Reflexões para o Primeiro de Maio

         * Valdete Souto Severo  pós doutora em Ciências Políticas pela UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é Doutora em Direito do Trabalho. 
Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região

 

   Em um ano de eleições, depois de quatro de um governo improvável, depois de tanta violência, tanto desmanche, é preciso esperançar. Na verdade, não temos opção. Desistir não está no cardápio. Não temos esse direito, especialmente nós que temos o privilégio de ter um trabalho, uma casa, comida à mesa. O primeiro de maio, na quadra atual da história brasileira, revela-se, então, necessariamente, como um dia de luta por mudanças nas atuais condições de existência, permitindo ou mesmo exigindo uma reflexão profunda sobre a impossibilidade concreta de seguirmos apostando em um modelo de sociedade no qual é preciso trabalhar, no mais das vezes até a exaustão e em péssimas condições, para sobreviver.

É urgente recuperar a importância da desconexão, da vida fora do trabalho. Não há condições de fazer política, no sentido mais amplo e pleno da palavra, sem tempo. A tecnologia, que pode servir para tornar melhores as condições de vida, tem sido um elemento de aprofundamento da extração de trabalho em condições que tornam a vida mais difícil. O teletrabalho, “privilégio” de quem tem condições materiais para isso, praticamente elimina a distinção entre tempo de descanso e tempo de trabalho, o que significa a colonização integral do tempo de vida pelo trabalho necessário, em prejuízo de todo o resto: convívio familiar, envolvimento político, afetos.

O falso argumento de que não há mais centralidade do trabalho também precisa ser superado. Seguimos sendo uma sociedade de trabalho obrigatório, em que quem vende força de trabalho o faz em troca de dinheiro para poder viver. Há, pois, centralidade do trabalho subordinado. Os disfarces (terceirização, uberização, empreendedorismo) é que precisam ser compreendidos e enfrentados. Para isso, porém, é preciso abandonar o perverso discurso do mal menor, pelo qual mesmo pessoas supostamente comprometidas com uma regulação jurídica que permita trabalho decente acabam compactuando com práticas precarizantes. Talvez o exemplo melhor disso seja a MP 936, transformada em Lei 14.020 e declarada constitucional pelo STF. Ora, reduzir salário, em uma realidade como a nossa, em que a maioria das pessoas recebe entre um e dois salários mínimos, durante uma crise sanitária de proporções catastróficas como a que vivemos, é condenar trabalhadoras e trabalhadores ao adoecimento, pois o resultado é a impossibilidade de comprar comida saudável, remédio, agasalho, etc. Ainda assim, até mesmo as centrais sindicais acabaram aceitando esse “mal menor”, e optaram por brigar apenas pela exigência de negociação coletiva. O resultado foi a aprovação da possibilidade de redução de salário por “acordo” individual e boa parte das empresas que aderiram a essa prática, ainda assim promoveram, na sequência, despedidas coletivas, deixando um número impressionante de pessoas sem condição de sobrevivência.

A miopia que decorre dessa aposta no “mal menor” precisa ser compreendida desde o equívoco que funda o que chamamos de modernidade. O avanço representado pela superação dos dogmas medievais, também representou uma aposta no ser humano como “medida de todas as coisas”. Algo que, como Hannah Arendt refere, leva, no limite, ao desespero, porque seguimos sabendo da fragilidade de nossa condição humana, ou seja, de que apostarmos nos seres humanos como fontes de conhecimento, seres melhores que os demais, capazes de dissecar e responder aos enigmas da existência é uma espécie de autoengano. Pois bem, é sobre esse autoengano que toda a modernidade se funda, o que implica uma ruptura radical com os saberes ancestrais, com a compreensão coletiva das coisas e a construção coletiva dos conhecimentos.

