Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito
O papel das artes dentro da proposta metodológica e epistemológica da UPMS – Universidade Popular dos Movimentos Sociais e das Epistemologias do Sul
Paola Cantarini *
Visa-se analisar a relação entre Direito e arte e o papel da arte como forma de subversão e transgressão, em cotejo com a proposta das epistemologias do Sul e da UPMS – Universidade Popular dos Movimentos Sociais de Boaventura de Sousa Santos, por trazerem as artes dentro de sua metodologia, bem como a transgressão e a subversão quanto à metodologia, à pedagogia e à epistemologia.
Visou-se questionar, ao lado de Boaventura de Sousa Santos, se seria possível falar atualmente em um Direito emancipatório, vinculado à transgressão e as concepções de conhecimento e epistemologias ligadas às artes e aos conhecimentos sujeitados, aliados ao sujeito revolucionário, ou à uma resistência, tomando como ponto de partida a proposta de ser a Sociologia das Ausências, dentro das epistemologias do Sul, um procedimento transgressivo, uma sociologia insurgente, relacionada à necessidade da transgressão e de uma subjetividade rebelde[1], com vistas a contribuir para a verificação de quais seriam as condições de um discurso transgressor.
Boaventura de Sousa Santos no seu livro “O direito dos oprimidos”, visando o desenvolvimento de uma sociologia empírica da retórica jurídica[2], acaba por desenvolver uma epistemologia transgressora e liberta, apesar de postular por um tratamento sociológico exigente por se tratar da produção da tese de doutorado pela Universidade de Yale, sendo esta a expressão do padrão de cientificidade então dominante, sem deslocar de uma estratégia científica, portanto. Utilizando-se de uma epistemologia transgressora, com busca à produção de outra forma de produção do conhecimento, contrária às teorias sociais produzidas por países centrais e não periféricos e que levariam à reprodução das desigualdades entre Norte e Sul[3], partindo-se, portanto, dos conceitos de hermenêutica diatópica, tradução e diálogo interculturais. Nas palavras de Boaventura:
(…) as grandes disputas entre escolas de saber erudito deixam de ser importantes se a sua importância para a vida e para a experiência prática não for demonstrada. Este descentramento dos saberes é fundamental para que a ecologia de saberes atinja os seus objetivos: a promoção de práticas sociais eficazes e libertadoras, a partir da interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos saberes em presença (…).[4]
A necessidade da transgressão epistemológica e metodológica é destacada por Boaventura de Sousa Santos como uma forma de luta contra “o colete de força da ciência moderna”, a qual teve que estar submetido ao desenvolver a elaboração escrita de sua tese de doutoramento, apesar de utilizar na prática de elementos transgressores, como por exemplo, deixando de se pautar pela obsessiva separação entre observação versus participação, e tomando diversas iniciativas, interferindo com sua opinião em ações e interações sob observação[5], para oferecer apoio jurídico, intervenções políticas e aconselhamento político aos líderes comunitários[6], em reconhecendo a importância da metodologia transgressora. Neste sentido, o A. entende que “a riqueza do material de investigação que reunia era afinal uma prova de que a Hidra da ciência moderna podia reconstituir-se a partir das feridas que a tinham mutilado”[7]. Em tal ocasião são questionados dois métodos tradicionais utilizados pela sociologia, quais sejam, as entrevistas estruturadas e os inquéritos por questionário, por expropriarem os discursos e os conhecimentos autônomos dos entrevistados e inquiridos, transformando-os em matéria-prima para a construção de um conhecimento tido como superior e com grande poder de controle social, o que ocorreria com a própria Sociologia.[8]
A metodologia transgressiva se articularia a uma teoria também transgressiva, ainda que espontânea, incipiente e intuitiva, e mesmo que esta teoria tenha ficado a dever a metodologia e o método transgressor, já que como afirma Boaventura de Sousa Santos o método utilizado teria sido mais radical do que o subsequente desenvolvimento teórico, servindo, contudo, para a compressão do mesmo no sentido de “desenredar o positivismo oculto do marxismo convencional, mas também para questionar a crise paradigmática da ciência moderna” [9]. Verbis: [10]
A riqueza da experiência nada tinha que ver com as palavras rígidas e mortas da lista de observação. De fato, cheguei à conclusão de que o critério de observação, implícito na maior parte das check lists que consultei, tendia a orientar a atenção do investigador para a dimensão técnica da vida social e para o dispositivo externo, (…) e estes eram os aspectos que se tornavam menos importantes logo que a participação assumia a sua dinâmica própria. As check lists eram mecanicistas na sua construção e tendiam a impor uma visão mecanicista da realidade social. A busca de neutralidade e de detenção do controle por parte do sociólogo era o equivalente estrutural da dimensão técnica e do dispositivo externo da realidade social atrás referidos. E tal como qualquer perspectiva mecanicista envolvia uma ideologia expansionista e uma vontade de dominar, também a neutralidade do investigador era um meio de neutralizar a realidade social analisada. Além disso cheguei à conclusão de que o investigador só se conseguia controlar a si mesmo através do controle que exercia sobre os outros. Os tipos de violação das regras que a metodologia transgressiva possibilitou mostraram que esta era, em última análise, uma tentativa de libertar o objeto da ciência libertando, para isso, o cientista da ilusão de autocontrole.
