O uso do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares

Coluna Direito Militar  e Casos Práticos, por Alexandre de Oliveira, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

 

      O uso do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares

      O habeas corpus é uma garantia fundamental (LXVIII artigo 5º da Constituição Federal), que busca impedir ameaça de violência ou coação á liberdade de locomoção, esse direito fundamental é temperado pelo parágrafo segundo do artigo 142 que dita: não caberá habeas corpus em relação às punições disciplinares militares, diante dessa aparente contradição entre os dois normativos constitucionais existe a pergunta: o habeas corpus pode ou não ser impetrado contra prisões decorrentes de transgressões disciplinares Militares? A disciplina e a hierarquia são suficientes para elidir o uso desse remédio constitucional?

      Nesse artigo iremos demonstrar como a impetração de habeas corpus é fundamental ao controle do abuso e arbítrio do poder sancionador, assim veremos o uso do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares como um pilar de uma sociedade democrática, sendo seu uso fundamental para o controle da legalidade dos atos administrativos, nesse nosso percurso devemos primeiro identificar o que é uma punição disciplinar, como ela se eiva de ilegalidade, uso do habeas corpus no ambiente castrense e as conseqüências advindas das punições ilegais.

      I) O que é uma punições disciplinares.
      A vida na caserna é marcada pelo fiel e rígido sistema sancionador disciplinar, composto por obrigações e deveres militares disciplinados em leis, regulamentos e portarias que formam um sistema próprio disciplinar baseado na disciplina e hierarquia, enquanto a disciplina é o acatamento dessas normas que regulam a atividade militar a hierarquia é a disposição da autoridade dentro da estrutura militar, por muito tempo acreditou-se que recusar obedecer a uma ordem injusta de um superior fomentaria a indisciplina e anarquia dentro dos quartéis.

      Esse modo de pensar era a motivação para a aplicação do artigo 163 do Código Penal Militar que pune com detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, quem recusa obedecer a ordem do superior sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução. A aplicação desse crime de recusa de obediência era feita baseada apenas na relação hierárquica superior e inferior desconsiderando a análise se a ordem era manifestamente criminosa, essa forma de aplicação enseja uma obediência absoluta (para dizer cega), surgindo dessa forma de agir a teoria das baionetas cegas, já que o subordinado não deveria questionar ou discutir a ordem emanada por seu superior, sendo apenas um instrumento para concretizar a vontade do seu mandante de posto ou graduação superior.

      O corre que a legislação militar não espera a obediência cega dos Militares, fato esse demonstrado pelo parágrafo segundo do artigo 38 do Código Penal Militar que espera o discernir do Militar ao ditar que se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma de execução, é punível também o inferior, dessa forma espera se que as baionetas sejam inteligentes. Como exemplo se um Tenente, ordenar a um Cabo da seção de Pagamento de um Quartel o lançamento de rubricas indevidas no contracheque de um Sargento motivado por sentimentos de vingança, essa ordem não deve ser cumprida face sua manifesta ilegalidade.

      Diogenes Gomes Vieira dá as seguintes orientações para detectar se uma punição disciplinar esta eivada de ilegalidade: primeiro deve se ler o regulamento disciplinar da respectiva Força Armada ou Auxiliar a fim de verificar se os trâmites processuais estão sendo respeitados, como por exemplo, o prazo para apresentação de defesa escrita, depois analisar se a punição imposta está em consonância com o Regulamento. Terceiro, verificar se a norma que está sendo punido é legal, ou seja, se está em consonância com norma legal superior, Constituição, tratados internacionais ou legislação infralegal.

      Cremos que este meio é o mais seguro para averiguar a ilegalidade da punição disciplinar no judiciário, por muito tempo Advogados se degradeiam suscitando a inconstitucionalidade de toda e qualquer punição disciplinar militar a partir do seguinte raciocínio: o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal dita: que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.” não sendo lei os regulamentos disciplinares todas as punições cuja fundamentação seja os regulamentos disciplinares estão eivadas de vício, por ofensa ao princípio da legalidade.

