Rui Magalhães Piscitelli: 20 anos de serviço público com ética, técnica e compromisso com os direitos sociais

Por Carmela Grüne

Neste anos celebraremos os 20 anos do Jornal Estado de Direito, uma trajetória coletiva que, em coerência e densidade, representa a defesa incansável do Estado Democrático de Direito. Rui Magalhães Piscitelli é uma dessas vozes. Advogado público federal, professor universitário, na graduação e no pós‑graduação em Direito, mestre em Direito Constitucional e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania, ele construiu uma caminhada institucional que alia conhecimento técnico, consciência crítica e compromisso com a transformação social.

Ao longo de mais de duas décadas, Rui ocupou postos estratégicos na administração pública federal: foi procurador‑chefe do INEP/MEC, assessor jurídico do Ministério do Trabalho e Emprego, consultor da União na Consultoria‑Geral da União, coordenador da área administrativa da Superintendência Nacional de Previdência Complementar, membro da Comissão de Ética Pública e, atualmente, é Assessor da área econômica na Secretaria Especial de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República.

A entrevista concedida ao Jornal Estado de Direito é, ao mesmo tempo, um mergulho na memória da gestão pública brasileira e uma reflexão contundente sobre os desafios contemporâneos da cidadania, das instituições democráticas e do papel do jurista em tempos de ameaças regressivas. A conversa marca também o reencontro entre dois trajetos que começaram juntos: o de Rui na Advocacia Pública e o do Jornal Estado de Direito, ambos iniciados em 2005.

Judicialização, ativismo constitucional e o papel transformador da Constituição de 1988

A primeira questão abordada diz respeito à judicialização das políticas públicas. Rui refuta o argumento de que há excesso de ativismo judicial e resgata a centralidade da Constituição de 1988 nesse processo:

“Não vejo ativismo do Judiciário. O que há é ativismo da Constituição de 1988. Ela deslocou o centro das Constituições brasileiras — antes voltadas à organização do Estado — para os direitos fundamentais. E dotou o sistema de justiça de instrumentos para garanti‑los.”

Segundo ele, o Poder Judiciário e as funções essenciais à justiça, como a advocacia pública, o Ministério Público e a defensoria, operam como engrenagens desse projeto constitucional transformador. “Somos instrumentos da Constituição. O Judiciário só age quando provocado, e essa provocação decorre da força normativa da Carta de 1988”, afirma.

A força estratégica da advocacia pública

Rui enfatiza a importância da advocacia pública para o fortalecimento da legalidade e da segurança jurídica na implementação de políticas públicas. Para ele, quanto mais qualificada for a atuação prévia da advocacia estatal, menor será a litigiosidade:

“A atuação consultiva da advocacia pública é essencial. Ela permite que políticas sejam bem desenhadas desde o início, evitando judicializações futuras. E quando os casos chegam à Justiça, chegamos com argumentos amadurecidos.”

Ele destaca programas educacionais como exemplos bem‑sucedidos dessa prática: Pé‑de‑Meia, ProUni, FIES e Escola para Todos:

 “Quando a política nasce juridicamente segura, o sistema de justiça a reconhece como legítima. A advocacia pública atua não apenas defendendo, mas construindo direitos desde sua origem normativa.”

Uma virada na história: cotas raciais e o ativismo constitucional na prática

Ao rememorar sua atuação pioneira na defesa das cotas raciais em vestibulares federais, especialmente no caso da Universidade Federal do Paraná em 2005, Rui revela uma das experiências mais marcantes de sua vida profissional. À época, não havia lei, nem decisão do Supremo, nem mesmo entendimento consolidado:

“A fonte normativa era o edital do vestibular. Fui estudar o tema e preparar memoriais. Chegamos ao TRF da 4ª Região com argumentos jurídicos ainda pouco explorados no Brasil. E conseguimos reverter mais de 25 liminares em nome da Advocacia‑Geral da União.”

A partir dessa experiência, escreveu sua dissertação de mestrado e publicou a obra Cotas raciais – Promoção de Ações Afirmativas para Acesso dos Negros à Universidade, hoje na segunda edição, referência nacional no tema.

“A crítica era que os cotistas não teriam base para se manter no curso. Hoje, as pesquisas mostram o contrário: os índices de evasão entre cotistas são muito menores, o que demonstra o compromisso e a seriedade com que encaram essa oportunidade.”

Rui adverte, no entanto, que o reconhecimento legal e jurisprudencial das cotas raciais não as torna irreversíveis:

“Leis podem ser revogadas. A correlação de forças políticas no Congresso é delicada. A sociedade precisa estar atenta para impedir retrocessos.”