Para romper com os cânones do pensamento ocidental dominante há a necessidade da criação. As ciências têm que ser transgressivas nas suas metodologias, ao contrário das metodologias dialógicas e extrativistas[11]. É o que explica Boaventura de Sousa Santos[12]:
(…) do que se trata é de utilizar o inestimável conhecimento sociológico obtido por técnicas de investigação sofisticadas, desenvolvidas sobretudo pela sociologia positivista, pondo-o ao serviço de estratégias científicas antipositivistas, depois de epistemologicamente transfigurado.
(…) acabei por adotar uma posição de compromisso, colocando-me a meio caminho entre objeto e sujeito da ciência e, portanto, numa posição intrinsecamente ambígua. (…) Cheguei à conclusão de que só violando as regras podia entender a realidade social e que quanto maior fosse a violação, mais profunda seria a compreensão. Apesar disso, continuava a seguir, quase compulsivamente, a regra de ouro da observação participante (…).[13](…) A construção de uma práxis social alternativa justificava, a meu ver, a inevitável violação de algumas regras do método científico.[14]
O artista seria, segundo tal ótica, o único que conseguiria caminhar sobre a linha abissal e desta forma conseguiria olhar muito mais para frente e para trás em comparação com os cientistas. É o ato criador como experiência profunda dos sentidos, permitindo a libertação dos sentidos.
A relação entre Direito e arte revela-se a partir da proposta de Boaventura de Sousa Santos ao mencionar a imaginação sociológica do século XXI, propondo um exercício de imaginação epistemológica e de imaginação democrática[15], e neste sentido referida proposta poderia ser interpretada no sentido de se reconhecer como postulação epistemológica a natureza do conhecimento e da teoria como imaginárias, e portanto, ligadas necessariamente às artes e a tal forma de conhecimento prospectivo, voltado não a um tempo linear, cronológico, mas kairológico, abrindo-se com isso novos usos e possibilidades para o direito e a política.
Na proposta de Universidade Popular dos Movimentos Sociais desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos, verifica-se a influência da metodologia libertária de Paulo Freire, e parte do material de estudo a ser produzido pelas oficinas na Universidade Popular dos Movimentos Sociais necessariamente deverá abranger a realização de atividades artísticas, com destaque para peças de teatro, instalações, exposições e outras atividades criativas.[16]
Uma construção coletiva de saberes requer um investigador com a mente aberta a aprender e aprender outros saberes e outros processos de formação de conhecimentos, e Sousa Santos é considerado tudo isso e mais, amigo e companheiro de lutas dos povos indígenas na América, tendo acompanhado a primeira Escola Programática da Coordenadora Andina de Organizações Indígenas – CAOI, representante de seis organizações indígenas do Equador, Peru, Colômbia, Chile, Bolívia e Argentina, envolvendo a temática do Estado plurinacional. [17]
Destaca-se, outrossim, o papel da imaginação epistemológica, de fundamental importância na construção da metodologia não extrativista de Boaventura de Sousa Santos, com fundamento na imaginação sociológica de C. W. Mills, mas indo além desta, substituindo-a pela imaginação epistemológica.[18]
A importância da imaginação é ressaltada por Boaventura como essencial na pedagogia sensorial intercultural, já que o investigador pós-abissal deve “aprender a imaginar as potencialidades sensoriais reprimidas pela naturalização da sensibilidade vigente, tanto a sua como a do grupo com o qual partilha a investigação”. E continua Boaventura: [19]
Imaginar as potencialidades sensoriais constitui em si mesmo um ato de rebelião contra os poderes desiguais e culturais desigualmente diferentes.
