Temer (,) a morte

Coluna Democracia e Política

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Para quê aposentadoria?

Devemos ao Presidente Michel Temer a retomada em escala nacional de uma questão filosófica e existencial de imensa importância: o enfrentamento imaginário da finitude humana, a imagem de nossa própria morte. De Platão (428-347 a.C.) a Heidegger (1889-1976), a filosofia sempre tematizou a morte. Para Sócrates, a filosofia é a “preparação para a morte”; Platão escreveu o Fédon, sobre a imortalidade da alma, narrando os últimos momentos de Sócrates e Epicuro quis libertar o homem do medo da morte “A morte nada significa para nós. A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo”.  Com sua reforma da previdência, Michel Temer soma-se ao séquito de pensadores que nos levam a refletir sobre o mais puro pensamento heideggeriano: para o presidente, parafraseando o filósofo, se somos um “ser que caminha para a morte”, para quê aposentadoria?

Produção de infelicidade

Não é isso que acontece quando Temer apresenta sua proposta de reforma da previdência que prevê o fim do fator previdenciário e a previsão de trabalho de 49 anos para a aposentadoria integral? Da forma como foi colocado, quem viverá para gozar sua aposentadoria? Não foi a toa que emergiram de norte a sul do país nas redes sociais análises e ironias que concluíram que restará muito pouco tempo de vida para gozar a aposentadoria com a proposta apresentada. Quer dizer, só terá direito a aposentadoria aquele trabalhador que começar a trabalhar muito jovem, aos 16 anos, não possuir intervalos de contribuição algum  e considerando-se que qualquer trabalhador tem inúmeros períodos de ausência de contribuição por demissão, numa estimativa  de vida de 75 anos, a conclusão é clara: com esta proposta, aposentadoria só depois de morto. Temer não é apenas um excelente professor de Língua Portuguesa com o uso acentuado de mesóclises: ele agora é nosso filósofo mais existencialista, ele colocou a nação para reconhecer a questão filosófica defendida pelo Capital: viva e morra trabalhando!

Pois não é apenas da natureza da aposentadoria que se trata, mas também do destino que queremos dar ao final de nossa vida. Em “A morte é um dia que vale a pena viver”(Casa da Palavra, 2016), a médica Ana Arantes assinala que a beira da morte um arrependimento muito comum é ter trabalhado muito. Essa obrigatoriedade de trabalhar a mais que o projeto de reforma do governo Temer impõe a sociedade é danoso por muitas razões. Passamos ao menos oito horas por dia trabalhando, cerca de 30% do nosso tempo, para garantir uma existência e uma aposentadoria feliz. Mas o que Temer faz é caminha no sentido contrário,  impõe o trabalho pelo medo de não ter dinheiro na velhice, medo de não ter como sobreviver quando estiver muito velho, torna o potencial de nos aposentarmos um lugar de produção de infelicidade.

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Quando chegarmos a velhice, exaustos por uma vida de obrigações “eu tenho de trabalhar”, ao olhar no espelho e nos perguntarmos como chegamos ali diremos: “por causa do Temer”.Porquê? Porque ao prolongar o tempo de trabalho para aposentadoria integral, Temer retirou de uma nação o direito a uma aposentadoria digna. A outra opção colocada por Temer, aposentar-se com perda de 1/3 do trabalho tem um nome: pilhagem! Abrir mão de parcela da aposentadoria é uma ação de rapina, a custa do trabalho do servidor público, que vê pela primeira vez a indignidade assumida na forma de lei de receber na aposentadoria menos do que recebia na ativa, justamente na fase da vida em que o corpo cobra um alto preço pela exploração do trabalho: nessa idade o desgaste da exploração da mão de obra cobra alto preço nos medicamentos e na atenção a velhice. Nada mais perverso.

