Michel Temer deve ser investigado no STF?

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Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

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Citações

Michel Temer foi citado nos pedidos de abertura de dois inquéritos relacionados às delações da empresa Odebrecht. O primeiro inquérito investiga dois ministros do atual governo por pedido de propina para a campanha eleitoral presidencial de 2014: Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa, e Moreira Franco, Ministro da Secretaria-geral da Presidência. Para o Ministério Público, existem fortes indícios de prática de delitos na solicitação de recursos ilícitos, por Padilha, por Moreira Franco e por Michel Temer, em nome do PMDB, a pretexto de campanha eleitoral.

O segundo investiga o senador Humberto Costa do PT, por suspeita de recebimento de propina. Segundo o ministro Luiz Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato, há menção à participação de Michel Temer, em reunião da qual teriam participado Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves, ocorrida em 15 de julho de 2010 em São Paulo.

Porém, o Procurador-Geral da República não levou adiante o caso, sob o argumento de que o Presidente não pode ser investigado por crimes que não aconteceram no exercício do mandato, possuindo, em suas palavras, “imunidade temporária”.

Controvérsia

Disso resulta uma controvérsia nos meios políticos e jurídicos sobre a possibilidade jurídica dessa investigação.

O que diz a Constituição Federal? Vejamos.

O art. 86, caput, dispõe:

“Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

  • 1º O Presidente ficara suspenso de suas funções:

I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal.

(…)

  • 3º: Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito à prisão.”.
  • 4º: O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de seu mandato.”.  

Isso significa que o Presidente da República, como regra, pode ser preso, se condenado, e cumprir pena, durante a vigência de seu mandato (que se interrompe, naturalmente, com a prisão), em caso de prática de crime comum, desde que a Câmara dos Deputados, por maioria qualificada, autorize a instauração do processo.

A regra especial, no entanto, está no parágrafo 4º, de redação nebulosa e de má técnica. Qual o sentido e o alcance da expressão “responsabilizado”?

O Presidente responderá por ilícitos civis que pratique? Certamente sim, não há dúvida, nem na doutrina nem na jurisprudência. E responde sem prerrogativa de foro. De responsabilidade administrativa, no sentido estrito, não se cogita, na medida em que as meras infrações, que não constituam ilícito penal, não podem ser investigadas por autoridades de hierarquia inferior à do próprio Presidente, e este não pode se auto investigar. E responde pelos chamados crimes de responsabilidade, diante do Senado Federal.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Atos estranhos

Por outro lado, que são atos estranhos ao exercício de seu mandato? São os atos cronologicamente anteriores ao início do exercício? Neste caso, são condutas praticadas por pessoa não ainda detentora de prerrogativa de foro. Mas, então, a investigação poderia ser desenvolvida e o processo correr no juízo, de primeiro grau. Ou não?

Alexandre de Moraes, agora Ministro do Supremo Tribunal Federal, e ex-Ministro da Justiça de Temer, escreveu[1]: “Nos crimes comuns, o Presidente da República será processado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal, depois que a Câmara dos Deputados declarar procedente a acusação (art. 86 da Constituição Federal), exercendo um juízo de admissibilidade político, conforme já analisado nos casos de crime de responsabilidade. A necessidade de licença não impede o inquérito policial, nem tampouco o oferecimento da denúncia, porém, apenas impede o seu recebimento, que é o primeiro ato de prosseguimento praticado pelo Supremo Tribunal Federal.” (grifo nosso).

Mas o autor acrescenta:

“Ocorre que estes crimes comuns lato sensu, para permitirem persecução penal durante o mandato presidencial, devem ser cometidos na sua vigência e, ainda, tratar-se de ilícitos penas praticados in officio ou cometidos propter officium.”.

Em outras palavras, a mesma conduta que configura, em geral, é ao mesmo tempo, crime comum e crime de responsabilidade. O autor não fundamenta sua afirmação.  Na prática, essa interpretação significa que se, por exemplo, o Presidente espancar a esposa, ou se furtar dinheiro de um amigo, não responderá por isso.

