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Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, concede parecer favorável na ADI 5942, que tenta impedir a privatização da Petrobras

Abaixo segue a manifestação da PGR:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.942/DF
REQUERENTE: Partido dos Trabalhadores
INTERESSADO(S): Presidente da República
RELATOR: Ministro Marco Aurélio

Excelentíssimo Senhor Ministro Marco Aurélio,

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 9.355/2018. REGRAS DE GOVERNANÇA, TRANS-
PARÊNCIA E BOAS PRÁTICAS DE MERCADO PARA A CESSÃO DE DIREITOS DE EXPLORAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO, GÁS NATURAL E HIDROCARBONETOS FLUIDOS. CONTRATAÇÃO DE EMPRESAS PARA EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO. NECESSIDADE DE PRÉVIO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 22-XXVII, 37-XXI E 173-
§1°-III DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. CESSÃO OU TRANSFERÊNCIA DE CONTRATOS DE CONCESSÃO OU PARTILHA DE PRODUÇÃO. MECANISMO PREVISTO NOS ARTS. 29 DA LEI 9.478/1997 E 31 DA LEI 12.351/2010.
INCOMPATIBILIDADE COM DEVER DE LICITAR E COM OS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE, ISONOMIA E LIVRE CONCORRÊNCIA. PRÁTICA DE ATOS CONCRETOS PELA PETROBRÁS, VOLTADOS A ALIENAR BENS E DIREITOS EM DESCONFORMIDADE COM A EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE LICITAÇÃO. NECESSIDADE DE CONCESSÃO DA MEDIDA CAUTELAR.

1. Ofende a exigência constitucional de prévia licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações, a previsão de cessão ou transferência de contratos ou direitos de exploração de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos fluidos, sem a realização de prévio procedimento licitatório.
– Parecer pela concessão da medida cautelar.

          Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, dirigida contra o Decreto 9.355, de 25 de abril de 2018, que “estabelece regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos pela Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras”.
          O requerente defende a natureza primária, autônoma e abstrata do Decreto 9.355/2018 e sustenta afronta aos princípios da legalidade e da separação de poderes. Sob o pretexto de regulamentar as Leis 9.478/1997 e 12.351/2010, o diploma conteria inovação normativa em tema submetido à reserva legal pelos arts. 22-XXVII, 37-XXI, e 48-V da Constituição da República. Aduz que a previsão de dispensa de licitação para contratações de bens e serviços por consórcios operados pela Petrobrás (art. 1º-§§2º e 7º, e 3º-I do decreto) seria incompatível com o regime aprovado pelo Congresso Nacional na Lei 13.303/2016, contrariando os comandos expressos do art. 173-§1º-III da CR e os princípios da moralidade e da eficiência.
          Aponta a existência de antinomias entre o ato questionado e a Lei 13.303/2016, notadamente: (i) quanto ao art. 11 do decreto, que prevê procedimento especial de cessão de direitos sem observar a ordem de fases do art. 51 da Lei 13.303/2016; e (ii) quanto ao art. 3º-I do decreto, que suprime a exigência de justificação de inviabilidade de procedimento competitivo para dispensa de licitação, a qual consta do art. 28-§3º-II da Lei 13.303/2016.
          Afirma estar presente o periculum in mora, pressuposto para a concessão da cautelar, diante da existência de procedimentos voltados à venda de ativos da Petrobrás, com fundamento nas normas do decreto impugnado, sem a observância de formalidades legais e constitucionais pertinentes. Cita diversas decisões judiciais que paralisaram processos de desinvestimento da empresa.
          Adotou-se o rito do art. 12 da Lei 9.868/1999 (peça 20).
          A Presidência da República suscitou preliminar de ofensa reflexa e, no mérito, defendeu a constitucionalidade do Decreto 9.355/2018. Este observou regras de competência legislativa e limites do poder regulamentar, estabelecendo balizas para as cessões de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo. Tais medidas estariam previstas tanto no regime legal de concessão (Lei 9.478/1997), quanto no de partilha da produção (Lei 12.351/2010). O ato em testilha visaria a estabelecer processo competitivo e impessoal de seleção de cessionários, e não a suprimir normas gerais estabelecidas pela Lei 13.303/2016 (peça 23).
          A Advocacia-Geral da União afirmou não ter o requerente questionado todo o complexo normativo referente ao objeto da ação, uma vez que não incluiu no pedido a cadeia de normas editadas pelo Congresso Nacional acerca da cessão de direitos de exploração de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos fluidos, que fundamenta o ato regulamentar objurgado. No mérito, manifestou-se pela improcedência, com o argumento de que o Decreto 9.355/2018 aperfeiçoou processos decisórios sobre cessões de direitos, tornando-os mais previsíveis e seguros. Alegou que o regime de cessão de direitos de exploração de petróleo não foi objeto da Lei 13.303/2016, salvo na parte em que esta alterou o modelo de aquisição de bens e serviços pela Petrobrás, mediante a revogação dos arts. 67 e 68 da Lei 9.478/1997. A seu ver, as operações de cessão de direitos de exploração constituiriam negócios jurídicos vinculados à atividade-fim da Petrobrás, razão pela qual não estariam sujeitas ao dever constitucional de licitar. A determinação contida no art. 1º-§5º da Lei 13.303/2016, de se submeterem ao regime nela previsto as empresas públicas e sociedades de economia mista que participem de consórcios, não alcançaria consórcios de exploração e produção de petróleo, uma vez que estes contemplariam interesses privados de terceiros (peça 25).
          O requerente reiterou o pedido de concessão de cautelar, noticiando a adoção pela Petrobrás de atos concretos para, com base no decreto questionado: (i) alterar o regulamento da empresa e dispensar o procedimento licitatório nas contratações de bens e serviços por consórcios de que participe; e (ii) iniciar processo de alienação de direitos de exploração, desenvolvimento e produção em concessões de campos de petróleo, sem a prévia licitação, correspondendo a “um negócio de 733 bilhões de reais […] realizado ao completo arrepio da Lei Federal” (peça 27).

