Silêncio Perpétuo? Anistia e Transição Política no Brasil

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Silêncio Perpétuo? Anistia e Transição Política no Brasil (República Velha e Era Vargas). / Mauro Almeida Noleto. – 1. ed. – Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2024. 312p.

Nesta Coluna Lido para Você, saúdo com indisfarçável satisfação o lançamento pela Editora D’Plácido do mais recente livro de Mauro Almeida Noleto Silêncio Perpétuo? Anistia e Transição Política no Brasil (República Velha e Era Vargas).

A satisfação é dupla, primeiro porque atualizo a bibliografia de Mauro que acompanho desde sua marcante formação ainda na graduação em Direito na UnB – Universidade de Brasília, quando passei a acompanhar e até orientar seu percurso na iniciação científica.

Nessa formação incluo o mestrado cumprido por Mauro também na UnB, com brilho, mantida a nossa proximidade intelectual porque também fui o orientador dessa etapa de estudos avançados.

Por isso que sempre me mantive atento aos achados de seu trabalho acadêmico desde a UnB, com o cuidado de atualizar os registros de seus estudos e pesquisas, não todos evidentemente, nem aqueles que ele realizou em outros ambientes intelectuais.

Dentre esses registros, neste espaço editorial, anotei algumas elaborações de Mauro, aliás, divulgadas por editoras que também acolheram alguns de meus trabalhos. Assim, a propósito de NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, veja-se https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/.

Também NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021 (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/). Sobre esse trabalho, muito a propósito, digo que ele se insere num eixo teórico sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de direitos nomeando as novas categorias jurídicas que as representam.

De outra parte, um segundo motivo de satisfação é o podermos estar juntos sobre o selo editorial a D’Plácido, que tem acolhido vários trabalhos nos quais tenho incisiva participação autoral, em projetos mais coletivos.

A começar com um livro com marca de obra de referência – https://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/ (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)

Seguido de outras experiências editoriais muito bem recebidas: https://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/ (Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019); https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/ (DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021); e https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/ (Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia. José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022).

Agora sai nesse final de dezembro, já disponível no catálogo da Editora D’Plácido, e que será certamente debatido em sucessivos lançamentos a partir do início do ano de 2025, o importante, oportuno e urgente Silêncio Perpétuo? Anistia e Transição Política no Brasil (República Velha e Era Vargas).

Sobre o livro diz Menelick de Carvalho Netto, orientador da tese da qual o livro se origina: “Mauro Noleto, instigado pelas discussões mais recentes acerca da anistia política no Brasil, nos convida a, com ele, realizarmos um profundo resgate critico-histórico dos percursos marcados pelas propostas de adoção da anistia política ao longo de nossa história institucional. Reconstrução rica, densa, complexa e, contudo, de leitura fácil e instigante. São precisamente a intensidade e a leveza de sua dimensão historiográfica que envolvem e capturam o leitor. Uma boa leitura!”.

Devo dizer que a obra, confessadamente, se incorpora à fortuna crítica de O Direito Achado na Rua, matriz do pensamento crítico de Mauro, conforme ele registra na Apresentação: “Agradeço ao professor José Geraldo de Sousa Jr., que me apresentou ao Direito como libertação, ‘furando os colchões da rotina e da opinião vulgar’, e me acolheu na reflexão crítica da matriz teórica de O Direito Achado na Rua. Posso dizer, mais de três décadas depois desse encontro, que aqueles anos de formação foram decisivos e me orientam na caminhada desde então”.

Aliás, Mauro está organicamente inscrito nesse campo político-epistemológico, tal como ele próprio refere. Ainda na Graduação em Direito na UnB, na iniciação científica, demarcou seu território acadêmico e fincou sua identidade temática, contribuindo originalmente para o acervo do campo. Em 1991, ali no início da institucionalização na UnB do fomento à pesquisa entre os estudantes (v. UnB/Coordenadoria de Apoio à Pesquisa. Você Pesquisa? Então…Mostre! Seminário de Pesquisa na Graduação (30 de janeiro a 1º de fevereiro de 1991). Anais, 1992, o projeto Sujeito de Direito Coletivo, autores: Bistra Stefanova Apostolova, Mauro Almeida Nolêto, Inês da Fonseca Pôrto, Orientador: José Geraldo de Sousa Junior, foi distinguido pelo comitê científico entre os melhores trabalhos apresentados (melhor na área) e integralmente publicado nos Anais, p. 145-159. Como é sabido, a categoria sujeito coletivo de direito é uma categoria fundante de O Direito Achado na Rua (para mais ver https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/). A propósito, também o verbete que meus alunos da disciplina Pesquisa Jurídica prepararam para a wikipedia – https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direitono qual, entre tantos, o trabalho de Mauro e seus colegas co-autores e co-autoras está referenciado.