Parece não ser possível sustentar essa tese. Será mesmo que os atos do Chefe de Governo, estranhos ao exercício do mandato, não devem ser objeto de processo e condenação, durante o exercício do mandato? Desde logo, a dúvida se põe, diante do disposto no inciso I do § 1º do art. 86 da Constituição Federal: o Presidente ficará suspenso de suas funções “se recebida a queixa crime, em que o titular é o particular, e não há interesse público/administrativo. Muitíssimo mais frequentemente, esse instrumento seria movido contra atos estranhos ao exercício do mandato?

Numa decisão, o STF reduz o alcance daquela interpretação dada pelo Ministro Moraes. Assim, resolveu a Segunda Turma que “o que o art. 86, § 4º confere ao Presidente da república não é imunidade penal, mas imunidade temporária à persecução penal; nele não se prescreve que o Presidente é irresponsável por crimes não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais crimes, não poderá ser responsabilizado, enquanto não cesse a investidura na presidência.”. HC 80.511, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-2001, Segunda Turma, DJ de 14-9-2001[2] (grifos nossos). Será essa a melhor linha de interpretação. Parece que não.

Ministro Alexandre de Moraes Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Crimes e mandatos

Gilmar Ferreira Mendes[3], também Ministro do STF, acerta, em nosso ver, e escreve: “Nos casos de persecução criminal quanto a atos estranhos ao exercício do mandato, sejam anteriores ou não, impõe-se a suspensão provisória do processo, com a consequente suspensão do prazo prescricional.” (grifo nosso). E aponta precedentes: Inquérito 672/DF, Relator Celso de Mello, DJ de 16-4-1993; Inquérito 567, Relator Sepúlveda Pertence, RTJ, 143 (2) /714, DJ de 9-10-1992. Portanto, segundo esse entendimento, qualquer ato delitivo do Presidente pode e deve ser investigado, denunciado pelo Ministério público, se for o caso, e levado ao Supremo Tribunal Federal, que receberá a denúncia, a fim de interromper a prescrição, mas suspende o processo, a fim de proteger o exercício do cargo da responsabilidade por atos estranhos a ele. Resta saber como votará o Ministro, se provocado agora.

Há um precedente recente nessa direção. Em maio de 2015[4], o ex-ministro Teori Zavascki decidiu que um Presidente da República poderia ser investigado em caso de suspeita de crimes, ainda que tivessem sido cometidos fora de seu mandato. Segundo o despacho, assinado em 15 de maio de 2015, a norma do art. 86, § 4º, “não inviabiliza, se for o caso, a instauração de procedimento meramente investigatório, destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o chefe do Poder Executivo”. A decisão respondia ao pedido do então deputado federal Raul Jungmann, em nome do PPS, que reivindicava a investigação da ex-presidente Dilma Rousseff na Operação Lava Jato. Baseado nisso, o PSOL protocolou medida para exigir o mesmo procedimento em relação a Michel Temer. Como decidirá o Supremo?

É difícil conceber que um Presidente, capaz de praticar apropriação indébita, em sua vida privada, deva continuar imune à investigação e ao processo. Mas se isso fosse admitido, apenas para argumentar, como conceber que esta autoridade possa se furtar à condenação futura, por meio da prescrição? Ou então, que se se percam ou deteriorem provas? Basta imaginar o caso de um Presidente da República, eleito com sessenta e cinco anos, que se reeleja e exerça o mandato por oito anos. As chances de perda de prova ou de prescrição, pelos delitos mais condenáveis eticamente, crescem consideravelmente. Para evitar isso, o Presidente tem de ser investigado e processado, ainda que não cumpra pena durante o exercício do mandato.

Referências

[1] Direito Constitucional, 31ª ed. – São Paulo: Atlas, 2015.
[2] A Constituição e o Supremo, 3ªed., Brasília: Secretaria de Documentação, Supremo Tribunal Federal, 2010.
[3] Curso de Direito Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonnet Branco. – São Paulo: Saraiva, 2007.
[4] Petição 5.569/DF.

 

Marcus Vinicius Martins Antunes é doutor em Direito pela UFRGS. Mestre em Direito pela PUCRS. Especialista em Ciência Política pela UFRGS. Foi Professor Titular de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Advogado. Coordenador do Curso “Eleições 2016: Processo Eleitoral e seus problemas” da Escola de Educação Digital Estado de Direito.

 

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