Precisamos falar de direitos humanos e sistema penal

Coluna Direitos Humanos e Sistema Penal: Um debate necessário

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Fonte: arquivo/Agência Brasil

Fonte: Arquivo/Agência Brasil

Rebeliões

As recentes rebeliões de presos ocorridas em diversos Estados do Brasil, como Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte e São Paulo, que resultaram em diversas fugas e mortes, não chegam a surpreender, pelo menos para quem conhece um pouco da realidade do sistema penitenciário brasileiro, mas escancaram a barbárie do mesmo. Não é de hoje que o cenário da execução penal no Brasil é preocupante, porém, apesar da ciência das autoridades sobre o problema, nenhuma solução plausível é apresentada.

Nunca é demais lembrar que o fundamento para a sustentação do Estado Democrático de Direito está no respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, previstos na Constituição Federal de 1988 – CF/88. Assim, para a aplicação e execução de sanções penais, prisões e demais medidas penais ou cautelares, é necessário que sejam respeitados os preceitos da norma constitucional, além de outros elencados na legislação infraconstitucional e nos tratados internacionais de Direitos Humanos.

Portanto, em se tratando de execução penal, sempre deve ser observado o princípio da humanidade. De acordo com Nilo Batista (2005, p. 100):

O princípio da humanidade intervém na cominação, na aplicação e na execução da pena, e neste último terreno tem hoje, face à posição dominante da pena privativa de liberdade, um campo de intervenção especialmente importante.

No mesmo sentido, a lição de Luiz Regis Prado (2002, p. 123):

“Em um Estado de Direito democrático vedam-se a criação, a aplicação ou a execução de pena, bem como de qualquer outra medida que atentar contra a dignidade humana (v.g., tratamento desumano ou degradante)”.

 

Princípio da humanidade

E, mesmo que a pena privativa de liberdade tenha, dentre outras, a função de castigar, deve ter como limite o princípio da humanidade. Como escreve Luiz Luisi (2003, p. 51): “Dentro destas fronteiras, impostas pela natureza de sua missão, todas as relações humanas disciplinadas pelo direito penal devem estar presididas pelo princípio da humanidade”.

Deve o Estado garantir que o cumprimento da pena privativa de liberdade aconteça dentro da legalidade, com observância de todos os direitos e garantias do apenado. Conforme Cezar Roberto Bitencourt (2015, p. 71):

Concluindo, nesse sentido, nenhuma pena privativa de liberdade pode ter uma finalidade que atente contra a incolumidade da pessoa como ser social, o que violaria flagrantemente o princípio da dignidade humana, postulado fundamental da Carta da República.

Ocorre que a realidade é bem diferente. No Brasil é comum que as condições das prisões sejam precárias. Apesar dos direitos dos presos estarem “garantidos” na CF/88, na legislação infraconstitucional e nos tratados e convenções internacionais de proteção aos Direitos Humanos, a observância desses direitos é ignorada, tanto pelas autoridades, quanto pela sociedade.

Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil

Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil

Para João Paulo Orsini Martineli e Leonardo Schmitt de Bem (2016, p. 55): “O direito penal talvez seja o ramo do direito em que existe o maior abismo entre a teoria e a prática. O princípio da dignidade humana, vetor principal do sistema jurídico, nem sempre tem a devida incidência.” Os exemplos antes citados, das rebeliões que aconteceram recentemente no Amazonas, em Roraima, no Rio Grande do Norte e em São Paulo, além dos problemas conhecidos de diversos presídios do país, como o Presídio Central de Porto Alegre (recentemente renomeado para Cadeia Pública de Porto Alegre) confirmam a tese.

Como se não bastasse, essa inobservância deliberada dos direitos dos presos é fator determinante também para o fortalecimento e o crescimento das facções criminosas. Isso porque, a superlotação dos presídios, a falta de condições dignas para o cumprimento da pena, bem como a ausência de controle do Estado sobre os presídios, tudo reflexo de uma política criminal falha, permitem o crescimento do domínio das facções criminosas que, cada vez mais, estão se aproveitando desse quadro caótico para impor as suas regras, dentro e fora das prisões.