Eficiência fiscal e dignidade humana: reconciliação possível

Outro ponto crucial da entrevista foi a discussão sobre a falsa dicotomia entre responsabilidade fiscal e direitos sociais. Rui afirma que é plenamente possível compatibilizar ambos:

“O atual governo sancionou a Lei Complementar nº 200/2023, o novo arcabouço fiscal, e mesmo assim avançou nos direitos sociais. O problema é que setores conservadores usam o discurso fiscal para justificar retrocessos.”

Ele aponta a necessidade de reavaliar os R$ 800 bilhões em renúncias fiscais anuais — muitas sem retorno social:

“Grande parte desses incentivos não se justificam mais. A questão não é falta de recursos, mas prioridade na alocação. Sustentabilidade fiscal não exige cortar salário mínimo, nem acabar com políticas afirmativas.”

Rui relembra o papel histórico do Estado Social e adverte:

“É preciso muito cuidado com discursos que romantizam a ausência de CLT e vendem um ‘empreendedorismo’ precarizante. Isso nos leva de volta à Revolução Industrial, onde não havia previdência, jornada de trabalho, nem salário mínimo.”

Função pública e o projeto de nação

Rui defende a valorização do serviço público como pilar do Estado Democrático:

“A função pública é estratégica. Atacar os servidores e o próprio Estado é parte de um projeto de desmonte social. É preciso retomar concursos, formar quadros técnicos e garantir diversidade.”

Segundo ele, os concursos públicos unificados, com conteúdos mais voltados a direitos humanos, sociologia e cidadania, representam um avanço. Ele destaca ainda a política de cotas raciais nos concursos como instrumento de transformação institucional:

“Uma administração pública mais diversa, mais técnica e mais humanista fortalece o Estado Social e garante a continuidade de políticas públicas estruturantes.”

O jurista e a reconstrução democrática

Diante da pergunta “qual o papel do jurista na reconstrução democrática?”, Rui é direto:

“É defender a Constituição. A de 1988 é uma Constituição ativista, voltada à promoção de direitos. O jurista deve ser instrumento dessa escolha feita pelo constituinte.”

Ele lamenta as mais de cem emendas que fragmentaram o projeto constitucional original e reafirma a importância de juristas comprometidos com a dignidade humana e a justiça social:

“Não é papel do Supremo ser ativista. É da Constituição. O STF deve ser deferente à Constituição e fazer valer seu conteúdo.”

Jornal Estado de Direito: um elo afetivo com o início de sua trajetória

Ao final, Rui relembra com emoção sua relação com o Jornal Estado de Direito:

“Meu início na Advocacia‑Geral da União coincidiu com o nascimento do jornal. Já lá atrás, em 2005, fazíamos entrevistas. Eu guardo isso com muito carinho.”

E completa:

“Passaram‑se 20 anos e você continua com o mesmo compromisso. O Jornal Estado de Direito é muito mais do que um periódico — é parte viva da construção de um Brasil mais justo.”

Sobre a cerimônia comemorativa do dia 6 de novembro, afirmou com entusiasmo:

“Vou fazer o possível e o impossível para estar presente. Esse reconhecimento me honra profundamente. O Sul tem uma tradição jurídica forte, e o Jornal representa o melhor dessa história.”

Conclusão: a esperança como método

A trajetória de Rui Magalhães Piscitelli ensina que é possível fazer do serviço público um lugar de excelência, justiça e compromisso social. Sua atuação mostra que o Direito pode ser ponte — e não muro — quando está a serviço da Constituição e da dignidade humana. Ele não apenas defende políticas públicas: as constrói. Ele não apenas fala sobre o Estado Social: o pratica, cotidianamente.

Na celebração dos 20 anos do Jornal Estado de Direito, homenagear Rui é também reconhecer que é preciso — e possível — resistir com técnica, ética, coragem e esperança. Que as próximas décadas sigam sendo marcadas por trajetórias como a dele: coerentes, comprometidas e orientadas pela ideia de que justiça é, sobretudo, um ato de humanidade.

Convite à celebração

A entrevista integra o ciclo comemorativo de entrevistas, publicações e atividades que culminará no Ato Festivo dos 20 anos do Jornal Estado de Direito. O evento pretende reunir 400 convidados e contará com homenagens, debates e uma edição especial comemorativa.
O professor Rui Magalhães Piscitelli é um dos convidados de honra da celebração, reconhecido por sua contribuição ao pensamento crítico e à construção de um Direito mais democrático e humanista.

📍 6 de novembro de 2025
📍 Associação Leopoldina Juvenil — Porto Alegre/RS
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