          O relator alterou o rito para o do art. 10 da Lei 9.868/1999 (peça 36).

          É o relatório.

 

          A Constituição da República conferiu à União a propriedade sobre o petróleo, o gás natural e os hidrocarbonetos fluidos existentes no subsolo do território nacional, assegurando aos entes subnacionais a participação no resultado de sua exploração ou a respectiva compensação financeira (art. 20). Até novembro de 1995, a pesquisa e a lavra de jazidas desses recursos geológicos constituía monopólico exclusivo da União, nos termos do art. 177 da Carta-cidadã. Com a promulgação da Emenda Constitucional 9/1995, o monopólio foi relativizado e o texto constitucional passou a admitir a contratação com empresas estatais ou privadas para as atividades de exploração de jazidas.
          Conquanto o art. 177 da Constituição não o diga expressamente, é certo que a contratação de empresas para exploração de petróleo e derivados submete-se a prévio procedimento licitatório. Como expressão do princípio republicano, o dever geral de licitar abrange indistintamente os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, o que inclui autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, quer exploradoras de atividade econômica, quer prestadoras de serviços públicos. Consoante Eros Roberto Grau(1), essa é a compreensão a se extrair da leitura conjunta dos arts. 22-XXVII, 37-XXI e 173-§1º-III da Lei Fundamental.
          O art. 37-XXI da Constituição, nesse sentido, é taxativo ao estabelecer que, ressalvados os casos especificados em lei, obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação que garanta igualdade de condições a todos os concorrentes. A exigência de licitação prévia garante a todos a possibilidade de acesso à contratação com a administração. Concretiza, dessa maneira, os princípios da isonomia, da moralidade, da impessoalidade, da eficiência e da livre concorrência. Sobre a ratio essendi do dever geral de licitar, diz a doutrina de Luciano de Araújo Ferraz:

São dois os principais objetivos da licitação: o primeiro, de natureza econômica, consiste na obtenção da maior vantagem para a Administração (seleção da proposta mais vantajosa), em homenagem ao princípio constitucional da economicidade (art. 70 caput, CR); o segundo, de sede constitucional, visa possibilitar oportunidades iguais a todos os particulares interessados em oferecer bens, serviços ou obras ao Poder Público, bem como aos que desejam adquirir bens a ele pertencentes. É, portanto, procedimento garantidor da isonomia e da livre concorrência (arts. 5º e 170 da Constituição).(2)

          José dos Santos Carvalho Filho assevera que deixar ao exclusivo critério do administrador a prerrogativa de escolher livremente as pessoas com as quais a administração pública contrata daria margem a concertos escusos e a favorecimentos indevidos, prejudicando a gestão administrativa de interesses coletivos.(3)

          É certo que a obrigação constitucional admite mitigação, tendo em vista a ressalva contida na parte inicial do art. 37-XXI da CR. Contudo, tal previsão não significa que o legislador possua carta branca para flexibilizar a exigência constitucional. Os casos específicos de dispensa de licitação devem possuir caráter excepcional e estar embasados em fundamento material razoável. Nesse sentido, pondera Luciano de Araújo Ferraz:

As hipóteses de contratação direta tradicionalmente adotadas no Brasil são a dispensa e a inexigibilidade de licitação. A primeira decorrente da expressão do legislador, que não terá ampla discricionariedade para definir os casos de dispensa (deverá haver razoabilidade nessa definição); a segunda decorrente da inviabilidade fática de competição, que poderá ser fundada na inexistência de competidores ou na ausência de parâmetros objetivos de cotejo entre propostas, derivada de características específicas do objeto ou personalíssimas do executor do contrato ou de ambas conjuntamente.(4)

          No que se refere à contratação para atividades de exploração de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos, a União regulamentou a norma acrescida ao art. 177-§1º da Constituição, inicialmente, por meio da Lei 9.478/1997, que dispôs sobre a política energética nacional, as atividades do monopólio do petróleo e o regime de concessão e autorização para pesquisa e lavra de jazidas, refinação de petróleo, importação e exportação de derivados.

          Em observância à sistemática constitucional, o legislador determinou a realização de prévia licitação para que as atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural fossem outorgadas a terceiros, por meio de contrato de concessão – modalidade na qual o concessionário explora por sua conta e risco determinado bloco, adquirindo a propriedade do produto extraído após o pagamento dos encargos. Nesse sentido, estabelece o art. 23 da Lei 9.478/1997:

Art. 23. As atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida nesta Lei. [redação original do dispositivo, posteriormente alterada pela Lei 12.351/2010]

          O art. 29 da lei, contudo, previu a possibilidade de transferência do contrato de concessão, com preservação do objeto e das condições contratuais, exigindo, para tanto, a observância dos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela ANP:

Art. 29. É permitida a transferência do contrato de concessão, preservando-se seu objeto e as condições contratuais, desde que o novo concessionário atenda aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela ANP, conforme o previsto no art. 25.
Parágrafo único. A transferência do contrato só poderá ocorrer mediante prévia e expressa autorização da ANP.

          Sobreveio a Lei 12.351/2010, que inaugurou o modelo de partilha de produção, em que o contratado exerce por sua conta e risco as atividades exploratórias, adquirindo o direito à apropriação do custo em óleo, do volume da produção correspondente aos royalties devidos e do excedente contratualmente previsto (art. 2º-I). Tal como a lei anterior, o novo diploma determinou a realização de licitação, na modalidade leilão, para a celebração dos contratos de partilha (arts. 8º-II), e previu a possibilidade de cessão de direitos e obrigações relativos ao contrato, desde que preservados o objeto e as condições contratuais; atendidos os requisitos técnicos, econômicos e jurídicos pelo cessionário; observado o direito de preferência dos demais consorciados (art. 31):

Art. 8º A União, por intermédio do Ministério de Minas e Energia, celebrará os contratos de partilha de produção:
I – diretamente com a Petrobras, dispensada a licitação; ou
II – mediante licitação na modalidade leilão. […]

Art. 31. A cessão dos direitos e obrigações relativos ao contrato de partilha de produção somente poderá ocorrer mediante prévia e expressa autorização do Ministério de Minas e Energia, ouvida a ANP, observadas as seguintes condições:
I – preservação do objeto contratual e de suas condições;
II – atendimento, por parte do cessionário, dos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pelo Ministério de Minas e Energia; e
III – exercício do direito de preferência dos demais consorciados, na proporção de suas participações no consórcio.