Assim, conjugando-se as artes à Sociologia e ao Direito, poderíamos, talvez, fugir ao problema de nossa cultura “logocêntrica”[20], destacando Boaventura de Sousa Santos demais culturas que valorizam o silêncio, a poesia e espiritualidade. Neste sentido, a arte poderá ajudar na descolonização dos discursos e dos imaginários envoltos com a colonialidade, considerando a produção artística como prática emancipatória da existência, uma possibilidade de uma resistência sensível e de uma estética da existência.
A arte, sendo essencial à criatividade, nos ajudaria na tarefa de criarmos conceitos novos e nômades[21], bem como a fazer transgressões e lutar contra o desperdício da experiência que o ocidente impõe ao mundo e também a si mesmo, uma forma de postularmos por uma política amorosa, já que Eros envolve os conceitos de outricidade, do respeito pelo outro, pelo cuidado de si e também do outro, envolvendo, pois toda uma arte de viver.[22]
A importância das artes na compreensão, estudo, aplicação do direito revela-se ao abordar a questão do conhecimento corpóreo, do conhecimento como corpóreo e das experiências corpóreas, e em especial o papel da dança, pois é “quando o corpo se torna especialmente animado e vivo, com potencial de transgressão aos códigos repressivos do comportamento correto” [23]. O corpo das epistemologias do Sul vincula-se à dança, ao riso, ao canto, à festa e ao erotismo.[24]
A ecologia dos saberes como uma epistemologia desestabilizadora e pós-abissal partiria do reconhecimento e não do descrédito do conhecimento científico, mas sim da sua utilização não hegemônica[25], e ao se empenhar por uma crítica radical da política do possível, envolve ao contrário de uma ação conformista uma ação com-clinamen, sendo tal conceito originário de Epicuro e Lucrécio, significando a capacidade de desvio dos átomos, como movimento espontâneo, logo também do ser humano. Contudo, ao contrário do movimento revolucionário tal criatividade da ação com-clinamen não se assentaria em uma ruptura dramática, mas em um ligeiro desvio, tornando possível as combinações complexas e criativas entre os átomos, seres vivos e grupos sociais[26].
A ação com-clinamen encontra alinhamento com o pensamento pós-abissal, diante de sua capacidade para atravessar as linhas abissais que criam exclusões abissais. Boaventura entende que a ecologia dos saberes é constituída por sujeitos desestabilizadores, dotados de uma subjetividade com especial capacidade, energia e vontade de agir com-clinamen.
Aqui se faz a conjugação necessária da ação com-clinamen com o reconhecimento da necessidade de se resgatar o vínculo na verdade indissolúvel entre o Direito e as artes, em especial, a conjugação do pensamento pós-abissal com as artes, ante seu caráter e função transgressores, permitindo-se a multiplicidade de leituras, a singularidade e a diferença, essenciais ante a luta contra a monocultura dos saberes científicos.
Resgatando tal potencial das artes e a ligação das artes com o Direito, seria recuperada uma ligação na verdade indissolúvel que na modernidade com o formalismo (e com o humanismo) foi rompida, é uma visão alternativa à visão tradicional do Direito como ciência e técnica, puro, cartesiano, mas do Direito, em si mesmo como poiético, como criação (autopoiético e imaginário), fertilizado pelas demais disciplinas, por meio da transdisciplinaridade e interdisciplinaridade, e assim permanecendo vivo, fértil. Corrobora com tal proposta o conceito de “clinamen” de Harold Bloom[27] por estar relacionado justamente com a atividade poética, in verbis:
A noção de clinamen serve para explicar a criatividade poética como uma três-leitura que é antes trans-leitura, correspondendo à expressão “misreading”, um ler-mal que é também ler mais do que bem ou corrigir, nas palavras de Harold Bloom: “um poeta desvia-se do poema do seu precursor executando um clinamen em relação a ele”.
Boaventura de Sousa Santos comenta sobre a artesania das práticas como um dos procedimentos, ao lado do trabalho de tradução, das ecologias dos saberes, envolvendo as artes[28]:
A preocupação com a dimensão ética e artística da transformação social pode incluir todos esses saberes e ainda as humanidades no seu conjunto, a literatura e as artes (…). A ecologia de saberes sinaliza a passagem de uma política de movimentos sociais para uma política de intermovimentos sociais.
