Pode publicar?

Thiago-ferreira

Imaginem a seguinte situação. Um famoso artista casado mantém, com outra mulher, um tórrido romance. Por anos permanece envolvido nesse relacionamento, sem que ninguém saiba. Mas, por uma razão qualquer, nunca se separou de sua esposa, o que também jamais foi reclamado pela amante. Até que um dia, por circunstâncias da vida, a relação adulterina tem um fim.

Apesar desse fato, que para a maioria é reprovável, esse artista sempre foi reconhecido por seu comportamento exemplar, pelo bom trato com as pessoas, e por sua personalidade cordial e por sua disposição em atender a todos que reclamam sua ajuda e atenção.

Sua mulher, que permaneceu casada com ele, e que não sabia da relação furtiva, um dia é surpreendida com a publicação de um livro sobre a vida de seu marido, em que essa história é revelada sem a autorização do biografado. Após a exposição dos fatos, ela pede o divórcio, após décadas de um matrimônio que gerou filhos e netos.

A imagem e honra do artista é manchada, e ele passa a ser criticado e visto com maus olhos pelas demais pessoas. Aturdido, ele ajuíza uma ação indenizatória em face do autor da obra e da editora.

Recebe vultosa indenização, mas não consegue reatar seu casamento e, muito menos, desvincular sua imagem daquele fato, o que o faz passar a ser rejeitado pela mídia e pela sociedade. A compensação pelos danos morais e materiais sofridos não foi capaz de fazê-lo retornar a seu status quo ante. Sua vida foi devassada e destruída.

Essa não é uma hipótese absurda. Ao contrário, é bem plausível. E me veio à mente após saber do resultado do julgamento, pelo STF, da ADI 4815, em que se decidiu, por unanimidade, que é inconstitucional a previsão do art. 20 e 21 do Código Civil por condicionar a divulgação da imagem e vida de uma pessoa à sua prévia autorização, bem como por admitir que o interessado possa impedir judicialmente a publicação.

Nesse sentido, julgou-se procedente a ação direta para dar interpretação conforme à Constituição, sem redução de texto, aos dispositivos, para declarar inexigível o consentimento de uma pessoa para a publicação de obras biográficas, sendo também desnecessária a autorização de outra pessoas retratadas como coadjuvantes, bem como para reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5o da Constituição da República, cuja violação somente deverá ser compensada por correspondente indenização.

Estabeleceu-se, então, uma primazia prima facie do direito à liberdade de expressão sobre os mencionados direitos da personalidade, de modo que aquela deve ser tratada como uma liberdade preferencial.

Primeiramente, observo que o que se pretende aqui expressar não é uma crítica às pessoas dos ministros, alguns dos quais nutro profundo carinho, admiração e amizade. Em verdade, o objetivo deste texto é, de forma racional, demonstrar que essa primazia do direito à liberdade de expressão pode acarretar graves e irreparáveis danos à pessoa que, por uma simples indenização, jamais poderá ter o seu dano reparado.

E isso passa por uma interpretação sobre a natureza dos direitos da personalidade e dos objetivos da indenização pela reparação de seus danos.

Os direitos da personalidade são direitos inatos à pessoa, de modo que o simples fato de ser pessoa já confere ao sujeito a tutela desses direitos. A sua previsão e proteção decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, erigida pela Constituição a fundamento do Estado Democrático de Direito.

Por terem, como uma de suas características, a extrapatrimonialidade, a indenização por danos a esses direitos tem caráter compensatório, e não reparatório, pelo o que o pagamento de um valor tem como objetivo compensar a vítima pelo sofrimento, angústia e dor sofridos, mas ela jamais conseguirá fazer com que a pessoa retorne à situação anterior.

Aquele que, por exemplo, perde um braço em um acidente causado por um terceiro, não tem o seu membro recuperado com a indenização. Apenas poderá ter o seu sofrimento compensado, ou minimizado, por um montante financeiro. Compensa-se um sofrimento íntimo com dinheiro.

Por essa razão, a possibilidade apenas de pagamento de uma indenização por danos causados aos direitos da personalidade com a publicação de uma biografia não autorizada, sem que se permita a possibilidade de impedir previamente a sua veiculação, esvazia o sentido da proteção jurídica desses direitos inatos, pois muitos desses danos, uma vez causados, jamais permitirão à pessoa retomar sua vida.

Em verdade, há que se permitir, em cada caso, a possibilidade de se fazer uma ponderação, em que o julgador verificará as possíveis consequências daquela publicação e, percebendo-as irreversíveis, poderá impedir a sua veiculação pública.

Como se vê, essa é uma questão extremamente complexa. No entanto, conferir à liberdade de expressão um caráter superior nessa questão, mesmo tendo em mente os traumas dos obscuros anos de censura, viola inequivocamente a dignidade humana, este sim o pilar de nosso Estado. Calar a boca das pessoas, por certo, não é a melhor solução. Mas permitir que suas línguas, ou canetas, expressem o que quiserem, inconsequentemente, causando danos irreversíveis a outras, também não parece ser.

Autor: Thiago Neves. Professor da EMERJ e advogado do escritório Sylvio Capanema de Souza Advogados Associados.

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