Retrocesso

De certa forma o que Temer está propondo é o retorno ao momento mais primitivo da civilização. O médico Leandro Minozzo afirma que a época em que não havia aposentadoria era a das…cavernas!. Afirma o autor que na pré-história e pela maior parte da história humana, o homem não tinha ideia do direito à aposentadoria. Minozzo lembra que no século XIII a.c. teria surgido o primeiro relato de aposentadoria, instituída pelo Imperador Augusto de Roma para beneficiar  os legionários romanos depois  de 20 anos de luta. Curiosamente, afirma Minozzo “desse período até 1684, a aposentadoria era destinada exclusivamente aos militares – pessoas com outras profissões não tinham esse direito.” Como afirma Marx, a história se repete como farsa, não é que Temer exclui justamente os militares de sua reforma? O autor afirma que foi somente em 1684 que um trabalhador do porto de Londres foi o primeiro civil a se aposentar “mas seu pioneirismo não abriu precedentes e a aposentadoria de civis permaneceu rara por quase dois séculos.”

De 1684 até 1889, muitas coisas aconteceram em relação à ideia de aposentadoria. A única saída era acumular riquezas e trabalhar no limite do possível, seguindo-se casos de patricídios, onde filhos assassinaram pais que acumulavam riquezas frente a possibilidade de não ter emprego. Mas foi com Otto Von Bismarck, no final do século XIX, que a ascensão de ideias de direitos trabalhistas levou o chanceler alemão a criar a aposentadoria aos 65 anos de vida, implantado em 1889. Detalhe: nesta época, dificilmente uma pessoa chegava a essa idade, já que a expectativa de vida era…45 anos! Não é a mesma estratégia do governo Temer, repetir a estratégia populista bismarckiana de concessão de aposentadoria para uma idade onde na prática uma parte considerável de trabalhadores será excluída? Como trabalhadores do norte do país e outros que vivem em condições desumanas de trabalho poderão gozar de aposentadoria?  Mas um detalhe é importante: com Bismarck  nasce a ideia de aposentadoria com o objetivo de dar uma velhice digna ao trabalhador ao fim de sua vida . Não foi uma exclusividade do governo alemão: Minozzo afirma que em 1882, nos Estados  Unidos, a Ferrovia Baltimore e Ohio introduzira seu primeiro plano de aposentadoria financiado com contribuições de empregadores e dos próprios trabalhadores.

No Brasil, as Constituições de 1824 e 1891 introduziram a aposentadoria como benefício para funcionários públicos  inválidos, independente de terem feito quaisquer contribuições para tal. Quer dizer, nasce no século XIX não apenas a ideia de amparo na velhice, mas também a ideia de que o Estado é o responsável solidário pela garantia de quem sequer teve condições para contribuir para sua aposentadoria, no caso, por invalidez seus servidores públicos. Foram os Correios o órgão publico a contarem com aposentadoria como a conhecemos em 1888, direito adquirido após 30 anos de serviço. Após, outras leis expandiram o benefício da aposentadoria para outras classes como ferroviários, portuários, servidores públicos e mineradores.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em poucas décadas, surgiu nos Estados Unidos, em 1955, a seguridade social, organizando a aposentadoria. O trabalhador passou a contribuir com parte de seus rendimentos para receber posterior benefício. Minozzo afirma que por mais atrativo que esse direito parecesse, mesmo assim existia um problema: haviam pessoas que não queriam se aposentar, parar de trabalhar não era desejo da maioria. Dessa forma, os governantes e empregadores tinham dificuldades em afastar os mais velhos do mercado de trabalho para dar lugar aos manis novos. As pessoas simplesmente percebiam que não tinham o que fazer em casa, não tinham atividades de lazer suficientes e a pausa não fazia parte da cultura porque haviam sido criados para dar um foco muito grande na atividade profissional, trabalhando normalmente mais de 12 horas ao dia. Para a esmagadora maioria das pessoas, o trabalho era o grande e único significante de suas vidas. Essa concepção faz parte de um sistema cultural capitalista arrasador onde o trabalhador assume o lugar do capital na exploração, se auto-explorando (Buyng Chul Han).