Isso porque a arte, a exemplo da poética, permitiria desativar os dispositivos a cargo do biopoder, as funções meramente informativa e utilitária da linguagem, e encontrar um espaço, um resto, onde um novo uso e novas possibilidades para a linguagem seria possível. Assim, a poética, a arte e a criação são vistas como resistência, permitindo-se um resto entre os processos de subjetivação e desubjetivação, e novos usos e possibilidades para o direito e para a política.
A função de transgressão das artes necessária para a autopoiese do Direito, no sentido de sua constante renovação, precisando do elemento da diferença, da singularidade e da multiplicidade.[29]
A arte nos permite o assombro, o êxtase, ter de volta a humanidade perdida, a rehumanização do direito. O êxtase, o abandono de si, o desprezo de si de que já falava Nietzsche (o mais desprezível dos homens, aquele que não despreza mais a si mesmo), e é retomado por Michel Foucault, como essencial no cuidado de si.
Destaca-se neste sentido o entendimento poético de Hölderlin ao interpretar a tragédia grega “Antígona”, valorizando a fluidez e o sfumato poético, valorizando a energia não verbal, que reverbera no que é dito, o alicerce estético da experiência e do conhecimento, conferindo à experiência estética um papel privilegiado. No mesmo sentido, entendemos a análise de Foucault, ao propor seu interesse pelas heterotopias, não pelas utopias, ou seja, pelos espaços absolutamente outros, nas margens, espaços e indivíduos desviantes, postulando por virar do avesso a narrativa e conseguir outra significação. Uma abordagem que leve em conta o não dito, o resto, possibilitando novos usos, um uso anárquico e dionisíaco, uma ação política revolucionária. Tais propostas em tudo se relacionam com a proposta de metodologia, epistemologia e teoria transgressoras de Boaventura de Sousa Santos, permitindo-se uma abordagem aberta e libertadora, e um conhecimento-emancipação no lugar do conhecimento-regulação.[30]
[1] Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, reinventar a emancipação social”, p. 33 e ss.
[2] Boaventura de Sousa Santos, “O direito dos oprimidos”, p. 94.
[3] Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, p. 21 e ss.
[4] Ibidem, p. 464 e ss.
[5] Boaventura de Sousa Santos, “O Direito dos oprimidos”, p. 307.
[6] Ibidem, p. 315.
[7] Ibidem, p. 213.
[8] Ibidem, p. 227-229.
[9] Ibidem, p. 365.
[10] Ibidem, p. 333, p. 335.
[11] Boaventura de Sousa Santos, aulas magistrais, Universidade de Coimbra, 25.05.2018, “A arte e as epistemologias do sul – as imagens da libertação”.
[12] Ibidem, p. 21, p. 46, p. 47.
[13] Ibidem, p. 163-165.
[14] Ibidem, p. 173.
[15] Boaventura de Sousa Santos, “Renovar a teoria crítica, reinventar a emancipação social”, p. 43 e ss.
[16] Boaventura de Sousa Santos, “A gramática do tempo: para uma nova cultura política”, p. 159 e ss.
[17] Boaventura de Sousa Santos, “Refundación del Estado en América Latina Perspectivas desde una epistemología del Sur”.
[18] “O fim do império cognitivo”, p. 12; p. 218-219.
[19] p. 303-304.
[20] Ibidem, p. 47.
[21] Ibidem, p. 48-49.
[22] Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do sul”, p. 448.
[23] Boaventura de Sousa Santos, “O fim do império cognitivo”, p. 166-167.
[24] Boaventura de Sousa Santos, “O fim do império cognitivo”, p. 165.
[25] Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul, p. 47 e ss.
[26] Ibidem, p. 29 e ss.
[27] Ibidem, nota 62, p. 29-30 e ss.
[28] Ibidem, p. 462.
[29] “Autopoiese” no sentido de auto-observação do sistema jurídico por si mesmo, e autonomia de outros subsistemas sociais, produzindo respostas aos problemas sociais e jurídicos através do código binário lícito-ilícito.
[30] Boaventura de Sousa Santos, “O direito dos oprimidos”, p. 113, p. 115, p. 151.