Coluna Lido para Você
NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, 168 p.
Antes de me debruçar sobre o livro de Mauro Noleto, de 1998, fruto da dissertação que tive o gosto de orientar, na Faculdade de Direito da UnB, recupero do autor, atualmente Presidente da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de Brasília, um esboço de seu projeto de pesquisa em curso: Sujeitos Coletivos de Direitos Constitucionais: A titularidade “achada na rua” dos direitos fundamentais no Brasil em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O projeto de Mauro Noleto, evidentemente remete aquele primeiro estudo avançado, que de dissertação converteu-se em livro. E prossegue de um interesse teórico-político já instalado em sua motivação desde o tempo de sua graduação em Direito, na Faculdade de Direito da UnB, quando aceitou o apelo da crítica jurídica formulada por Roberto Lyra Filho, a partir da NAIR – A Nova Escola Jurídica Brasileira e sua expressão mais acabada, legada pelo próprio Lyra Filho, mesmo após o seu jubilamento na universidade e na vida: O Direito Achado na Rua.
Seu ponto de partida, valendo-se de sua inserção institucional, foi o evento que ele descreve: No segundo semestre de 2008, por ocasião do aniversário de vinte anos da Constituição, a Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal veiculou o programa “Diálogos Democráticos”, uma série de entrevistas com importantes juristas que procurou discutir o impacto das mudanças na democracia brasileira provocado pela presença cada vez mais ativa (ou ativista) do Judiciário na esfera pública. No momento em que a “Constituição Cidadã” completava 20 anos de sua promulgação, o tom era de celebração, afinal era a primeira vez na história brasileira que se chegava tão longe sem a ocorrência de golpes na legalidade constitucional ou rupturas institucionais. Ensaiava-se até um orgulho patriótico, pois experimentávamos simultaneamente desenvolvimento econômico, políticas públicas de inclusão social e instituições democráticas consideradas estáveis, especialmente as instituições do sistema de justiça, cada vez mais proeminentes.
Do que pode aferir, considerando os posicionamentos de seus principais entrevistados – ministros e pesquisadores – tem a ver com a constatação que eles fazem do sistema de legitimação política. Para Mauro, sem dúvida, a perda crescente de legitimidade do sistema político, envolto em casos e mais casos de corrupção, transferiu para o Judiciário a tarefa “redentora” de limpeza moral das instituições democráticas, para além do seu papel comum de solução de conflitos. Esse é um fator determinante do novo momento constitucional brasileiro. No entanto, a “colonização” da Política pelo Direito e por seus aplicadores preferenciais, os juízes, nos marcos do neoconstitucionalismo, tem favorecido, de acordo com Garapon (GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas – Justiça e Democracia. Trad. Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 23), a emergência de uma cidadania conformista e passiva. “Cidadão-cliente” ou “cidadão-vítima”, de acordo com Garapon, o indivíduo desencantado com a Política vai à Justiça para cobrar direitos ou reparações, e, em detrimento da ação política coletiva e do civismo democrático, prefere ser tutelado pelo sistema de Justiça, visto como único capaz de prover suas expectativas de repressão ao crime e de manutenção de uma ordem social. Desmobilizado socialmente e individualista, à espera do “gozo passivo” dos “seus direitos” garantidos pela instância judicial, eis uma visão do sujeito de direito sem protagonismo que a judicialização e a extrema tutela da cidadania podem gerar.
Por outro lado, para ele, não está claro se esse novo “iluminismo jurisprudencial”, que, contra os demais poderes, reivindica para o Judiciário a “última palavra” sobre o sentido e o alcance dos direitos constitucionais, reconhece nos conflitos e movimentos sociais – sujeitos coletivos de seus direitos – mais do que sua face criminalizada. Recordemos a advertência de Boaventura de Sousa Santos, trazida ao debate nacional por José Geraldo de Sousa Jr., para quem o conservadorismo elitista que caracteriza o modo de funcionamento e a cultura dos membros do Judiciário pode fazer da lei (e da Constituição) “uma promessa vazia” (SOUSA JR., José Geraldo de. O Direito como Liberdade – O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2011, p. 64.). A advertência mantém-se atual, talvez mais atual do que há dez anos.
