O Frio das Minhas Cinzas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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O Frio das Minhas Cinzas. Aracê e Maratus. São Paulo: Editora M.inimalismos 1ª edição, 2023, 64 p. (https://www.editoraminimalismos.com/product-page/c%C3%B3pia-de-o-frio-de-minhas-cinzas-de-arac%C3%AA-maratus)

                

Confesso que foi grande a surpresa quando M N, meu aluno no Curso de Direito, na Universidade de Brasília, me pediu para colocar notas (apresentação, prefácio, o que seja), em seu livro de poemas “O frio das minhas cinzas”.

Note-se que identifico o poeta por suas iniciais. Até aqui, conforme o que me confidenciou, seus poemas, publicados ou não, estão protegidos por pseudônimos e heterônimos: “Comecei a escrever em 2017, ainda no Ensino Fundamental, mas foi a partir de 2019 que enxerguei uma possibilidade de estudar os movimentos literários e aplicá-los por meio da escrita. Posteriormente, em 2020, após acumular diversos poemas em nome do pseudônimo Aurora, decidi criar uma página na internet de poemas. Porém, notei que eu poderia ampliar a minha escrita, incorporando diversas influências e estilos sem perder a identidade, foi assim que me encontrei na ideia de escrever por meio de heterônimos. A ideia vingou, desde então escrevo meus poemas na perspectiva de 24 heterônimos”.

Bem, eu conhecia M N por sua destacada participação em minha disciplina na graduação – “Pesquisa Jurídica” – da qual foi monitor. Ajudou-me para além da minha competência, com a sua enorme capacidade e reconhecimento no sistema editorial da wikipedia, o repositório no qual, como parte da metodologia do curso, publicávamos verbetes produzidos pelos estudantes, como trabalho de finalização do curso. O sentido da atividade? Aquele sugerido por Pedro Demo, “não há aprendizagem sem pesquisa e sem autoria”.

Diferentemente de gente muito importante, que teve seus trabalhos criticados e até postos em discussão por objeção editorial, os verbetes dos alunos, graças a expertise de M N, foram sempre acolhidos, com pouca ou nenhuma objeção.

Depois, o próprio M N se credenciou no sistema de pesquisa, pela iniciação científica, e me escolheu para Orientador, apresentando um projeto, já aprovado, com foco em uma análise da proteção extralegal da Escadaria Selarón.  “Além de buscar entender os efeitos práticos da lei nº 5.927, de 17 de agosto de 2015, a partir de uma relação da obra com a teoria crítica do Direito Achado na Rua, nessa pesquisa, o que se pretende estudar é a presença fática dos movimentos sociais, os quais possuem a potencialidade da reivindicação de direitos na ausência do Estado. Além disso, o trabalho pretende entender como uma obra coletiva na cidade do Rio de Janeiro moveu setores amplos da sociedade para pressionarem a criação de uma lei de proteção à Escadaria, visando transformá-la em patrimônio para não ser degradada”.

Na justificativa do projeto, acolhido pelo Comitê de Iniciação Científica da UnB, o interesse de M N se voltou para uma obra política e culturalmente forte no imaginário da coletividade do Rio de Janeiro, incluindo turistas estrangeiros que a visitaram e mandaram azulejos de seus países para que Jorge Selarón agregasse na escadaria.

Ainda nessa justificativa, M N sustenta que “após a morte do artista em 2013, diversos setores da sociedade carioca vêm se agrupando e lutando para manter a obra revitalizada. Em 2019 iniciou-se uma vaquinha coletiva virtual, a qual juntou 132 mil reais com o objetivo de ajudar na revitalização da escadaria e criar um inventário digitalizado da obra do artista. A vaquinha contou com 343 benfeitores de diversos países do mundo e com o auxílio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) que se dispôs a pagar o dobro do que foi arrecadado pela vaquinha. O projeto foi feito pela Liga Independente dos Guias do Rio de Janeiro (LIGUIA) juntamente com os comerciantes do centro da cidade por meio do Polo Novo Rio Antigo. Por mais que a escadaria seja tombada, nunca houve um levantamento da quantidade exata de azulejos, dos tipos e técnicas utilizadas nas cerâmicas e dos países de origem dos azulejos. Dessa maneira, é evidente que apesar da existência da Lei, foi a LIGUIA e os comerciantes que se organizaram para montar um plano de revitalização e de procurar informações da obra, o que indica a importância dos movimentos sociais independentes na proteção dessa obra de arte. (RIO, P. J. DO E. DO. Acesso em: 6 nov. 2022)”.

