Estado de Coisas Inconstitucional
O Supremo Tribunal Federal acaba de incorporar na cultura judiciária brasileira o conceito de “estado de coisas inconstitucional”, através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e que pretende ver a sua declaração em face do sistema penitenciário brasileiro.
Importado da Colômbia, o instituto é uma construção doutrinária baseada em três pressupostos: a) violação massiva de direitos fundamentais, não bastando a proteção deficiente; b) inércia de uma pluralidade de instituições – vista na incapacidade de articular iniciativas legislativas, políticas públicas e gestão orçamentária – de forma sistemática, por longo período de tempo, de modo a perpetuar a situação de violação; c) necessidade de intervenção judicial para determinar que tais instituições saiam da inércia e deflagrem iniciativas complexas necessárias à sua cessação.
Natural que isso tenha surgido numa nação latino-americana, de tão particulares que são os nossos arranjos e, principalmente, as nossas disfuncionalidades institucionais. Tão nosso quanto o realismo mágico; tão melancólico quanto esperançoso; tão heroico quanto, talvez, ineficaz.
O debate sobre sua adequação irá longe. O novo conceito não difere, nos seus efeitos práticos, do que se costuma pleitear em ações civis públicas e ADPFs, com um traço mais agudizado.
Não se pode desprezar que a Constituição expressa um projeto jurídico-político de nação. Nem que isso deve ser levado a sério, sobretudo pelo Poder Público. Então, se a dupla dimensão (jurídica e política) está à disposição da Justiça no exame da constitucionalidade das leis, elaboradas principalmente pelo Poder Legislativo, por que não estaria no plano das políticas públicas, que servem à concretização desse projeto?
O regime democrático
Por outro lado, o regime democrático é uma conquista delicada demais para sofrer intervenções tão radicais. A casa da democracia é a rua e o parlamento, e não os tribunais, cujos membros não são eleitos pelo povo. Uma democracia comandada por juízes representa um obstáculo para a sociedade civil se apoderar (e se empoderar) dos debates do seu tempo.
Defender o regime democrático, contudo, não pode desconsiderar que há um déficit persistente na democracia brasileira, que é, na verdade, uma democracia sem povo. Aqui, o debate público, quando existe, é marcado por radicalizações cuja marca é a insensatez. E uma incompreensão profunda sobre o significado simbólico de se ter um projeto de nação por edificar.
A incorporação do estado de coisas inconstitucional terá outro desafio pela frente: o fenômeno da baixa constitucionalidade, indicado por autores como Lenio Luiz Streck, na literatura jurídica e na interpretação judicial. O cheiro de novidade desse conceito será uma tentação para a sua banalização. Em breve, virão petições e sentenças divorciadas do sentido narrativo da Constituição, como história de direitos consolidados através de lutas sociais e disputas políticas.
Em matéria de direito à cidade, um novo horizonte poderá ser explorado. Com ousadia, mas também com cuidado. Num país em que 86% das pessoas vive nas cidades, não é difícil supor que diversos direitos fundamentais e sociais só se realizam no espaço urbano.
Os direitos fundamentais
Moradia, por exemplo, é componente inato do conceito de “vida digna” e desde 2000 está no rol de direitos sociais do art. 6º, caput, da Constituição. Que tal acionar os prefeitos que deixam de elaborar e executar uma política habitacional que atenda de maneira eficiente os que mais precisam? Afinal, sem moradia, outros direitos passam a enfrentar obstáculos: matrícula de criança em escola pública (educação, art. 6º, caput), acesso a posto de saúde (saúde, art. 6º, caput, e, no limite, vida, art. 5º, caput).
O que dizer, então, sobre a função social da propriedade (art. 5º, XXIII)? Quais os efeitos do seu descumprimento e, principalmente, da ausência de controle estatal? Espoliação urbana, déficit habitacional, remoções e deslocamentos forçados no contexto de conflitos fundiários: o conjunto da obra não delineia violações a direitos fundamentais e sociais?
Se bem trabalhada, a decretação de um estado de coisas inconstitucional pode ser o convite, com a força típica dos comandos judiciais, para que os órgãos públicos se reúnam e promovam aquilo que deveriam ter feito voluntariamente. Tudo de maneira dialogada e com efetivo controle e posterior avaliação de resultados com base em critérios objetivos.
Na experiência colombiana, isso aconteceu uma vez: na discussão sobre os deslocamentos forçados provocados pelo conflito armado que há entre o exército e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). O resultado foi positivo. Na outra circunstância em que se decretou o estado de coisas inconstitucional, numa demanda envolvendo, coincidentemente, o sistema carcerário do país, o Poder Judiciário tomou medidas unilaterais que se mostraram ineficazes.
A análise desse caso concreto ensina que, ao assumir um modelo baseado no diálogo, assumirá o Poder Judiciário um novo papel na missão de Guardião da Constituição: o de engajar, na solução de problemas estruturais do Estado brasileiro, os agentes que de algum modo lhe deram causa.