Contra uma resposta fraca da teoria contemporânea do direito constitucional ao pluralismo de fontes jurídicas que a Constituição abriga, no entanto, parece ter sido apenas substituir, no discurso decisório, a lógica formal e a subsunção pela “ponderação de valores”, para lidar com os problemas de equidade que a colisão entre direitos fundamentais provoca. Os sujeitos implicados no conflito e suas narrativas de criação de direitos parecem ter sido novamente condenados à “invisibilidade que não leva em conta o contexto social, o sentido das consequências da decisão, o peso das partes em conflito, para saber quem pode suportar um ônus restritivo maior à sua posição jurídica, entre outros aspectos. No campo dos direitos fundamentais, a ponderação jamais poderia desconsiderar ou menosprezar a “voz” ou o “grito” dos sujeitos dos direitos em jogo, NOLETO pretende, com sua pesquisa, tal como tem sido o eixo de sua contínua reflexão, enfrentar adequadamente a questão da titularidade de direitos fundamentais, especialmente nos episódios de concretização dessas conquistas no âmbito da jurisdição constitucional, é recuperar, neste momento de acentuada crise, o protagonismo dos sujeitos para que sua narrativa instituinte seja ouvida.
Em seu diálogo comigo, nesse percurso e na produção das entrevistas, Mauro me confere alguma distinção nesse campo: José Geraldo de Sousa Jr. – também entrevistado pelo mencionado programa da Rádio Justiça -, após traçar um panorama da transição democrática que produziu os compromissos de 1988, naquele aniversário de 20 anos da Constituição, alertava para o quadro de “disputas hermenêuticas” pela hegemonia narrativa das promessas constitucionais, atraindo para o palco do Judiciário as divisões e os conflitos da sociedade brasileira. Em sua avaliação crítica desse quadro – que se agravou fortemente desde então – José Geraldo também fez ver, ao final, que os direitos e as subjetividades que lhes dão concretude “não são quantidades, mas relações”, e que, portanto, não podem ser esvaziados de sentido pelo seu reconhecimento apenas formal e enumerativo:
Foi o que aconteceu com a Constituição de 88, gerando um grande debate nacional em torno da emergência de projetos, não só para organizar a sociedade, mas para “refuncionalizar” as instituições e creio que aí é que o Judiciário começou a se transformar, começou a se dar conta de ele tem um papel técnico, sim, mas também tem um papel político. E que cabe a ele, não se atemorizando diante dos conflitos, atuar no sentido daquilo que hoje é evidente, um intensíssimo processo de disputas hermenêuticas em torno da apropriação, por exemplo, da Constituição. É um processo de disputa visceral pelos discursos da interpretação, e como essa constituição foi uma constituição de compromisso e de transição, ela é altamente politizada, ela é expressão desses conflitos: conflitos entre capital e trabalho, entre ricos e pobres, entre o local e o global, entre, como você disse, valores que estão na base do reposicionamento dos sujeitos. A Constituição assumiu a sua condição de mediadora desses conflitos porque ela sinalizou para a convicção de que traduzia uma sociedade em transição, da pobreza para a riqueza, do egoísmo para a solidariedade, da exclusão para a inclusão. Por isso que o Título dos direitos diz que aquele elenco não exclui outros que derivem da natureza do regime. De que regime estamos falando? Do regime democrático e dos princípios que a Constituição adota. Do que estamos falando? De dignidade da pessoa humana, a emergência de novas subjetividades que são relacionais, não são quantidades, os direitos não são quantidades, eles são relações. E as relações, seja na família, seja na escola, seja no trabalho, são conflitivas no sentido criativo. ”
É que, para ele, não é mais possível aceitar que a questão da titularidade de direitos seja respondida abstrata e formalmente (NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica: a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998). Em outras palavras, dizer que todos são titulares de direitos fundamentais, como declara a letra da Constituição, não quer dizer que todos exercemos efetivamente os mesmos direitos em igualdade de condições, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, nos espaços públicos – na “rua” – em que os direitos se originam, realizam ou são violados existe uma rede intrincada e assimétrica de relações; nessa rede há atritos entre valores e interesses, há conflito social, há projetos de vida diversos e às vezes antagônicos, há desigualdades econômicas, e há também identidades sociais em formação, que carregam sentidos jurídicos concretos para os direitos fundamentais.
Por isso, o sentido de seu projeto: indagar: em que medida o discurso emancipatório das “promessas constitucionais” e dos “direitos subjetivos fundamentais” de fato se incorporou (ou pode se incorporar) à prática da jurisdição constitucional brasileira? Qual é o lugar e o destaque dado aos sujeitos coletivos de direito – suas narrativas instituintes – na interpretação da Constituição e na formação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal? .
O objetivo geral da pesquisa é, pois, diz Mauro, e a base de uma ampla, atualizada e sofisticada bibiografia crítica, a construção de um novo modelo de análise da jurisprudência constitucional em matéria de direitos fundamentais, nos marcos teóricos de O Direito Achado na Rua, que ressalte o protagonismo dos sujeitos coletivos de direito e suas relações jurídicas instituintes, permitindo-se inclusive imaginar como seria a jurisprudência constitucional se ela “andasse pelas ruas”.