Parágrafo único. A Petrobras somente poderá ceder a participação nos contratos de partilha de produção que obtiver como vencedora da licitação, nos termos do art. 14.

          No julgamento da ADI 3.273/DF, o Supremo Tribunal Federal assentou que o modelo negocial e jurídico aplicável ao segmento do petróleo, do gás natural e de outros hidrocarburetos fluidos é próprio da esfera normativa infraconstitucional e decorre de legítima opção política do Congresso Nacional. Declarou, na ocasião, a constitucionalidade de diversas normas do regime de concessão estabelecido pela Lei 9.478/1997 e afirmou que a Petrobrás sujeita-se a regime jurídico das empresas privadas e à obrigação de participar de procedimentos licitatórios, a teor do art. 173-§1º-II, da CR:

CONSTITUCIONAL. MONOPÓLIO. CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO. PETRÓLEO, GÁS NATURAL E OUTROS HIDROCARBONETOS FLUÍDOS. BENS DE PROPRIEDADE EXCLUSIVA DA UNIÃO. ART. 20, DA CB/88. MONOPÓLIO DA ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO DO PETRÓLEO, DO GÁS NATURAL E DE OUTROS HIDROCARBONETOS FLUÍDOS. ART. 177, I A IV E §§ 1O E 2O, DA CB/88. REGIME DE MONOPÓLIO ESPECÍFICO EM RELAÇÃO AO ART. 176 DA CONSTITUIÇÃO. DISTINÇÃO ENTRE AS PROPRIEDADES A QUE RESPEITAM OS ARTS. 177 E 176, DA CB/88. PETROBRAS. SUJEIÇÃO AO REGIME JURÍDICO DAS EMPRESAS PRIVADAS [ART. 173, § 1O, II, DA CB/88].

EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE ECONÔMICA EM SENTIDO ESTRITO E PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. […]

[…]

  1. A Petrobras não é prestadora de serviço público. Não pode ser concebida como delegada da União. Explora atividade econômica em sentido estrito, sujeitando-se ao regime jurídico das empresas privadas [§ 1o, II, do art. 173 da CB/88]. Atua em re-gime de competição com empresas privadas que se disponham a disputar, no âmbito de procedimentos licitatórios [art. 37, XXI, da CB/88], as contratações previstas no § 1o do art. 177 da Constituição do Brasil. […].(5)

          Todavia, o referido julgado não apreciou a validade constitucional da regra de transferência de contratos de concessão para exploração de petróleo, contida no art. 29 da Lei 9.478/1997. O dispositivo é objeto de outro processo de fiscalização abstrata, a saber, a ADI 3.596/DF (sob relatoria da Ministra Cármen Lúcia), a qual ainda pende de julgamento.
          Em parecer da lavra do então Procurador-Geral da República Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, o Ministério Público Federal manifestou-se naquele processo pela inconstitucionalidade da regra, por “ofender o dever de ‘sempre’ se licitarem as concessões”:

[…] A transferência de contrato nada mais é do que a burla da diretiva indeclinável da li – citação. Há aqui um problema formal insuperável, que opera em nossa ordem jurídica a serviço de motivo substancial: a obtenção da melhor oferta para a alienação dos recursos naturais públicos de propriedade da União. E aqui incide também o art. 23, I, da Consti-tuição, que imprime a indisponibilidade do patrimônio público.