E a postura negligente do Estado não decorre de um regramento jurídico falho, mas sim por opção do próprio Estado. Nesse sentido, é pertinente a lição de Juarez Cirino dos Santos (2014, p. 30):

A garantia da integridade física e moral do ser humano preso, implícita no princípio da dignidade da pessoa humana definido como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1 °, III, CR), é instituída por norma específica da Constituição da República (art. 5°, XLIX) e ratificada por disposições da lei penal (art. 38, CP) e da lei de execução penal (art. 40) – além de ser inferida da norma que assegura ao preso todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3°, LEP) – ou seja, a lesão generalizada, intensa e contínua da dignidade humana e dos direitos humanos de homens e mulheres presos nas cadeias públicas e penitenciárias do sistema penal brasileiro não ocorre por falta de princípios e de regras jurídicas.

Nesse contexto, é necessário que se cobre do Estado, através de suas autoridades competentes, uma mudança de atitude em relação aos direitos dos presos e às questões do sistema penitenciário. Tal cobrança deveria partir da sociedade, por seus diversos setores, porque é diretamente afetada pela violência que se alimenta da indignidade do sistema prisional.

Mas a sociedade, por sua vez, na maioria de seus setores, não cobra do Estado nenhuma melhoria no sistema prisional, pelo contrário, concorda com a manutenção das condições indignas das prisões, pois entende que presos, réus ou suspeitos, não devem ter direito algum, merecem apenas castigo, pois são bandidos, seus inimigos.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

 

Direitos Humanos

Isso se deve, em grande parte, ao desconhecimento de muitas pessoas em relação aos direitos humanos, tão mal falados atualmente. Exemplo disso é o senso comum das redes sociais, com seus muitos comentários que atribuem indevidamente aos direitos humanos a culpa pela criminalidade, criando a falsa impressão de que os bandidos são protegidos em detrimento da sociedade.

Tal entendimento coloca os defensores de direitos humanos como cúmplices da criminalidade e inimigos da sociedade, enquanto o Estado acaba imune de sua responsabilidade. Mas isso não é verdade!

O senso comum que trata a defesa dos direitos humanos com desprezo e repulsa esquece que o grande responsável pela crise atual da segurança pública é o Estado, que não investe no sistema penitenciário, tampouco em segurança pública, educação, saúde, cultura etc. A falta de investimento nas polícias é um exemplo disso, veja-se o caso atual da greve dos policiais militares do Espírito Santo. A culpa não é dos Direitos Humanos, pelo contrário, é mais um caso de desrespeito desses direitos pelo Estado, dessa vez violação dos Direitos Humanos dos policiais.

E, quando se fala em responsabilidade do Estado, o Poder Executivo não está sozinho, porque o Poder Legislativo e do Poder Judiciário também contribuem consideravelmente para essa crise, com leis e decisões punitivistas que alimentam o ciclo de violência e violação de direitos. Tais questões, porém, serão abordadas nas próximas colunas.

Por tudo isso, é preciso falar de direitos humanos, esclarecer os seus reais significados, seu alcance, e desconstruir os preconceitos acerca do tema. Os esclarecimentos são necessários para que todos entendam que mesmo os indivíduos sujeitos ao sistema penal, réus, suspeitos e condenados possuem direitos, e que militar pela observância desses direitos não é simplesmente “defender bandidos”, mas sim defender os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos, ou seja, a sustentação do Estado Democrático de Direito.

O debate é necessário porque somente uma sociedade consciente da importância do respeito aos direitos humanos de todos será capaz de cobrar medidas efetivas do Estado, que é o verdadeiro responsável pela crise na segurança pública, e deve investir para o aperfeiçoamento e a melhoria do sistema penal como um todo, de extrema importância para o enfrentamento dos problemas penitenciários e do avanço da criminalidade.

 

Referências:

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.

MARTINELI, João Paulo Orsini. BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral: arts. 1º a 120. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6ª ed. Curitiba: ICPC, 2014.

 

Moisés Matusiak Moisés Matusiak é Articulista do Estado de Direito, Mestre em Direito (UNIRITTER), Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNIRITTER), professor de Direito Penal e Processo Penal (UNICRUZ).

 

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