São objetivos específicos: definir o quadro de referências teóricas para a análise interdisciplinar do comportamento decisório no âmbito da jurisdição constitucional (revisão bibliográfica); selecionar e examinar um conjunto de decisões do STF, em matéria de direitos fundamentais, tomadas durante a vigência da Constituição de 1988; classificar esse conjunto selecionado, a partir da titularidade dos direitos em questão (individuais e coletivos); identificar e descrever os métodos e técnicas de interpretação constitucional empregados pelos ministros e o modo como articulam ou não a titularidade de direitos e os sujeitos correspondentes; identificar e descrever as relações jurídicas instituintes dos direitos fundamentais.
Trata-se, em suma, de avaliar se o sistema de justiça e se o sistema judiciário estão à altura de cumprirem o papel que a Constituição e a Sociedade na reconstrução democrática, e mais ainda, quando se desenha no País um processo nítido de desdemocratização e de desconstitucionalização (para esse e outros aspectos pertinentes, conferir na Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2vt31Q5. Também no sítio do Projeto Movimento 2022. O Brasil que Queremos, o documentário/debate sobre esse tema, com a participação de Mauro Almedida Noleto, na qualidade de debatedor: http://bit.ly/2t4pWzv).
Volto ao livro do Mauro Almeida Noleto, cujo prefácio me coube elaborar. Nele, como já indica o título de seu livro – Subjetividade Jurídica: a Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória -, porta o autor esta espécie de pensamento não conformista, crítico e independente, próprio para interpelar o novo de forma heterodoxa.
A sua reflexão, em primeira pessoa, expressa o que poderia chamar de pensamento inquieto. Um pensamento que não se subordina a conhecimentos ou categorias óbvias que possam ser considerados insubstituíveis e que procura se conduzir conscientemente em seu modo de conhecer.
Como reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo, um pensamento inquieto sabe, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas.
Mauro desenvolve o seu trabalho tendo muito presentes estas condições, que se traduzem em seu processo de reflexão e em seu estilo. Nem poderia deixar de ser diferente. Pensamentos inquietos são, essencialmente, existenciais. Esta é a base de uma cultura, ela também inquieta, apta, assim, a transformar experiências e vivencias projetando-as em direção ao novo, porque em condições de discernir os sinais de futuro já inscritos nas práticas do próprio cotidiano.
Discernir o sentido e o significado destas experiências e vivências supõe um deslocamento constante do olhar – visão de mundo – cognoscente acerca das imagens de síntese que buscam compreender o mundo ao invés de manipulá-lo.
Enquanto participações que ensejam o conhecimento acerca de elementos da realidade, estas sínteses constituem o imaginário que organiza as várias expressões das atitudes humanas e que determinam modos de conhecer: o modo filosófico, o modo científico, a experiência mística, a intuição artística.
O trabalho de Mauro Noleto é pródigo no enlace dessas participações, num esforço de esclarecimento cujo impulso é a rejeição de qualquer forma de monólogo, inclusive o da razão, sobre as formas possíveis de conhecer o mundo.
Não por acaso, a epígrafe que abre o seu trabalho é poética, sendo ele próprio e geneticamente poeta e ensaísta (seu pai, o advogado Agostinho Noleto é autor da ficcão Guerrilheiro sem Rosto e de Antologia, Crônicas, Contos, Poesias). Com Uma Didática da Invenção, de Manoel de Barros (Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios), a sua mensagem é a de que assim como a poesia não é um delírio, mas uma apropriação do real por meio de outro discurso, é também próprio do pensamento científico e da reflexão filosófica, abrir-se à subjetividade em perspectiva emancipatória.
Mauro honra desta maneira, sem perder a altivez de um pensar autônomo, a influência clara e conscientemente assumida que pontuou a sua formação jurídica: Roberto Lyra Filho. Não se trata de uma adesão fascinada. Antes, de uma gemeidade de interesses, não fosse Lyra Filho também, filósofo e poeta.
Portanto, o pensamento de Roberto Lyra Filho não é a matriz da reflexão de Mauro Noleto. Mauro não retoma os temas deste notável pensador para desenvolvê-los até patamares ou para encontrar soluções que este, em seu tempo e em razão de suas circunstâncias, não pudera alcançar ou estabelecer. Ele encontra os seus próprios temas haurindo, aí sim, no diálogo entre o seu pensamento e o pensamento de Roberto Lyra Filho, a excelência de um filosofar sem precedentes na cultura brasileira, preciso, vigoroso, sutil, iconoclasta, fecundo em suas antecipações, receptivo em seu aconchego epistemológico, em que tantos nos abrigamos, como Mauro, como eu também, para novos pontos de partida.