21. A transferência de contratos – rectius sub-rogação – pode autorizar o prejuízo ao te-souro das entidades públicas que auferem renda com a exploração de recursos minerais. Basta pensar que no oligopolizado setor da exploração de petróleo as interessadas divi-dam ilicitamente entre si os campos a serem licitados, para no futuro aliená-los a tercei – ros, com lucros e em detrimento do Estado.

22. Ainda quando nenhum acordo ilícito aconteça, deve-se atentar para o fato de que a Constituição quer a licitação “sempre”, isto é, realizada incondicionalmente, mesmo após a desistência de determinada contratada, pois há aí uma presunção absoluta de que assim por licitação contemporânea à celebração de um novo contrato – se conseguirão as condi-ções mais favoráveis para o poder público.

23. Portanto, o art. 29 há de ser declarado inconstitucional.

          Poder-se-ia argumentar que a transferência de contrato prevista no art. 29 da Lei 9.478/1997 – assim também a cessão de direitos e obrigações do art. 31 da Lei 12.351/2010 –, em princípio, não traria prejuízos à economicidade (CR, art. 70), um dos fins a ser obtido por meio da licitação, tendo em vista a previsão de manutenção do objeto e das condições contidas no contrato original. Não obstante, deve-se levar em conta que a transferência do contrato ou cessão de direitos podem ocorrer após o transcurso de longo período desde a celebração do contrato. A modificação de circunstâncias fáticas e o surgimento de novos atores no mercado do petróleo, por exemplo, podem significar uma alteração no resultado da licitação, caso fosse ela refeita. Diante desses e de outros fatores, simples determinação de observância das condições do contrato original não significa, por si, a obtenção de maior vantagem para a Administração Pública, mormente ante a possibilidade de realização de novo procedimento licitatório.
          Por outro lado, independentemente do momento em que efetivada a cessão ou transferência, o fato é que uma operação restrita entre cedente e cessionário traduz limitação à participação ampla de empresas que atuem no mercado, o que revela desconformidade com os princípios da impessoalidade, da isonomia e da livre concorrência, valores também subscritos pela exigência constitucional da licitação.
Acerca da referência ao princípio da impessoalidade no texto constitucional, José dos Santos Carvalho Filho observa:

O princípio objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem em idêntica situação jurídica. Nesse ponto, representa uma faceta do princípio da isonomia. […] para que haja verdadeira impessoalidade, deve a Administração voltar-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favorecidos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros.(6)

          Em se tratando de cessão de direitos para exploração de atividade que pode interessar a várias empresas que competem no mercado, cabe ao poder público, em decorrência dos princípios constitucionais da isonomia e da impessoalidade, regular sua outorga de modo a permitir que todas concorram de maneira equânime e impessoal, sem favoritismos nem perseguições. Assim, a possibilidade de cessão ou transferência de direitos de contratos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos fluidos, sem prévia realização de procedimento licitatório, é incompatível com a Constituição da República.

          Esta ação, todavia, não se dirige contra as leis que instituíram a cessão de direitos de exploração de petróleo, mas contra o ato por meio do qual o chefe do Poder Executivo propôs-se a regulamentar a disciplina contida no art. 29 da Lei 9.478/1997 e no art. 31 da Lei 12.351/2010. O Decreto 9.355/2018 estabelece “regras de governança, transparência e boas práticas de mercado”, com o argumento de conferir maior impessoalidade, segurança jurídica e probidade à cessão de direitos (art. 2º).

          Cuida o diploma, em geral, de pormenorizar o instituto da cessão de direitos, com a aplicação de um procedimento especial, composto por fases de consulta a interessados, apresentação de propostas, negociação e julgamento (arts. 11 a 35). Não obstante, há, de fato, extrapolação do campo regulamentar e inovação indevida da ordem jurídica, especialmente quanto ao art. 1º-§7º do Decreto 9.355/2018, o qual afasta a realização de licitação nas contratações de bens e serviços efetuadas por consórcios operados pela Petrobrás.

