Coluna Valdete Souto Severo
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Trabalhadoras mulheres
Algumas das piores regras da chamada “reforma” trabalhista (Lei 13.467/2017) atingirão diretamente bem mais as trabalhadoras mulheres, do que os homens, como é o caso do trabalho intermitente ou do teletrabalho. Trata-se de uma modalidade de trabalho “apropriada” a quem, como a maioria absoluta das mulheres, é obrigada a acumular tempo de trabalho com lidas domésticas e cuidados com filhos. E se trata de um conjunto de regras que precarizam de modo tão absurdo as condições de trabalho, que é mesmo difícil acreditar tenham sido aprovadas pelo parlamento brasileiro. O artigo 452-A da CLT estabelece direito às férias…sem remuneração! Pretende permitir que a trabalhadora receba valor inferior ao mínimo legal e perca o direito aos repousos semanais remunerados, sem falar na concorrência que essa modalidade de contratação gera entre os empregados e na precarização que provoca, inclusive no que tange ao custeio do sistema de seguridade social. Além disso, pela Lei 13.467/2017, a trabalhadora em regime de teletrabalho perde o direito à aplicação de todas as normas de duração do trabalho, e poderá ajustar, por meio de negociação coletiva, quem suportará os custos de seu trabalho, em evidente afronta à redação do artigo segundo, que se mantém. A autorização para trabalhar por doze horas consecutivas, com possibilidade supressão (indenização) do intervalo para repouso e alimentação, também atingirá, sobretudo, as trabalhadoras mulheres. Isso porque, de acordo com a MP 808, apenas na área da saúde tal modalidade de contratação pode ser estabelecida em acordo individual, sem intervenção do Sindicato. E, nessa área, as mulheres são maioria absoluta.
Além dessas regras, algumas outras estão diretamente relacionadas à trabalhadora mulher e promovem a precarização das condições de trabalho, colocando em risco a saúde da trabalhadora. A Lei 13.467 obriga a mulher gestante ou lactante a levar atestado médico para a empresa, a fim de que seja afastada do ambiente insalubre de trabalho, revelando, por via contrária, uma tentativa de autorização para que haja trabalho com dano efetivo para a trabalhadora e para o bebê. A MP 808 piora ainda mais a situação, ao prever que a empregada gestante “será afastada, enquanto durar a gestação, de quaisquer atividades, operações ou locais insalubres e exercerá suas atividades em local salubre, excluído, nesse caso, o pagamento de adicional de insalubridade”, em aparente superação da inconstitucionalidade presente na redação legal, mas estabelecendo, na sequência, permissão para o exercício de atividades e operações insalubres em grau médio ou mínimo, pela gestante, “quando ela, voluntariamente, apresentar atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que autorize a sua permanência no exercício de suas atividades” (§ 2º ). E o § 3º arremata: “A empregada lactante será afastada de atividades e operações consideradas insalubres em qualquer grau quando apresentar atestado de saúde emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que recomende o afastamento durante a lactação”.
Essas disposições colocam a mulher trabalhadora em situação de extrema fragilidade diante do seu empregador. Durante a gestação, além de todas as alterações emocionais, hormonais e mesmo de organização da vida, que as mulheres precisam enfrentar, devem ainda se preocupar, em razão da lógica de completa ausência de proteção contra a dispensa, com a manutenção do emprego. Afinal, a garantia ridícula oferecida pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que se limita a cinco meses após o parto, nada lhes garante. Caso seja despedida, a mulher trabalhadora bem sabe que a possibilidade de obter novo posto de trabalho, tendo um filho de seis meses, em uma lógica de mais de 12 milhões de desempregados, é extremamente baixa. A trabalhadora, portanto, a depender do grau de sua necessidade de sobrevivência ou mesmo de seu afeto pelo trabalho que realiza, fará qualquer coisa para que seu empregador permaneça satisfeito e não a despeça após o término da garantia que lhe confere o art. 10 dos ADCT. Do mesmo modo, alguém que está retornando da licença-maternidade e que certamente enfrentará dificuldades para manter o emprego, após o período de garantia contra a despedida, certamente se sentirá “estimulada” pelo empregador a apresentar um tal atestado, para conservar o posto de trabalho. E ainda que isso não ocorra, certamente se sentirá constrangida caso alguma colega sua o faça. Ou seja, a apresentação de atestado, por uma trabalhadora, colocará todas as demais em posição desconfortável e mesmo assediadora (ainda que de modo velado) diante do tomador do trabalho e das próprias colegas.