Ainda no sendeiro de O Direito Achado na Rua e localizando o interesse antecipatório sobre o tema – Justiça de Transição – Mauro já elaborava enunciados consistentes e, com sua escrita refinada trazia uma importante contribuição para a obra que organizamos, eu, José Carlos Moreira Silva Filho (membro da banca de tese e autor da bela apresentação do livro de Mauro Noleto) com outros e outras colegas, para a Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7). O texto de Mauro – O Direito Eleitoral da Ditadura – as aparências enganam? – , pode ser conferido na publicação p. 55-60 (ver aqui https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf).

Por isso que, eu próprio, tendo participado da banca examinadora que avaliou e aprovou a tese, cuidei de preparar uma recensão na Coluna Lido para Você –   https://estadodedireito.com.br/silencio-perpetuo-anistia-e-transicao-politica-no-brasil-republica-velha-e-era-vargas/. Publicação, aliás, que enviei para o caro amigo Plácido Arraes, sugerindo a publicação da obra que o querido editor e amigo logo acolheu, pela sua relevância intrínseca é evidente, mas porque ela é concluída num momento em que o tema, nos pressupostos destacados por Mauro, pode e deve contribuir para o debate em curso no país depois dos atentados contra a Democracia e as Institituições da República, com intenção de golpe de estado já abrindo o repertório dos escapismos de perpetradores que aspiram a se auto-anistiar, a se refugiarem em silêncio perpétuo.

Por isso que afirmei incidir a tese de Mauro Noleto, incide agudamente na desconstrução dessa e de outras falácias. A primeira, sobre recusar a posição gatopardista de transição política, como conciliação, esquecimento de dissensos e antagonismos, que querem naturalizar restaurações dos processos de rupturas na História, banalizando a sua crueza e a letalidade que neles se desencadeia; na atenuação dissimuladora de uma “cordialidade generosa e pacificadora” que nos caracterizaria, disfarçando a violência própria de uma experiência que se mantêm neocolonial, apesar da descolonização sem a decolonialidade que poderia superá-la.”

Por essas razões, meu relevo na leitura da tese de Mauro Noleto está na sua tomada de posição relativamente a vencer os limites de entendimento, seja sob a perspectiva linguística, seja sob o enfoque hermenêutico, ou da crítica teórica, para localizar e ampliar as iniciativas de recuperação da memória e da história desse tempo, de modo a resgatar a anistia extorquida ou o uso parasitário do seu conceito, para romper o silêncio perpétuo, tal como indica o título de sua tese.

Sua abordagem reclama a necessidade da ousadia e da novidade na concepção política do presente e do futuro. E, de algum modo, uma disposição crítica da política e da história, com apoio em boa base conceitual para escovar a contrapelo e permitir que se revele um singular coletivo, uma passagem entre o passado e o futuro.

Por essas razões, meu relevo na leitura da obra de Mauro Noleto está na sua tomada de posição relativamente a vencer os limites de entendimento, seja sob a perspectiva linguística, seja sob o enfoque hermenêutico, ou da crítica teórica, para localizar e ampliar as iniciativas de recuperação da memória e da história desse tempo, de modo a resgatar a anistia extorquida ou o uso parasitário do seu conceito, para romper o silêncio perpétuo, tal como indica o título de sua tese.

Sua abordagem reclama a necessidade da ousadia e da novidade na concepção política do presente e do futuro. E, de algum modo, uma disposição crítica da política e da história, com apoio em boa base conceitual para escovar a contrapelo e permitir que aqui e agora, no presente que constrange, se revele uma passagem entre o passado e o futuro, expungindo-se do presente essas falácias para recuperar eticamente aquele “hiato de credibilidade” que preserve a verdade na política (Hannah Arendt).

