Coluna Direito Privado no Cotidiano
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Indenizabilidade
Tema palpitante e pouco desenvolvido consiste na indenizabilidade do sacrifício, situação esta também reconhecida como responsabilidade civil por ato lícito. A indenização de dano que deve ser suportado e, ao mesmo tempo, indenizado, reveste-se de acentuado interesse prático e seu desenvolvimento teórico ainda mostra-se incipiente.
Aqui tem-se situação oposta ao abuso de direito, pois enquanto neste caso usa-se direito aparente e causa-se dano, na situação examinada no presente ensaio ocorre o exercício de um direito legítimo que enseja um dano a outrem que merece indenização. Como decorrência de um ato em conformidade com o Direito surge um dever de indenizar, situação esta anômala e somente compreensível quando observado o dever de suportar determinado fato acompanhado com o respectivo direito a ser compensado pelo sacrifício exigido.
Aqui vem a calhar a lição de Clóvis do Couto e Silva[1] quando este aduz que “O dever de indenizar surge como decorrência da necessidade de repartir os riscos na vida social”, centrando-se a responsabilidade civil por ato lícito na injustiça de suportar-se sozinho o extraordinário incômodo e/ou o prejuízo decorrente da atuação de outrem, ainda que lícita. A indenizabilidade pelo sacrifício anormal surge, assim, como consequência de um enfoque na injustiça de suportar mal-estar ou diminuição patrimonial severa a qual não se deu causa, estando tal perspectiva afinada com a ênfase que se atribui atualmente aos interesses do lesado ao invés de focar-se na censurabilidade da conduta do causador[2].
Apontamentos de Ustárroz
Daniel Ustárroz[3] em obra deveras interessante tratou o assunto sob o manto da responsabilidade civil por ato lícito. Apontou o autor que, ao lado do conhecido exemplo da responsabilidade civil por estado de necessidade, outras situações cotidianas ensejam a indenização de dano causado por ato lícito, dentre as quais a desapropriação e o rompimento de noivado.
Segundo Ustárroz[4], somente pode ser exigida a reparação no caso de prejuízo decorrente de ato lícito quando revestir-se de caráter especial (atingindo número reduzido e determinado de pessoas) e anormal (intensamente gravoso). E isso faz todo sentido, afinal, quem exerce regularmente um direito não deve, salvo casos excepcionais, ser compelido a indenizar outrem que deve, em princípio, suportar o resultado prático da concretização da implementação do direito subjetivo.
O exercício do direito por outrem nem sempre nos agrada, sendo normal a ocorrência de algum desconforto, mas isso é o esperado em um Estado de Direito. Por isso, a banalização da responsabilidade por ato lícito pode resultar em funestas consequências, criando-se direitos ad hoc em detrimento de direitos consolidados, invertendo-se a lógica do Estado de Direito e promovendo-se insuportável insegurança jurídica.
Daniel Ustárroz traz[5], ainda, exemplo prático bastante cativante e curioso de sacrifício indenizável, a saber, o de caso no qual uma pessoa que viu seu imóvel ser bastante desvalorizado em razão da instalação de antena de telefonia no terreno vizinho recebeu indenização correspondente ao prejuízo suportado. Note-se que a instalação da antena é um ato lícito, não cabendo tutela inibitória, portanto, mas, ainda assim, impondo-se a reparação relativa à desvalorização do imóvel lindeiro.
Sacrifício
Rafael Maffini[6], por outro lado, bem aponta a existência jurídica de casos nos quais o que existe é um sacrifício exigível e indenizável, não se podendo vislumbrar verdadeira responsabilidade civil por ato lícito. A ênfase recairia, assim, na existência ou não de um dever de suportar o incômodo. Assim, o que haveria não seria exatamente uma caracterização de responsabilidade civil, mas de sacrifício a ser reparado/compensado. E é nessa linha que se consagrou na Espanha um regime de responsabilidade do Estado cujo foco é a verificação de um dever do particular suportar ou não as consequências da atividade estatal, independentemente da sua licitude e da sua normalidade[7].
A compensação do sacrifício, instituindo-se as hipóteses de seu cabimento e outros traços de seu tratamento dogmático revela-se tema interessante e ainda carente de maior estudo no Brasil, sendo objeto apenas de atenção casuísta no caso mais notório que é o da desapropriação – o que acaba, na prática, descartando a indenizabilidade de outras hipóteses. Tanto o abuso na busca de indenizações por atos lícitos deve ser coibida, quanto o desenvolvimento do conceito deve ser almejado, cumprindo à doutrina e aos tribunais definir os fundamentos e requisitos para identificar quando e como é caso de condenação de alguém que exerceu regularmente um direito.
Chamando-se de sacrifício esperado ou de dano indenizável decorrente de ato lícito, certo é que se impõe a tutela ressarcitória/compensatória sobre aquela outra que caberia no caso de responsabilidade por ato ilícito, ou seja, a tutela inibitória. Por isso, não pode a pessoa diante do exercício do direito de outrem, ainda que para si resulte sacrifício anormal, obstar a atividade alheia, podendo, por outro lado, buscar a recomposição do status quo ante mediante o equivalente pecuniário ou outra medida compensatória, como bem apontou Ustárroz[8] ao chamar a atenção para a existência de outras formas de compensação não-pecuniárias, tais como a veiculação de anúncio na imprensa, algo viável em casos de danos à honra. Ao lado da responsabilidade por ato lícito, o modo de compensação por vias outras que não o dinheiro é um assunto que merece discussão no Direito brasileiro.
Conclusão
Enfim, espera-se ter trazido ao leitor uma nova perspectiva sobre o instigante tema da coluna desta semana, contribuindo, assim, para o aprimoramento do cotidiano do Direito Privado.
Referências
[1] COUTO E SILVA, Clóvis do. O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Organização de Vera Maria Jacob de Fradera. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 183.
[2][2] Aproximadamente no mesmo sentido: LOPEZ, Teresa Ancona. Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: a experiência brasileira do tabaco. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 38 e 39.
[3] USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade civil por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014, passim.
[4] USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade civil por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014, p. 165-170.
[5] USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade civil por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014, p. 170-172.
[6] MAFFINI, Rafael. Elementos de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 259.
[7] FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón; ENTERRÍA, Eduardo García de. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Tradução de José Alberto Froes Cal. Revisão de Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: RT, 2014, p. 390-392
[8] USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade civil por ato lícito. São Paulo: Atlas, 2014, p. 173 ss.
Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL. |
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