Quando o estado promove a pilhagem pelo capital

Coluna Democracia e Política

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Foto: Leandro Osório/Governo do RS

Foto: Leandro Osório/Governo do RS

Ideologia expansionista

Em “Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal”(Martins Fontes, 2013),  Ugo Mattei e Laura Nader apontam que o Estado de Direito sempre foi usado para justificar a apropriação indevida de bens e recursos pelo capital. Da justificativa da descoberta de terras na América para justificar a apropriação do solo americano à custa da exclusão de tribos indígenas à ameaça de venda de aço aos governos da Polônia à exploração da companhia britânica St Jones, que desde a era Vargas vinha explorando minas brasileiras sem autorização legal, o Estado de Direito tem sido utilizado para esconder a pilhagem capitalista desde o período colonial. Essas práticas de exploração foram apresentadas como ideologicamente civilizatórias, quando em realidade, promoviam a liberação e as condições para a expansão do mercado.

O que está por detrás dessa ideologia expansionista do mercado no campo do direito é a ideia de que o Estado de Direito é visto como garantidor do mercado como promotor da modernidade e racionalidade.  Agora, depois de exterminar os horizontes das reservas naturais,  o mercado volta-se para o horizonte da própria riqueza de Estado, acumulado pelo horizonte do investimento coletivo como fonte de riqueza e mais valia. Nesse sentido, a pressão pelo acesso aos recursos governamentais dos fundos de pensão, entre outras fontes de riqueza, transformou o Estado em lugar de disputa e lutas por hegemonia de interesses do capital.

A pilhagem na riqueza do Estado

Agora, chegou-se a hora da pilhagem do capital na riqueza do Estado. Uma vez que reformas administrativas sancionam a apropriação, a preço de banana, de próprios públicos construídos pelo esforço coletivo, o mercado tem diante de si garantido por lei livre acesso a bens públicos, garantidos por instrumento social que se apresenta  politicamente neutro e que autoriza a apropriação, pelo menor preço possível, de bens e riquezas. Para os autores é a reelaboração do principio fundamental de controle – a noção de falta – que é usada para legitimar a pilhagem. Mattei & Nader citam o exemplo de que, se os indígenas careciam de capacidade para utilizar seu ambiente, era justificável a tomada de posse de suas terras ou a consideração do common law como tradição jurídica superior ao direito chinês ou islâmico que justificou a intervenção imperialista, em ambos o que se vê é o discurso de uma falta a justificar ideologicamente a pilhagem como estratégia de estado a serviço do mercado.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Cortina de fumaça

Não é o que estamos vendo neste exato momento com a proposta de Sartori apresentada a sociedade gaúcha na última segunda-feira? O governo afirma que a extinção de 12 órgãos visa economizar 190 milhões por ano, mas o que vemos não é apenas o lançamento imoral de uma mão de obra qualificada durante décadas pelo próprio estado ao mercado  e que oferecerá seus serviços a preço de banana, violência e desrespeito ao servidor de carreira, mas também uma notável alienação de bens públicos como nunca se viu. Também o que se vê é, a partir de agora, a substituição de serviços realizados pelo Estado que passarão a ser “contratados” de empresas privadas  e/ou incorporados a outros órgãos.

O anúncio da extinção de órgãos e demissão de funcionários criou uma cortina de fumaça sobre os reais objetivos do plano: dar acesso, de forma imediata, ao capital do patrimônio do estado. São prédios públicos, equipamentos, terrenos, áreas verdes e tecnologias que serão passadas a preço de banana ao primeiro que chegar.

Lê-se em matéria publicada em Zero Hora (23/11)” o Piratini pretende vender o patrimônio dessas instituições para fazer caixa. Prédios e terrenos poderão ser repassados a iniciativa privada em troca de vagas no sistema carcerário em em área construídas. Já maquinas e equipamentos serão leiloados”. Como se sabe, regra geral em leilões é o acordo tácito entre grandes compradores para que bens possam ser adquiridos pelo preço mínimo ou até inferior. É aí que reside o problema, o estado não conseguirá o retorno do investimento feito pela sociedade na construção deste patrimônio com leilões e este lucro, do custo de produção, será repassado ao capitalista de plantão.  Curiosamente, a reportagem de ZH afirma também que “Búrigo (secretário responsável pelo projeto) ainda não fez o cálculo do montante a ser arrecadado com a liquidação do aparato estatal”, estratégia para silenciar o debate sobre o destino do patrimônio público. Este cálculo não é importante?