Com o desenvolvimento do capitalismo em escala planetária novos problemas se colocaram: como abrir vagas as novas gerações se elas são ocupadas pelas gerações anteriores? O que fazem com quem não desejava se aposentar ? Como fazer emergirem vagas quando a politica neoliberal é justamente a de mecanização que implica na redução de custos?  Enquanto o surgimento da previdência social, com contribuição do trabalhador, respondia a necessidade de abrir novas vagas que a aposentadoria dos antigos trabalhadores promovia, a transformação do trabalho em compulsão individual se transformava em fonte de frustrações. Como afirma Paul Virilio para a velocidade de nossa época, também é necessário parar em termo de trabalho.

Medo da morte

Para Arantes, o que está em questão em ambas situações é o medo da morte. Tanto aquele que não quer deixar de trabalhar pois não construiu formas de ressignificar sua existência para além do capital, com o projeto de Temer,  propõe um jeito louco de promover uma relação do cidadão com a morte. No projeto de Temer, o trabalho deixa de ser para o trabalhador uma das experiências conscientes que temos de que a vida vale a pena ser vivida para transformar-se noutra coisa, na ampliação do sofrimento pelo excesso de trabalho. Logo que foi anunciado o projeto de reforma da previdência de Temer,  além das criticas, as redes sociais enumeraram inúmeros exemplos de sofrimento do trabalho em excesso que a reforma da previdência de Temer impunha: como um professor universitário se aposentará se sua carreira que exige no mínimo doutoramento, o que se conclui  lá pelos 25-30 anos? O que farão os professores para suportar o desgaste de 49 anos em sala de aula? As imagens de professores e de diversos profissionais literalmente em covas, no cemintério, significa que o projeto de reforma da previdência tem como consequência antecipar a experiência do medo da morte de cada trabalhador “morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos. Mas morremos mais depressa a cada dia que vivemos privados dessa consciência. Morremos antes da morte quando nos abandonamos. Morreremos depois da morte quando nos esqueceram”, afirma Arantes.

Foto: Pixabay

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A relação do esquecimento com a morte também foi teorizada pelo sociólogo Jean Baudrillard em sua obra “A Ilusão Vital”(Civilização Brasileira, 2001). Para Baudrillard, cada célula é programada para morrer e só existe um processo onde esse processo sofre interferência, que é o câncer “ela se esquece de morrer, ela esquece como morrer”.  Para Baudrillard nos costumamos a falar da luta da vida contra a morte, mas existe algo pior,  “precisamos lutar contra a possibilidade de não morrermos”. Não é exatamente com isto que conta Michel Temer com sua proposta de reforma da previdência, ele aposta no prolongamento do tempo de trabalho como adiamento do acesso a aposentadoria. Ele aposta que vamos esquecer que vamos morrer. Essa estratégia de se apropriar da morte que o fato de empurrar para adiante o acesso a aposentadoria para o trabalhador faz parte de uma estratégia politica que deseja em seu intimo a realização de nosso destino natural, morrer. Por que se o cidadão morrer… não tem despesa pública! O maquiavelismo de Temer está no fato de descobrir que a única forma neoliberal de resolver verdadeiramente o déficit da previdência – há autores que afirmam que não há déficit nenhum! – é…matar o beneficiário, deixando-o morrer.

Objetivo de estado

No governo Temer, a morte do cidadão deixa de ser o destino do ser humano individual para se transformar em objetivo de governo. Se para Nietszche, a morte de Deus, o assassinato de Deus, era a forma de transformar o destino do homem, era o crime metafisico por excelência, a proposta da reforma da previdência, nos termos de Baudrillard, é o crime perfeito porque não envolve mais Deus, mas a realidade “não se trata mais de um assassinato simbólico, mas de um extermínio”(p.67). Na origem da palavra exterminio esta ex-terminis  que significa que nada resta, nenhum traço, não existe mais realidade. Não é exatamente assim que sentem-se milhares de cidadãos brasileiros ante a perspectiva do projeto de reforma da previdência? Eles não se sentem que, após 49 anos de contribuição, as vezes em trabalhos sob condições sub-humanas, não lhes restará mais nada de tempo para si, que estarão exterminados (mortos) para gozarem a realidade da aposentaria?