      Ocorre que esse raciocínio faz um juízo anacrônico, isso porque a ordem jurídica anterior a Constituição Federal de 1988, delegava aos regulamentos o estabelecimento de punições disciplinares, é o que dita à lei nº 6.880/80, no seu artigo 47 “os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares, à classificação do comportamento militar e à classificação de recursos contra as penas disciplinares.

      Esse normativo legal foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, no seu inciso LXI artigo 5º ao ditar que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Dessa forma houve recepção dos regulamentos e do Código Penal e Processo Penal Militar com status de leis ordinárias, devendo ser feito caso a caso a analise dos seus artigos para averiguar os casos pontuais onde há confronto de clausulas dos regulamentos disciplinares com a ordem constitucional.

      Um exemplo desses casos, onde os regulamentos não estão aptos por falta de legitimidade constitucional é o artigo 34, número 5 do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, que permite manter incomunicável os detidos para averiguações necessárias para esclarecimentos sobre transgressão disciplinar. Este normativo do Regulamento Disciplinar não esta conforme a Constituição Federal de 1988 que assegura ao preso a assistência da família e de seu advogado (LXIII artigo 5º).

      II) Como a punição disciplinar se eiva de ilegalidade
      Existe uma miscelânea no estudo do direito castrense que muitas vezes criam-se narrativas errôneas, um deles é que à esfera administrativa e penal são absolutamente independentes, esse raciocínio favorece a dupla incidência punitiva (bis in idem), enquanto na área penal o crime é um fato típico, antijurídico e culpável o ato administrativo possui como elementos a competência, legalidade, forma, motivo e objeto, devendo respeito a legislação que regula a matéria por meio do devido processo legal e seu tramite conforme o procedimento previsto.

      Quando a punição disciplinar deixa de atentar aos seus elementos, o trâmite sem respeito ao procedimento previsto, a ausência de contraditório e a ampla defesa essas são as formas mais comuns da punição disciplinar se eivar de ilegalidade, vamos dar um exemplo de como isso pode acontecer, imagine a seguinte situação hipotética: um Militar da Marinha do Brasil se apropria de uma pistola Glock, procedido o inquérito policial militar a solução homologada pelo Comandante da Unidade Militar foi que o Militar cometeu furto previsto no artigo 240 do Código Penal Militar (subtrair, para si ou para outrem coisa alheia móvel) e transgressão disciplinar prevista no artigo 48 do Regulamento Disciplinar da Marinha que dita: extraviar ou concorrer para que se extraviem ou se estraguem quaisquer objetos da Fazenda Nacional ou documentos oficiais, estejam ou não sob sua responsabilidade direta.
Enquanto os autos do Inquérito Policial são encaminhados ao poder Judiciário (Auditoria Militar) o Comandante decide punir administrativamente o Militar por contravenção disciplinar a pena de prisão por 10 dias, esta pena disciplinar é totalmente ilegal podendo ser atacada por habeas corpus isso porque está eivada de vício material e formal vejamos:

      1) Vícios Matériais: há bis in idem pois a mesma conduta esta sendo punida duas vezes, apesar da constituição não prever expressamente a proibição da dupla punição (ne bis in idem) essa proibição é prevista na legislação infralegal bem como em tratados internacionais vejamos:

      a) O Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80, parágrafo 2º do artigo 42) e o Regulamento Disciplinar da Marinha (Decreto 88.545/83, artigo 9º) preveem de forma semelhante que no concurso de crime militar e de contravenção disciplinar, ambos idêntica natureza, será aplicada a penalidade relativa ao crime;

      b) O Pacto de San José da Costa Rica prevê que o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

      A Legislação Militar Federal possui certas diferenças da legislação aplicada ao Servidor Civil, à independência absoluta das instâncias é uma delas, enquanto o Estatuto dos Servidores Civis Lei 8112/90, prevê expressamente no artigo 121 que o servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições, no meio militar há um acoplamento de instâncias, sendo a dupla punição só admitida quando ocorre o que se chama “razões de punir” que é quando uma conduta atinge bens de esferas diversas como penal e administrativo e a punição apenas na área penal não engloba a violação da ordem administrativa.

      2) Vícios formais: a postura do Comandante de punir o Militar administrativamente com base apenas no inquérito policial militar, mácula a punição com vício formal de desrespeito ao princípio do devido processo legal, isso porque enquanto o inquérito policial militar possui natureza inquisitiva (onde o contraditório e ampla defesa são postergados) no âmbito administrativo o processo administrativo conforme inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal garante desde a instauração o contraditório e ampla defesa.

