linear de vida, sustentada na experiência, eliminando vínculos sociais (foca-se no curto prazo), despreza as experiências; baseia-se na fragmentação, no individualismo metodológico, na seleção natural de Darwin, no controle e manipulação pelo “deus” mercado, no domínio do “capital impaciente”.
A flexibilidade do tempo requer uma flexibilização do caráter; o curto prazo minimiza a obrigação formal, a confiança, o compromisso mútuo, e alavanca a falta de compromisso ético, moral. Temos vergonha e culpa do repouso, a meditação mais demorada causa remorso. Almoçamos, andamos, subimos escadas com o celular nas mãos, correndo, atrasados. Assim, o novo capitalismo contribui para a corrosão dos laços de amizade e de família, gerando alienação, que é refletida pela ausência de limites, de orientação, ocorrendo a corrosão do caráter, considerando-se este, sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional, sendo “expresso pela lealdade e compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro”[2].
Superficialidade dos proletariados remanescentes em suas funções, acríticos, dependentes totalmente das máquinas apenas forças de trabalho, energias para alimentar a cobiça do capitalismo. No local de trabalho high-tech flexível, tudo é muito fácil de usar, já que a dificuldade e a resistência são contra produtivas ao avanço neoliberal do capitalismo – os empregados se sentem pessoalmente degradados, tornando-se meras aberrações vegetativas, já que não pensam, não falam, não criticam, nem realizam autocríticas, tornando-se alienados pela perda de qualificação. Os trabalhadores tornam-se indiferentes e intensamente competitivos, levando a um esvaziamento, a uma alienação, em um contínuo estado de vulnerabilidade e incertezas.
A sociedade não mais se baseia em tempo e espaço definidos, mas sim em formas desreguladas, descontínuas de relações espaço-temporais, de forma que essa continuidade de exposição ao risco extermina o senso de caráter pessoal, já que mais vale um sorriso cativante e um jogo ou teatro de máscaras.
Tudo é fluido e as pessoas são escravas, prisioneiras do presente e do tempo, em um constante correr riscos, obcecadas pelo movimento, como se ficar parada, não arriscar não fosse uma virtude, não fosse valorizado, mesmo cientes, ou então mesmo sem ciência de que as chances de sucesso ao arriscarem serão quase nulas, no mercado onde os poucos vencedores levam tudo, e a grande massa luta pela divisão das migalhas. O risco é naturalizado, normalizado, e qualquer um até mesmo da classe média poderá ser fracassado, sofrendo, portanto, um constante estar em tese, um constante recomeçar do zero, com pessoas de meia-idade tratadas como madeira morta, tudo se concentrando no momento imediato[3].
Na sociedade do risco, portanto, o correr risco se torna uma necessidade diária, o risco torna-se normal e comum, domestica-se o heroísmo do risco, sempre começando de novo.
Não se mover é sinal de fracasso, mesmo que seja para andar em círculos ou como caranguejos. Pondo-se em movimento a pessoa de repente suspende a sua realidade. A flexibilidade assim acentua a desigualdade no mercado em que o vencedor leva tudo. Não jogar é aceitar-se antecipadamente como um fracasso. É como se houvesse um imperativo categórico para se assumir riscos, o risco é um teste de caráter; a pessoa torna-se prisioneira do presente, fixada nos dilemas do presente.
Um dos motivos para essa superficialidade degradante é a desorganização do tempo; as pessoas sentem falta de relações humanas constantes e objetivos duráveis. A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje a profundidade da experiência. O trabalho de equipe fruto do novo capitalismo é uma espécie de teatro profundo, obrigando os indivíduos a manipular suas aparências e comportamentos com os outros. São as máscaras de cooperação do ator. Num mundo de trabalho estilo roleta, as máscaras de cooperatividade estão entre os únicos cabedais que os trabalhadores levam consigo de uma tarefa para outra, de uma empresa para outra – janelas de aptidão social, cujo hipertexto é um sorriso cativante.
Há uma ficção de comunidade no trabalho, pois o trabalho em equipe é uma forma fraca de comunidade. Há uma ficção de comunidade, pois o chefe evita ser responsável por suas ações – o poder está presente nas cenas superficiais de trabalho de equipe, mas a autoridade está ausente. Esse jogo de poder sem autoridade gera um novo tipo de caráter, no lugar do homem motivado, surge o homem irônico. Uma visão irônica de si mesmo[4].
O caráter irônico torna-se autodestrutivo no mundo moderno. Passamos da crença em que nada é fixo para “eu não sou inteiramente real, minhas necessidades não têm substância”. Não há ninguém, nenhuma autoridade, para reconhecer nosso valor. São ficções e fingimentos de comunidade. Uma ficção de comunidade.[5]
O nós comunal como o pronome perigoso. A comunidade evoca as dimensões sociais e pessoais de lugar, um lugar se torna uma comunidade quando as pessoas usam o pronome nós. Rousseau entendeu que a política depende do nós comunal. Uma das consequências não pretendidas do capitalismo moderno é que fortaleceu o valor do lugar, despertou o anseio de comunidade. Hoje, no novo regime de tempo, esse uso do nós se tornou um ato de autoproteção.
O desejo de comunidade é defensivo, defesa contra a confusão e a deslocação. A ligação social nasce de forma mais elementar, do senso de mútua dependência, contudo a nova ordem trata a dependência com uma condição vergonhosa, trata os dependentes com desconfiança, como parasitas sociais. A destruição das redes assistenciais e dos direitos é por sua vez justificada como libertando a economia política para agir com mais flexibilidade. A vergonha da dependência tem uma consequência, corrói a confiança e o compromisso mútuos, e a ausência desses laços ameaça o funcionamento de qualquer empreendimento coletivo[6].
Não há comunidade enquanto não se reconheçam diferenças dentro dela. Já não vivemos em uma comunidade, vivemos em qual ambiente? Comunicacional? Comunicação no lugar da comunidade?
Referências:
[1] Richard Sennett, “Os males ocultos do sistema de classe”, de 1972.
[2] Richard Sennett, “A corrosão do caráter”, p. 10.
[3] Ibidem, p. 98.
[4] Ibidem, p. 136, 174.
[5] Ibidem, p. 139, 164.
[6] Ibidem, p. 167, 169.
*Paola Cantarini é advogada, professora universitária, artista plástica e poeta. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.
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