A partir de agora, graças a iniciativa do Presidente, inúmeras inversões de definições da morte célebres são possíveis. João Guimarães Rosa dizia que “a gente morre para provar que viveu”: o governo Temer inverteu essa imagem, agora “a gente morre para provar que contribuiu”, estratégia de governo que redefine os termos para garantir que a lógica neoliberal prevaleça inclusive nas formas de aposentadoria. O filósofo Alain de Botton dizia que “estar morto é a melhor coisa para a imagem de uma pessoa famosa”: agora, o cidadão estar morto é a melhor coisa para o governo de Michel Temer. Voltaire dizia que “a espécie humana é a única que sabe que deve morrer”:  Michel Temer tomou a risca a ideia e baseou seu projeto de aposentadoria nessa crença, na crença de que é possível que a morte retire do Estado a obrigação com a vida.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Em outra obra de sua autoria, A Troca Simbólica e a Morte (Loyola, 1996), o sociólogo Jean Baudrillard se pergunta o que aconteceu com o simbólico no reino da economia política. Para ele, os termos da economia politica neoliberal (forma mercadoria, força de trabalho, mais valia, etc), fizeram desaparecer o simbólico – Baudrillard também se refere a troca simbólica –, no capital  “o simbólico as obseda como sua própria morte”.  Para ele, para além do valor, somente um evento teórico é capaz de desmontar por dentro a máquina capitalista: a pulsão de morte, lugar aonde se inscreve o campo simbólico “principio de funcionamento soberano exterior e antagônico ao nosso “principio de realidade  econômico”(p.8). Num projeto de reforma da previdência onde direitos a vida são substituídos por lógicas de compulsão à morte, Temer revela a lógica neoliberal de redução de direitos no êxtase da racionalidade econômica que substitui o tempo do gozo por, mais uma vez, tempo de trabalho e com isto reintroduz a morte para dentro da lógica de estado.  Para Baudrillard, a economia política está justamente na tentativa de incorporar o que escapa a economia, a morte. É preciso lembrar que Baudrillard se inspira em Lyotard, para quem a economia politica é vinculada a economia libidinal, tese também desenvolvida por Michel Foucault,  de que a gestão da vida é também um objetivo de Estado.

Trata-se de terrorismo

Por diversos motivos e razões, a morte sempre esteve no horizonte de Estado: no teatro coletivo da morte do mundo medieval ao mundo moderno, o equivalente geral deixa de ser a morte para ser o capital. “É a partir disso, da obsessão com a morte e da vontade de abolir a morte por meio da acumulação, que esta última se torna o motor fundamental da racionalidade politica econômica”. Dito de outra forma: é preciso que a reforma da previdência do governo Temer  implique nessa acumulação de tempo de trabalho – mais anos, mais longe a aposentadoria –, nessa acumulação de recursos a custa do adiamento da aposentadoria do trabalhador , para que produza no interior do Estado a produção para o trabalhador da escassez absoluta de tempo que é a própria morte.

Contradição da politica de governo? Um governo que deveria impulsionar a vida do trabalhador se torna o promotor de sua aproximação com a morte. O projeto de reforma da previdência baseia-se justamente naquilo que Baudrillard chama de capacidade de se trocar com a morte.  Queremos nos aposentar para aproveitar o que resta de nossas vidas antes da morte,  mas isto não interessa ao Estado, e justamente por  desconhecer essa ambivalência que sua proposta é…terrorista!. Ela age exatamente como o terror, como os terroristas de Osama Bin Laden para quem a vida não tem valor algum e que a morte é apenas mais um instrumento de troca. A reforma da previdência é apenas uma face do terror do Estado, da indiferença do significado da morte do trabalhador para os fins da rentabilidade dos recursos do governo.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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