Esses são apenas alguns exemplos que revelam, de plano, três coisas. Primeiro, que a lei em relação a qual Temer reivindica uma paternidade fajuta é ruim do começo ao fim. Nenhuma medida provisória ou interpretação conforme conseguirá arrumar o estrago que essa lei pretende provocar nas relações materiais e processuais de trabalho. Segundo, que se trata de uma lei misógina, que ataca de modo mais cruel as trabalhadoras mulheres e que precariza de tal modo as condições de trabalho, de sorte a tornar ainda mais perversa a ausência de garantia efetiva contra a despedida. Por fim, que a lei pode ser combatida com certa facilidade, desde a perspectiva jurídica, porque inconstitucional, ilegal e atécnica. Até que seja possível eliminá-la do ordenamento jurídico, entretanto, é urgente construirmos uma racionalidade que permita a resistência dos trabalhadores e é exatamente aí que o tema da proteção contra a despedida ganha importância.
Para que as trabalhadoras possam exercer seus direitos, em especial o direito de resistir ao desmanche que vem sendo perpetrado, negando-se, por exemplo, a “optar livremente” pela apresentação de atestado médico que viabilize sua exposição, durante a gravidez, a ambiente nocivo de trabalho, é indispensável que reconheçamos a existência do dever de motivação da dispensa. Trata-se de uma luta antiga. Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, muitas vozes insistiram na necessidade de conferir eficácia ao inciso I do art. 7o, reconhecendo seu conteúdo mínimo: a proscrição da despedida arbitrária e a consequente fixação de um dever diretamente ligado à figura do empregador. O dever de motivar licitamente o ato de dispensa.
Constituição
Muito antes da Constituição de 1988, a estabilidade no emprego, garantia bem mais efetiva do que a mera motivação da dispensa, já era reconhecida – ao lado do dever de motivação – como principal instituto do Direito do Trabalho; único capaz de minimizar (não impedir) “esse risco importantíssimo: o decorrente da impossibilidade involuntária do homem apto conseguir ocupação remunerada”, indispensável a sua sobrevivência. Segundo Catharino, “a despedida arbitrária, ou mesmo a discricionária, serve à licenciosidade econômica do empregador”. Catharino conclui que “a necessidade de viver, de toda a mais primária, deve ser sempre satisfeita, máxime em relação àqueles que não trabalham porque não encontram quem queira ou possa empregá-los” (MARTINS CATHARINO, José. Em Defesa da Estabilidade. São Paulo: LTr, 1966, p. 64-5). Se essa era uma afirmação verdadeira em 1966, ela é ainda mais real em 2018, em que as taxas de desemprego assumem patamares assustadores.
No Brasil, o reconhecimento da necessidade de proteção contra a despedida atinge seu ápice com a edição da CLT em 1943, estendendo a todos os trabalhadores e trabalhadoras a estabilidade após dez anos de trabalho para a mesma empresa, que até então era garantida apenas a algumas classes de empregados. O primeiro golpe à proteção contra a despedida foi desferido em janeiro de 1967, com a lei do FGTS, que introduziu (a exemplo da retórica utilizada pela chamada “reforma” trabalhista) a possibilidade de “opção” pelo novo sistema, em lugar da estabilidade, chancelada na Constituição de 1967.
A Constituição de 1988, alterando a redação do texto de 1967, estabelece no artigo 7º o direito fundamental a relação de emprego protegida contra a dispensa (inciso I) e o FGTS (inciso III), em incisos separados, e não como “opções”. A redação final do inciso I do art. 7º é resultado de um “acordo” com o “confessado objetivo de substituir a estabilidade no emprego pela garantia de uma indenização compensatória, além de outros direitos”, dentre os quais a proscrição da chamada despedida “ad nutum” (COUTO MACIEL, José Alberto. Garantia no Emprego já em Vigor. São Paulo: LTr, 1994, p. 98). Por isso, de acordo com Couto Maciel, é possível afirmar que “o sentimento sempre foi o de mudar, de inovar para uma garantia em que se desse um basta à predominância do econômico sobre o social” e, por isso mesmo o resultado da colisão de forças e do trabalho constituinte foi a construção de uma Constituição que sequer poderia “regredir em termos sociais, até mesmo frente à Constituição revolucionária de 1967, terminando com a estabilidade e nada garantindo ao trabalhador no emprego”.