      São situações como essa que legitimam o uso do habeas corpus nas inflações disciplinares, pois o uso não é aplicado para discutir o mérito da punição e sim a correta aplicação do aspecto formal. Não se pode sob o argumento da garantia da hierarquia e disciplina elidir parte da sociedade do exercício do uso de habeas corpus para elidir arbitrariedade e abuso de poder no ambiente castrense.

      III) O uso do habeas corpus no ambiente castrense e as conseqüências advindas das punições ilegais
      Compatibilizar o parágrafo segundo do artigo 142 e os incisos XXXV e LXVIII do artigo 5º todos da Constituição Federal exige compreender que o uso do habeas corpus no seio militar se faz com objetivo de discutir os quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões que são:

      a) Hierarquia: quem emitiu a ordem possui com vínculo hierárquico superior ao agente que teve seu direito de liberdade tolhido,

      b) Poder disciplinar: quem ordenou a ordem era a autoridade competente para o ato,

      c) Se o ato é ligado à função: a inflação disciplinar refere-se à atuação do militar no ambiente da caserna,

      d) A pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente: sua pena é acolhida pelo ordenamento jurídico.
Essas são os pressupostos de legalidade que podem ser abarcados pelo uso do habeas corpus contra punições disciplinares, pois eles buscam discutir a questão da moralidade, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade do ato de punição e não buscam questionar o mérito da punição que é albergado pela independência de poderes. O mérito do ato punitivo é protegido contra possíveis usurpações da competência do Comandante da Unidade Militar.

      Devemos consignar que o parágrafo terceiro do artigo 51 do Estatuto dos Militares (lei nº 6.880/80) que dita que o militar só poderá recorrer ao Poder Judiciário apos esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado, não foi recepcionado pela Constituição Federal por ser diretiva atentatória ao direito fundamental de acesso ao judiciário (XXXV artigo 5º).

      Devemos enfatizar que punições disciplinares quando eivadas de vícios de legalidade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais sujeitam a autoridade coatora à sanção nas três esperas (administrativa, civil e penal) de forma independente, sendo a autoridade coatora aquela que está exercendo ilegalmente a coação ou ameça a liberdade de ir e vir do Militar.

      Dessa forma na área administrativa, a punição pode variar da advertência até demissão; na área civil é possível a indenização por danos morais e na esfera penal é possível de multa a detenção com perda do cargo e inabilitação para outros cargos públicos. Importante frisar que a punição disciplinar é um ato administrativo, dessa forma o habeas corpus em favor de Militar das Forças Armadas deverá ser impetrado na Justiça Federal de primeiro grau (artigo 109, VII da CF) e no caso de confirmação da punição pelo Comandante da Força o habeas corpus devera ser impetrado no Superior Tribunal de Justiça (artigo 105, I, “c” da CF) e não poderá ser impetrado na Justiça Militar da União (artigo 124 da CF) que só detêm competência criminal. Já quando o favorecido pelo writ for Militar Estadual (Policial Militar ou Bombeiro Militar) o habeas corpus deverá ser impetrado na Justiça Militar Estadual (artigo 125, §5) nos estados que dispuserem desse ramo especializado do Poder Judiciário (MG, RS, SP) e nos Estado que não possuírem esse ramo será impetrado na justiça comum Estadual.

      Devemos enfatizar que qualquer punição administrativa disciplinar aplicada a Militar Estadual que seja restritiva de liberdade será considerada ilegal, pois as inovações da Lei 13.967, de 26 de dezembro de 2019, alterou parcialmente o decreto-lei 667 de 2 de julho de 1969 e extinguiu do rol de penas disciplinares a prisão disciplinar.
O uso do habeas corpus nas transgressões militares

 

*Alexandre de Oliveira é Articulista do Estado de Direito, servidor do Superior Tribunal Militar, graduado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em Direito Público Contemporâneo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em Direito Penal e Processo Penal Militar pela Faculdade Integrada AVM e Mestrando em Direito Sociais e Processos Reivindicatórios do Centro Universitário IESB.

 

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