Muito importante a observação de José Carlos Moreira Silva Filho, na Apresentação da obra, sendo ele, um dos mais destacados membros da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil e, pesquisador e autor de referência no tema Memória, Verdade e Justiça de Transição:

Um último ponto que gostaria de destacar. Concordo com a tese defendida no livro quanto a esse caráter de medida de exceção que a sucessão das nossas anistias representa, mas é preciso levar em conta, como o próprio autor também registra, que cada processo de anistia precisa ser também considerado pelo sentido a ele dado pelos seus protagonistas, dentre os quais também figuram os setores que se opuseram aos regimes e às medidas de força e que delas foram vítimas diretas ou indiretas. Tratando mais especificamente da transição que marcou o nascimento da Nova República, após 21 anos de ditadura comandada por militares, é inegável que as lutas pela anistia ocorridas durante todo o período, e com especial intensidade na segunda metade da década de 70, viram na palavra “anistia” uma bandeira pela volta da democracia, dos exilados e das liberdades públicas, assim como pela libertação dos presos políticos. Também é fato que a nova ordem constitucional instituída em 1988 demarcou para a palavra “anistia” um sentido de reparação e de repúdio aos atos de exceção, que em pouco mais de uma década acabou por dar origem à criação legal da Comissão de Anistia, uma comissão de reparação, cuja atuação, gerou diversas políticas de memória e o aprofundamento da justiça de transição no Brasil.

Contudo, sublinhando esse caráter ambíguo da anistia brasileira, a atuação da Comissão de Anistia sempre esteve atrelada às possibilidades e posicionamentos políticos dos governos de plantão, não suficientemente reconhecida como uma Comissão de Estado, e funcionando no vácuo da inexistência de uma efetiva e ampla política de direitos humanos no Brasil, ora com mais verbas e recursos, ora com estrutura precária. O maior sintoma desse aspecto vacilante foi conhecido entre 2019 e 2022, quando a Comissão foi aparelhada por um governo de extrema direita, passando a ser composta por pessoas que faziam apologia da ditadura e que passaram a revitimizar os que a ela recorriam em busca de reparação. Essa “anti-Comissão de Anistia” buscava justificar os atos de exceção, estigmatizar os seus opositores e alegar que não teria havido ditadura nem golpe no Brasil a partir de 1964.

 Vê-se logo a importância da publicação do livro de Mauro Noleto e a sensibilidade de Plácido Arraes de programar a publicação da obra. A conjuntura é crítica. Enquanto finalizo a redação da Coluna recebo a notícia da prisão preventiva de um general (da reserva), candidato a Vice Presidente da República em chapa derrotada no último pleito, decretada a pedido da Polícia Federal, pelo Ministro Alexandre de Moraes, por conduta que interfere nos inquéritos que apuram atentados à República e à Democracia, nos quais está indiciado.

A obra contribui para restaurar aquele “hiato de credibilidade” que Hannah Arendt caracterizou como necessário à verdade na política. A obra denuncia a tentação obsequiosa para o silêncio sobre contrafações graves que esvaziam o sentido educador que a política deve realizar

Já afirmei – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – estar seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.

E ainda mais recentemente, na condição de ex-Reitor da UnB subscrevi com mais de setenta colegas ex-Reitores e ex-Reitoras, um manifesto em defesa da democracia –https://brasilpopular.com/manifesto-de-posicionamento-de-ex-reitores-em-defesa-da-democracia/. Esse manifesto convoca para uma tomada de posição que baliza a reconstrução do país no percurso de retomada de seu projeto democrático. Algo que venho assinalando aqui neste espaço do Jornal Brasil Popular (Coluna O Direito Achado na Rua): Em outro texto –https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/, lembrei, com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade), que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade.

Insisto, o livro de Mauro Noleto – Silêncio Perpétuo? Anistia e Transição Política no Brasil (República Velha e Era Vargas) – datado no recorte que analisa, mas atemporal nos pressupostos e fundamentos que sistematiza, cuida de apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos.

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

 

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