Em nosso caso, esse processo está intimamente ligado ao colonialismo predatório de que fomos alvo, um processo histórico profundamente empenhado em destruir a cultura originária, que não tinha esses mesmos fundamentos. Aí está, na minha percepção, a raiz de uma racionalidade individualista, em que temos dificuldade de compreender que nosso destino está implicado com o de todos os outros seres. É parte disso a idealização e prática de um convívio social fundado na troca de trabalho por capital. Ou seja, ter que trabalhar por salário, como condição (única para a maioria das pessoas) de sobrevivência implica também compreender o próprio tempo de vida, a energia física e mental, como mercadorias. Como pontuou Marx, vender tempo de vida como se mercadoria fosse é de tal modo permitir e incentivar o estranhamento de si, que passamos a estranhar uns aos outros, percebendo os demais seres também como coisas descartáveis. Não há como compreender a facilidade com que se adota a lógica do “Você S/A”, acreditando-se empreendedor quando se é, em verdade, trabalhador precarizado, completamente dependente da possibilidade de troca de trabalho por capital, sem retomar esse fio. Um fio que tece uma história que apaga a nossa condição de interdependência, para em seu lugar forjar um conceito (e uma prática) de autonomia que na realidade da vida de quem depende da própria força de trabalho para viver traduz-se como abandono, desalento. Algo enlouquecedor, porque o fracasso passa a ser visto como incompetência, mesmo que o sucesso seja impedido pelas próprias características de um sistema que não é para todos. Daí porque pessoas que trabalham 15 horas por dia e que não podem adoecer porque não têm acesso ao sistema de previdência social nem dinheiro para pagar pelo atendimento privado se dizem mais felizes do que se tivessem de trabalhar como empregadas. E elas realmente acreditam nisso, não apenas porque são levadas a crer, por uma propaganda ideológica fartamente reproduzida nesse sentido, mas porque se trata de uma ilusão que dialoga com esse imaginário moderno, que responde à falsa noção de autonomia.

O grande problema é a consequência física, emocional e social dessa ilusão, que nos deixa a todas cansadas, exaustas, sem energia para pensar e atuar de forma política. E gera essa dificuldade que temos de pensar politicamente, no sentido mais amplo e profundo do termo, de pensar o presente e a ausência de sentido em uma vida dedicada apenas à sobrevivência física, e mesmo de pensar o futuro, e a destruição ambiental que o interdita.

No caso do Brasil, sob essa racionalidade individualista, que nos desconecta dos demais seres, existe uma ferida de origem. Somos um país fundado sob a lógica da sujeição desumanizadora. Os colonizadores compreenderam as pessoas que já viviam por aqui como objetos descartáveis, matáveis, estupráveis. Corpos que podiam ser violados. Eliminaram sua cultura, suas crenças, seus costumes. É também na assimilação da suposta desumanidade das pessoas sequestradas e trazidas da África na condição de escravizadas que se consolida a exploração escravista, naturalizada, disciplinada pelo Estado por mais de três séculos. Com toda essa insanidade que se construiu aqui um arremedo da civilização europeia, tornando sempre claro (inclusive pela seleção dos europeus que posteriormente vieram para trabalhar) a menos valia de quem de algum modo pertence a essa terra. Por isso um arremedo apenas, que faz com que até hoje não tenhamos noção de soberania no Brasil. Faz com que sigamos tributários de uma validação exterior que nunca aconteceu nem acontecerá.

O Brasil tem a extensão, a diversidade e a riqueza natural capaz de fazê-lo autossustentável. Pode produzir comida e casa para todas as pessoas, mas para isso precisa dividir terra e riqueza, e pensar o convívio social a partir de outras bases. Que ainda exista escravização por aqui é reflexo dessa cultura que nos impede de pensar como comunidade. E nos torna um povo de não-sujeitos. O que está na raiz disso é a compreensão do outro, que depende do trabalho para sobreviver, como um ser humano diferente, “cidadã de segunda classe”, como diz Buchi Emecheta em um de seus livros. Alguém que não é visto como um semelhante, como um ser com quem compartilhamos um destino, mas sim alguém que “nunca poderia ser eu”. Judith Butler tem uma passagem na qual refere que é exatamente a vulnerabilidade, a percepção, por vezes inconsciente, do nosso desamparo, o que facilita a identificação com o assujeitador. E eu acrescentaria: com o feitor de escravos. Se negamos ao outro a condição de pessoa, não precisamos temer, pois de algum modo – ainda que irracional – colocamo-nos em uma posição na qual é possível fingir que aquele destino de privações nunca será o nosso destino. A racionalidade moderna já nos conduz para isso e, no caso de Brasil, é agravada por essa condição histórica de desumanização dos corpos indígenas, negros, pobres.

Nas relações de trabalho, temos tanta dificuldade em perceber a violência da extensão da jornada, do não pagamento de um salário, do assédio representado pelo estabelecimento de metas que não consideram as diferenças entre as pessoas exatamente por isso. Não se trata apenas da visão da relação de trabalho como contrato, que já é por si só violenta e falsa. Trata-se de compreender o trabalho como uma benesse outorgada por quem emprega, em relação à qual é preciso ter gratidão e mostrar-se subserviente.