          O dispositivo contém regra absolutamente diversa da matéria que o decreto veio regulamentar, excepcionando, indevidamente, a aplicação de disposição contida em lei aprovada pelo Congresso Nacional, qual seja, o estatuto jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista (Lei 13.303/2016). Este diploma prevê, expressamente, a incidência de suas regras – entre as quais se insere a exigência de licitação para contratos de prestação de serviços, aquisição, locação e alienação de bens, execução de obras e outros (art. 28) – a empresas que participem de consórcios (art. 1º-§5º).

          O art. 1º-§7º do decreto foge da temática da cessão de direitos de exploração de petróleo para estabelecer regra atinente a aquisição de bens por consórcios de que participe a Petrobrás. Ao fazê-lo, altera a sistemática estabelecida pelo Congresso Nacional para empre-sas públicas, sociedades de economia mista e consórcios, por meio da Lei 13.303/2016, em usurpação do campo reservado ao legislador.

          Por outro lado, não se afigura plausível a tese de que o art. 11 do Decreto 9.355/2018 seria inconstitucional por estabelecer procedimento distinto daquele previsto no art. 51 da Lei 13.303/2016. São diversos os âmbitos de aplicação dos dispositivos contrapostos. A cessão de direitos não é regulada pela Lei 13.303/2016. Enquanto o art. 51 desta trata da sequência de fases nas licitações de empresas públicas e sociedades de economia mista, o art. 11 do decreto estabelece procedimento especial a ser aplicado na cessão de direitos de exploração de petróleo. Em relação a cessão, não há sequer exigência na lei de prévia licitação – a despeito das considerações expostas quanto a inconstitucionalidade do mecanismo –, donde se conclui não haver obrigatoriedade de que as fases de ambos os procedimentos fossem estabelecidas em termos absolutamente uniformes.

          O mesmo entendimento vale para os arts. 1º-§ 2º e 3º-I do Decreto 9.355/2018. Estes determinam a não aplicação do procedimento competitivo especial de que trata o diploma nas hipóteses de assunção de direitos e formação ou modificação de parcerias ou consórcios com empresas nacionais ou estrangeiras. Aqui, novamente, as regras atêm-se ao âmbito do regime previsto no próprio decreto, veiculando hipóteses de exceção à aplicação do procedimento competitivo especial por ele instituído. Em nada interferem ou impedem a vigência da disciplina contida nos arts. 1º-§5º e 28-§3º da Lei 13.303/2016.

          Em todo caso, em cognição sumária, afigura-se recomendável a concessão da cautelar pleiteada, tendo em vista notícia da prática iminente de atos concretos pela Petro-brás, relativos a contratações e alienações de expressiva monta, com inobservância das exigências constitucionais e legais de licitação prévia (peça 27). Ante a possibilidade de potenciais prejuízos financeiros de difícil reversibilidade, impõe-se a suspensão da eficácia do decreto questionado – assim como dos atos administrativos com base nele praticados –, senão em sua integralidade, ao menos das disposições contidas no art. 1º-§7º.

          Ante o exposto, a Procuradora-Geral da República manifesta-se pela conces-são da medida cautelar.

Brasília, 19 de outubro de 2018.

Raquel Elias Ferreira Dodge

Procuradora-Geral da República

 

Notas:

(1) GRAU, Eros Roberto, “Comentário ao art. 173”, in. AAVV, Comentários à Constituição do Brasil, J. J. Gomes Canotilho al. (coords.), São Paulo: Saraiva/Almedina: 2013, p 1.831.

(2) FERRAZ, Luciano de Araújo, “Comentário ao art. 37, XXI”, in. AAVV, Comentários à Constituição do Brasil, J. J. Gomes Canotilho al. (coords.), São Paulo: Saraiva/Almedina: 2013, p. 884.

(3) CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de direito administrativo, 24. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 217.

(4) FERRAZ, Luciano de Araújo, obra citada, p. 884.

(5) Plenário. ADI 3.273/DF. Rel. para acórdão: Min. Eros Grau. 16/3/2005, maioria. DJ 2 mar. 2007, p. 25.

(6) CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 19.

 

 

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