Não era, assim, afinal, que o próprio Lyra Filho imaginava a partilha intelectual do trabalho associado? Ao lançar as bases do movimento que denominou Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair (Direito e Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, n. 1, Editora Nair, Brasília, 1982, p. 13), ele indicou: Adotamos o rótulo de Escola, não por arrogância, mas por humildade. Não impomos lições: procuramos juntos a verdade; não somos mestres, mas eternos estudantes, que nunca deixarão de sê-lo, para evitar que as nossas cabeças se tornem museu de ideologias e pantanal de subserviência. Também não adotamos o rótulo de Escola por dogmatismo; as nossas conclusões não formam corpo de doutrina a ser engolida como um catecismo. Reconhecemos, tão-só, que, na pesquisa e reflexão, há menos probabilidade do erro, quando empreendidas em trabalho de companheiros associados, formando um vivo entreposto de trocas intelectuais. Escola, para nós, quer dizer fraternidade, entrosamento e comunhão de esforços, que se escoram reciprocamente e se reajustam à crítica dos consócios….
Em seu trabalho, portanto, Mauro Noleto parte da concepção crítica da Nova Escola Jurídica Brasileira, e dos paradigmas designados por Roberto Lyra Filho, mas procura indicar novas alternativas conceituais para pensar o tema a que se propôs: a subjetividade jurídica e, notadamente, a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória. Aprofunda, desse modo, questões que identificara desde seus trabalhos de iniciação científica e de participação universitária no movimento estudantil que lhe valera à época, suas primeiras publicações (Sujeito Coletivo de Direito. Brasília: UnB. Você Pesquisa… Então Mostre!. Anais, 1991, prêmio de melhor trabalho, em co-autoria com Inês da Fonseca Porto e Bistra Stefanova Apostolova, trabalho completo p. 145-160); e a assunção à responsabilidade de direção na organização nacional de estudantes de direito, na executiva do ENAJUR (Encontro Nacional de Assessoria Jurídica).
Vem daí, por conseguinte, a percepção que cedo desenvolveu acerca da emergência de novos e plurais formas de identidade individual e coletiva, ou, como ele designa, de novos sujeitos, novos atores, (que) cada vez mais frequentemente, ganham visibilidade no cenário público instituído, demandando o reconhecimento de suas ações como legítimas no exercício da cidadania, bem como o reconhecimento das condições sociais de sua existência como circunstâncias injustas do cotidiano. Fruto da emergência desses novos sujeitos é o processo de instituição de novos direitos.
Localiza-se nessa concepção o horizonte do duplo engajamento – político, teórico e metodológico – que demarca o percurso de Mauro Noleto. O que ele indicava em seu texto de 1998 está inteiramente contido nos fundamentos de seu protocolo de pesquisa atual, como visto acima e nas diretrizes que imprime atualmente, na qualidade de Presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, em sua assimilação genuína do magistério pontifício de Francisco, tanto na alegria de evangelização, quanto no diálogo com os Movimentos Sociais. Confiro, em Mauro o que ele revela nessa disposição, conforme http://bit.ly/2GgrpeT: Engajados nas lutas por Terra, Teto e Trabalho – os três T’s a que se refere o Santo Padre -, as lideranças dos movimentos compareceram em peso à sede da Cúria Metropolitana para expressar seus “anseios e esperanças”, ao tempo em que sugeriram a D. Sergio e a toda a Igreja de Brasília suas “pistas e apoios para o enfrentamento das graves questões vividas pelas classes trabalhadoras do Distrito Federal”. Organizados em três grupos, de acordo com suas respectivas lutas por terra, trabalho e pelo direito à cidade e à moradia, as lideranças se revezaram na apresentação de suas identidades, conflitos, carências sociais e bandeiras de luta, em tom sempre respeitoso e esperançoso diante da oportunidade oferecida pela Igreja de Brasília ao abrir suas portas e seu coração para o clamor daqueles que mais sofrem e lutam por justiça em nossa sociedade (acesso em 06.01.2019).
É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro, de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).
Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.
É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:
Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…
(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).
Tem razão, Mauro. Uma das mais importantes constatações derivadas dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais foi a percepção, primeiramente elaborada pela exegese teológica da libertação e simultaneamente pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e de suas configurações estruturadas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.
Chamei a atenção, no âmbito jurídico, para essa percepção, lembrando (Movimentos Sociais – A Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direitos. Belo Horizonte: XIII Conferência Nacional da OAB. Anais, 1990) que a questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais e dos direitos novos que elas enunciam. Cuida-se de valorizar, adequadamente, as formas de sociabilidade constituídas nas relações de reciprocidade num cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.
Na mesma XIII Conferência da OAB, Marilena Chauí referiu-se a esta realidade para pensar a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos. Em suas palavras (XIII Conferência Nacional da OAB, 1990, Anais), ela afirma: cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua auto-posição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.
Trata-se, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Mauro Almeida Noleto, sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades e filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de direitos nomeando as novas categorias jurídicas que as representam.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |
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