A matéria assinala que os órgãos que o governo prevê encerramento imediato são aqueles cuja propriedades são de grande extensão e mais interessam as incorporadoras de plantão: TVE-FM Cultura, Zoobotânica, FDRH, Corag e Cientec, localizados em regiões privilegiadas e de alto valor imobiliário. As incorporadoras, que investiam cada vez mais nos limites do perímetro urbano, agradecem esse sopro de espaço imobiliário para seus investimentos. O interesse do governo nunca foi sanear as instituições ou construir políticas de recuperação de investimentos, o objetivo claro é dar acesso ao capital a faixas de investimento onde nunca teriam acesso. A lógica econômica é a da terra arrastada: no universo de Sartori, não existe espaço para cultura pública, lazer público, formação de servidores, comunicação e pesquisa, tudo deve ser dado imediatamente a iniciativa privada como campo de investimento e lucro, inclusive, a ser pago pelo Estado. Onde ficará, ao final das contas, a economia? As reformas foram projetadas como se o problema fosse que as fundações não dão lucro, não pagam os seus custos, mas é que entre os fins do Estado, não está o lucro mas a prestação de serviços, mesmo que eles produzam prejuízo. A TVE não tem valor por que ela dá paga o seu custo pelos serviços que oferece, ela tem valor pelo perfil de comunicação pública que oferta e este custo é obrigação do estado assumir.

Foto: Luiz Chaves/Governo do RS

Foto: Luiz Chaves/Governo do RS

O necessário

Quem diz o que é necessário para um Estado? A sociedade, através de um plebiscito? Uma equipe de notáveis? A Constituição Estadual? Sartori opta pela opção mais fácil, uma equipe de notáveis que julga, com critérios que a sociedade desconhece o que é melhor para ela, e portanto, sua obrigação. Observe: as justificativas apresentadas na matéria de Zero Hora são sempre que o Estado  “avalia que é desnecessária” a instituição a ser extinta. Como assim? Com base em que critérios? Com base em quê diagnóstico? Que tipo de objetivo de estado está sendo considerado em primeiro lugar e porque ele é superior a atividade desenvolvida pelo órgão a ser eliminado? Sartori silencia. Ao ler toda a listagem de órgãos e a igualdade entre todas as justificativas, é como se não houvesse justificativa alguma, e nesse sentido, torna-se vazia a justificativa adotada “para cortar gastos”, que assume o tom quase de fala de uma criança birrenta “é porque é sim!”. Essa infantilização do estado é o espelho do que o Estado deseja para a própria sociedade, que esta não questione suas decisões, que não questione seus critérios,este  “porque é sim!” esconde que os motivos reais são inconfessáveis, justamente porque são a revelação de que o Estado está a serviço do capital, que está a serviço dos grandes empresários e corporações que tem interesse nos próprios estaduais. Desse ponto, discretamente, o governo assume a possibilidade de passar o Jardim Botânico a iniciativa privada: pensar que a iniciativa privada tenha interesse em preservar a coleção de plantas raras ali acumuladas é não entender nada do interesse da iniciativa privada. O que sobrar do Jardim Botânico, se sobrar, será um parque cercado por uma grande de um grande conjunto habitacional usufruído na maioria por seus  condôminos, como se tornou o Parque Germânia.

Chama  a atenção a facilidade com que o Estado procura se desvencilhar de instituições quase que centenárias: a FZB tem 61 anos, a FDRH, 40 anos ou a Fundação Piratini, 55 anos, entre outras instituições, quer dizer, são instituições antigas do Estado em cujo tempo de existência produziu gerações de técnicos, projetos e capacidades acumuladas. Esse capital “imaterial” como assinala André Gorz, é talvez o de maior valor para o Estado, que vale a peso de ouro: o Estado silencia o que fará com o Lacen – Laboratório Central  do Estado, reservando-se apenas apenas o Laboratório Farmacéutico. A extinção prevista de 1250 cargos significa a retirada de uma hora para outra, de técnicos, inclusive com formação internacional, que prestavam serviços de pesquisa para o Estado. A iniciativa privada agradecerá imensamente não ter tido necessidade de investir nesses recursos.  Para  Mattei & Nader, “o direito e as instituições jurídicas dão cobertura a atividades que não podem ser explicitadas nos círculos cosmopolitas culturalmente sofisticados. Descrevemos essas atividades como  pilhagem”(p.126).

O pacotaço de Sartori é uma estratégia de pilhagem de bens públicos, construídos pela contribuição da sociedade pela iniciativa privada com a mediação do Estado. O pacotaço é um instrumento técnico que torna legal uma transação imoral e que amplia o mercado de trabalho técnico de reserva com profissionais que serão recontratados – se os forem – com preços aviltantes.

O aspecto de venda de patrimônio, especialmente da TVE – RS e da FZB, chega a ser pornográfico, quer dizer, algo que não pode ser posto em cena: ao preço menor, ao primeiro que vier, sem nenhuma culpa. É o crime perfeito, legitimado pelo direito, com provável aprovação das instituições competentes, o legislativo, dentro da legalidade, mas completamente imoral e perverso. Urge a sociedade pressionar o legislativo para que tamanha violência contra a sociedade, tamanha violência contra servidores qualificado seja barrada. A luta citoyens!

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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