O Novo Código de Processo Civil (NCPC), em seu artigo 1071, estabelece o “novo procedimento para Usucapião”, o que implica na necessidade de algumas observações – sem aqui deter-se qualquer intuito de exaustão do tema. O corriqueiramente denominado “Usucapião administrativo”, criado, aprioristicamente, para fins de regularização fundiária urbana (Lei 11.977/2009) ganha espaço no NCPC – fato que merece algumas observações e reflexões.
A “inovação” do NCPC não é tão “inovadora”. A premissa para estabelecer este procedimento extrajudicial é estabelecer uma rota alternativa ao Poder Judiciário. Premissa já evidenciada na Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96) ou mesmo na alteração do CPC (Lei 11.441/2007) que viabilizou – mediante determinados requisitos – a operação de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. Por óbvio que estes exemplos não são os únicos, mas sim os mais emblemáticos para caracterizar a busca do Estado por uma “rota alternativa ao Poder Judiciário”.
O artigo 1071 do NCPC estabelece a possibilidade de o Oficial do Registro de Imóveis – do local do bem usucapiendo – reconhecer (ou seja, extrajudicialmente) o implemento do usucapião. Por certo que a própria Lei de Registros Públicos (LRP) aponta os casos em que o Usucapião administrativo será possível, assim como estabelece a forma como será instruído. O artigo 216-A da LRP fixa que o procedimento administrativo será operacionalizado com a ata notarial lavrada por tabelião da circunscrição em que localizado o imóvel, atestando o tempo de posse ad usucapionem do requerente e de seus antecessores; planta e memorial descritivo assinado por profissional devidamente habilitado, assim como pelos confinantes, proprietário ou de titulares de direitos reais; certidões negativas dos distribuidores do foro do imóvel e do domicílio do requerente; justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem da posse, sua continuidade, natureza e tempo.
Atente-se que a LRP demanda, ao menos prima facie, um cenário perfeito. Entenda-se o aqui afirmado: se qualquer dos confinantes, o proprietário ou o titular de direito real deixar de assinar a planta ou memorial descritivo, o procedimento deixa de ser o caminho. Aqui uma primeira reflexão: haveria necessidade de criar-se um procedimento administrativo para a “exceção da exceção”, ou seja, para cenários de dificílima percepção no mundo real? Se todas as situações “não perfeitas” seguirão sendo encaminhadas ao Poder Judiciário, porque o “perfeito” – que demandaria apenas uma chancela possivelmente simples e rápida – recebe procedimento alternativo?
A resposta as interrogantes acima lançadas, em especial à segunda, parece simples: para garantir-se celeridade ao menos às “situações perfeitas”. No entanto, infelizmente, não existe resposta simples. Se não existe resposta simples é porque o procedimento administrativo do Usucapião é deveras complexo. Um procedimento que teria sido criado para “acelerar e simplificar” nos casos “excepcionais” (perfeitos), acaba por estabelecer uma série de entraves: o Oficial do Registro de Imóveis deverá dar ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município para que se manifestem; deverá operar publicação de edital em jornal de grande circulação para dar conhecimento do pedido de Usucapião à terceiros interessados. O processo administrativo não ganhou complexidade de processo judicial? E, em agregando complexidade, existe razão para extrair-se do Juiz o dever-poder de decidir no caso concreto?
Não discute-se aqui a validade social de um Usucapião administrativo – a uma porque não é este o objeto do artigo, a duas porque tema por demais complexo para algumas restritas linhas – mas sim o estabelecimento na modalidade eleita pelo legislador pátrio que, salvo engano, sequer terá qualquer influência sobre a carga de trabalho do Poder Judiciário. Sendo que, para o interessado em usucapir um bem (aquele que se encontrar na “situação perfeita”) ainda existe uma série de “entraves”.
Em suma, tem-se o estabelecimento do Usucapião administrativo, nos moldes em que operado, como inócuo. Não bastasse a sua potencial não aplicação, o processo administrativo criado guarda outra instigante questão, pertinente a delegação de poder decisório. Explica-se: o Registrador terá o poder de decidir se reconhece ou não a implementação do Usucapião (uma “torta” delegação de competência – não será o Juiz quem decide). Aqui apenas algumas das inúmeras reflexões que o Usucapião “extrajudicial” implica…
Ricardo Marchioro Hartmann. Doutorando em Direito Público pela UBU/ES. Mestre em Direito pela PUC/RS. Advogado.