A condição material necessária à formulação de uma Constituição formal se expressa no trabalho dos constituintes, quando constroem o texto da norma. Logo, não é razoável simplesmente ignorar as discussões travadas durante o processo constituinte e os resultados daí obtidos, para forçar uma interpretação que não se coaduna com os valores do sistema jurídico vigente. Se o resgate do processo constituinte vale para a conclusão de que não havia uma vontade de manutenção do sistema de estabilidade decenal, precisa no mínimo valer também para a compreensão de que houve a superação da possibilidade de despedida injustificada no Brasil. Esse é o núcleo mínimo do direito contido no inciso I do art. 7o. E sequer é possível defender juridicamente a impossibilidade de aplicação dessa norma de proteção até que a lei complementar a que se refere o dispositivo seja editada. É que, como ensina a melhor doutrina constitucional, a omissão do legislador não deve ser interpretada como salvo conduto para que a ordem constitucional seja ignorada. A posição que vem sendo adotada pelo STF, em relação ao mandado de injunção, pelo menos desde a decisão sobre o direito de greve dos servidores públicos, caminha no mesmo sentido. Há um núcleo mínimo que independe da regulamentação e deve ser observado de imediato, sob pena de boicotarmos o projeto constitucional.
Em claras palavras: a efetividade da Constituição depende de nosso compromisso com o respeito às suas normas. Se há omissão do legislador, como no caso da lei referida no multicitado inciso I do art. 7o, cabe aos intérpretes aplicadores extraírem da norma seu conteúdo mínimo e aplicá-lo, estimulando, com isso, a atuação legislativa e, por consequência, evitando que a omissão parlamentar consiga impedir que uma nova constituição saia do papel e se torne realidade. A possibilidade de reconhecer o dever de motivação, a partir da norma do inciso I do art. 7o, decorre da literalidade do art. 165 da CLT, que contém o conceito de despedida arbitrária, e que acabou sendo reforçado pela regra do art. 510D, introduzido pela Lei 13.467/2017. Ou seja, já temos no ordenamento jurídico trabalhista o conceito de despedida arbitrária. O que a Constituição de 1988 faz é estendê-lo a todos os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
Há, ainda, a regra contida na Convenção 158 da OIT, que embora tenha sido denunciada pelo Brasil (decisão que se encontra em discussão junto ao STF na ADI 1625), é tratado de direitos humanos e, como tal, deve ser respeitada por força do que determina a literalidade do § 2º do art. 5º da Constituição:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Ora, não é razoável supor que o constituinte originário se enganou e em lugar de colocar “dos tratados que tenham sido ratificados pelo Brasil”, tenha utilizado a expressão “seja parte”. Ora, os tratados ratificados são normas jurídicas internas. Não haveria, portanto, necessidade alguma de a Constituição repetir isso. O que o aludido § 2º do art. 5º faz é disciplinar uma exceção, uma hipótese em que a ratificação é desnecessária, bastando que o Brasil seja parte, para que o tratado internacional (por se referir a direitos humanos) passe a valer em âmbito interno. A Convenção 158 da OIT, que não trata de estabilidade, dispõe em seu artigo 4º que “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador, a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”. Portanto, para quem não consegue ver no art. 165 ou no 510D regras suficientes para a aplicação efetiva da proteção contra a despedida arbitrária, mediante exigência da explicitação, por parte do empregador, de um motivo lícito para a despedida, tem na Convenção 158 da OIT base jurídica para fazê-lo.
Existem, portanto, normas jurídicas em abundância, para que façamos valer, de imediato, o texto constitucional contido no inciso I do art. 7º. Há, também, urgência em fazê-lo, especialmente diante do desmanche que está sendo imposto aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Basta, então, que tenhamos vontade de fazê-lo. E se o reconhecimento desse dever fundamental de justificação do ato de despedida sempre teve fundamental relevância, pois é a garantia contra a dispensa o elemento capaz de permitir o efetivo exercício dos direitos trabalhistas, torna-se ainda mais fundamental em um contexto de exceção ditado por “reformas” amplamente destrutivas, como as que estamos enfrentando.
As recentes alterações nas regras de contratação, de controle do tempo de trabalho ou de proteção à saúde da trabalhadora são apenas exemplos. Em realidade, nenhum direito trabalhista pode realmente ser exercido na materialidade concreta das relações de trabalho se insistirmos em negar qualquer eficácia à regra do inciso I do artigo 7o da Constituição de 1988. A proteção contra a despedida, mediante o reconhecimento do dever de motivação, por parte do empregador, é, portanto, condição de possibilidade do exercício da cidadania pelas trabalhadoras brasileiras.
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Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. |