Uma sociabilidade que minimiza a violência da despedida, por exemplo, dessa possibilidade de impor a alguém a privação do único meio pelo qual essa pessoa pode obter o dinheiro que lhe permitirá sobreviver numa realidade em que tudo, até comida, precisa ser comprado, é uma sociedade em essência escravista. Se é possível tirar de alguém o emprego, inclusive alegando justa causa e com isso negando-lhe o acesso ao FGTS e ao seguro-desemprego; se é possível tomar trabalho e não pagar salário e pensar nisso como um “mero inadimplemento contratual”, então escravizar é apenas o passo seguinte, é parte da mesma racionalidade. A recente decisão do STF, na ADC 58, é emblemática para demonstrar essa racionalidade. A dívida trabalhista já era desvalorizada em relação a outras, como dívidas bancárias. Com a decisão do STF sobre o critério de atualização dos créditos trabalhistas, desrespeitar esses direitos tornou-se um ótimo negócio, o que precisa ser compreendido dentro dessa lógica desumanizante, que naturaliza a imposição de privações a quem vive do trabalho.

Os ataques sistemáticos à Justiça do Trabalho constituem outro exemplo. A Justiça do Trabalho sempre foi uma instituição que de algum modo serviu aos propósitos do capital. Seja quando idealizada e materializada, ainda na década de 40 do século passado, como via de conciliação entre capital e trabalho, seja em sua atuação desde lá, criando entendimentos (como a súmula 331) e práticas (como a outorga de quitação do contrato de trabalho em acordos judiciais) que servem a essa racionalidade de desrespeito aos direitos de quem vive do trabalho. Ou seja, de algum modo essa instituição permite que o discurso dos direitos sociais conviva com o desrespeito sistemático, tolerado e até incentivado, desses mesmos direitos. Ainda assim, é alvo de críticas exatamente porque dá voz à classe trabalhadora, instaura uma possibilidade de enfrentamento menos assimétrico entre patrão e empregado, tensionando a subjetividade escravista. Nesse sentido, as audiências trabalhistas são, por exemplo, importante oportunidade de exercício de uma cidadania transformadora. A Justiça do Trabalho também tem uma função radicalmente fundamental quando reconhece as lesões e repara os danos que decorrem de uma relação de trabalho. Faz muita diferença, portanto, na vida das pessoas que buscam a tutela do Estado. Daí porque é tão importante relembrá-la em um dia como hoje e defendê-la para além do teor de suas decisões, que constituem reflexo das pessoas que nela atuam. Em um ano eleitoral, no qual flertamos com a possibilidade de aprofundamento da lógica fascista e autoritária que já condiciona nossa existência de tantos modos, é preciso fortalecer o discurso da importância dos direitos trabalhistas e de uma instituição que exista para efetivá-los. E essa deve ser a perspectiva e a prática de quem atua na Justiça do Trabalho.

Não podemos esquecer que a diferença do discurso que venceu às eleições em 2018, em relação aos discursos anteriores, não está propriamente no compromisso com a realização de direitos sociais, mas na deliberada hostilidade à existência mesma desses direitos, na intenção de fazer sofrer, de tornar pior a vivência de quem depende do trabalho para comprar comida e remédio.

Nosso compromisso, portanto, não deve ser restringir a uma tentativa de retorno ao que já vivemos. É preciso construir uma nova racionalidade em relação aos direitos fundamentais trabalhistas. Esperançar, nesse sentido, invocando Paulo Freire, é insistir na luta por uma mudança profunda em nosso olhar e prática das relações de trabalho, reivindicando redução de jornada, estabilidade, salários decentes, eliminação de condições insalubres, fim das metas ou da possibilidade de despedir por justa causa, reconhecimento da violência da prática conciliatória nas lides trabalhistas, expansão do acesso gratuito à justiça, efetiva divisão de riqueza e de terra. Reivindicando uma educação diferente, que trate das opressões de classe, gênero, raça, idade, etc, revelando aquilo que hoje as instituições se esforçam tanto para esconder.

Falar sobre isso já faz diferença.

Há muito o que alterar em nossa realidade atual. Isso, porém, não é razão para desistir. Antes, é motivo para persistir.

Hoje é primeiro de maio de 2022. Hoje é dia de seguir acreditando, persistindo e lutando. Hoje é dia de esperançar.

 

 

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