Aí eu já comecei a intuir que a persona circunspecta do pesquisador na Academia, vestia a alma de um artista, no plano teórico, e de um poeta, no sensível. Traduzida por Aracê, seu heterônimo:

 

………………….

Nesse sonho

Que pesa

O corpo

Falta algo…

A leveza

De uma

Alma

………………….

De A Alma

 

Aqui, introduzo uma diretriz de leitura da obra, retirada da interpretação autêntica de M N: “Em 2022, já com bastante material acumulado, decidi que era hora de tentar publicar alguns poemas. Consegui a publicação de 3 heterônimos, sendo eles: Crononauta, Aracê e Maratus. Crononauta foi publicado por meio de 2 livros, sendo duas antologias contendo alguns poemas. Já Aracê e Maratus serão publicados por meio de um livro próprio, chamado “O frio das minhas cinzas”, que aguarda o lançamento.  O livro “O frio das minhas cinzas” reúne poemas de Aracê e Maratus, mas não há uma pretensão de produzir uma história a ser guiada pelos passar dos poemas. Na verdade, o livro é uma forma de marcar a identidade dos heterônimos, cada um com suas influências e estilos. Nesse sentido, Aracê é uma tentativa de buscar parte da essência do Romantismo e do Simbolismo, focando na transmissão da mensagem, deixando de lado a rigidez da estrutura. Já Maratus é uma construção que busca refletir a beleza encontrada na natureza preservada”.

Na introdução do livro, são apresentadas as identidades dos poetas.

Aracê é uma viajante temporal, mas poeta quando convém. A poeta não existe concretamente, é a voz que vaga no corpo de um morador de Brasília. Surgiu livremente da manifestação da aurora em uma manhã qualquer da pandemia. As flores, conta Aracê, tinham um aroma tão agradável que foi suficiente para dar vontade à poetisa para nascer espontaneamente.

            Para além dela, há Maratus, fruto do ventre de Aracê. Maratus nasceu já velho, independente, esquisito por natureza. O poeta, ao nascer, tomou consciência de que queria se isolar de tudo e de todos, mas não por ódio ou enjoo perante a humanidade, como diz o clichê. Na verdade, o poeta, apaixonado pela natureza, em um ato de liberdade, se isolou na Mata Atlântica e por lá ficou, sem ressentimento, apenas pelo amor, pelos cantos de seus amigos pássaros e pelo cultivo das flores em seu coração. No plano da existência, Aracê e Maratus encontram morada em M N, morador de Brasília, estudante de Direito e, como os demais, poeta. M se caracteriza por ser o abrigo de tantas possibilidades poéticas, o qual, por meio de sua presença orgânica, traduz para o real as imagens poéticas desenvolvidas por seus heterônimos.

 

MARIANA

Das ondas da lama

Das ondas do rio

Dos vultos da morte

Quero me livrar

De uma água eivada

O que tirarei?

Só me resta o nada

E o sonho letargo

Das ondas da lama

Quem vem me salvar?

Do arrasto feroz

De um mal entre nós

Num rio deserto

Aposento o anzol

As ondas da lama

Enfim vou largar

Nascido velho do ventre de Aracê, assim como Minerva sai armada da cabeça de Júpiter, Maratus e seus parceiros heterônimos, assim como os heterônimos de Fernando Pessoa, não escondem a sua tentativa desesperada de se instalar no real, no real interior ou o que se exibe exteriormente, impressionando o poeta M N.

Acaba de ser publicado pela Editora Dialética, em coedição com o Jornal Estado de Direito, o primeiro volume de Lido para Você. Direito, Cinema e Literatura, coletânea de textos de minha Coluna, com a mesma denominação (Lido para Você), que sai no Jornal, semanalmente (José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo : Editora Dialética, 2023. (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/)

O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.

Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos.  São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar o real, porque o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem”.

Tal como tenho indicado nessa perspectiva, sigo a consideração de Roberto Lyra Filho, no plano filosófico-jurídico, ao referir-se às múltiplas atitudes e não unilaterais atitudes de conhecimento – a explicação científica, a fundamentação filosófica, a intuição artística e até a revelação pela experiência mística – conforme entre outros Filosofia, teologia e experiência mística, in Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. II, p. 145-150, 1974; Filosofia geral e filosofia jurídica em perspectiva dialética, in PALÁCIO, C., org. Cristianismo e história. São Paulo: Edições Loyola, p. 147-169, 1982; A concepção do mundo na obra de Castro Alves. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972.

Roberto Lyra Filho (ou Noel Delamare) é, nesse sentido, ego e alter ego, filósofo e poeta, conforme eu assinalei em meu in memoriam (Indivíduo e Coletivo em Plena Harmonia), Revista Humanidades, Brasília: Editora UnB, nº 11, novembro/janeiro, ano III, p. 38, 1986/1987; ele próprio, Roberto Lyra Filho. A Nova Filosofia Jurídica, p. 39-42 e Noel Delamare. O Cancioneiro dos Sete Mares, p. 43-50, Revista Humanidades, idem.

Também, em Luis Alberto Warat, procedente dos estudos lógico-analíticos e da teoria do Direito, até se extravasar no Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, e excedendo qualquer fronteira artístico-epistemológica no romance O Amor Tomado pelo Amor. Crônicas de uma paixão desmedida, in Territórios desconhecidos, vol. 1.  Florianópolis: Fundação BOITEUX, 2004. O enlace dessas múltiplas dimensões sensíveis neste autor, que foi meu orientador de doutorado, assim como Roberto Lyra Filho foi meu orientador no mestrado, está bem delineado pelo próprio Warat, na entrevista Arte e direito começam a virar a página, concedida a Marta Gama (Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019: https://estadodedireito.com.br/entrelugares-de-direito-e-arte-experiencia-artistica-e-criacao-na-formacao-do-jurista/).

Observatório da Constituição e da Democracia. UnB – SindjusDF | Outubro de 2006, p. 12-13, sobre o tema Os Novos Caminhos da Arte e do Direito. Nessa edição (https://drive.google.com/file/d/0B5uBt99PdGHCSU96RlhsQ3FlMmc/view?fbclid=IwAR1m27zSYcZQzP2u612YAE2PVuCjoDgrMGZLuZB86YQv2mb0S_kV1xkO9w0&resourcekey=0-c4htb_V_ECNmUIHiFQ9dMQ), além de Warat, Roberto Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos, pesquisadores e pesquisadoras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, fazem ricas aproximações a esses temas que podem ser sintetizadas numa locução do próprio Warat: “A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça”.

Completo com Boaventura de Sousa Santos, esse Janus instituinte de continuidades e rupturas de impérios cognitivos, tarefa impossível sem a mediação artística de metáforas e (pluri)versos. Tome-se os exemplos: Escrita INKZ anti-manifesto para uma arte incapaz (Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2004) e RAP Global, Queni N. S. L Oeste, rapper compondo sobre texto de Boaventura (Rap Global / Queni N. S. L Oeste; apresentação de Boaventura de Sousa Santos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento – 2ª edição, 2019).

De certo modo, a publicação de O Frio das Minhas Cinzas, pode representar para M N o galgar de uma escadaria que o leva ao real, com a ajuda de seus heterônimos. Uma espécie de Dia Triunfal, alusivo ao 8 de março de 1914, dia em que Fernando Pessoa, o múltiplo, teve a epifania criativa para se encarnar e almar por seus heterônimos, como tão bem representa o filme com o mesmo título, realizado por Rita Nunes, a partir de uma ideia de Nuno Arthur Silva, numa ficção de Maria João Cruz – https://www.youtube.com/watch?v=An5nfi_BI2c): Alberto Caeiro, o mestre pagão, Ricardo Reis, o neoclássico estóico, e Álvaro de Campos, a besta modernista.

Sim, O Frio das Minhas Cinzas, traz arte para a vida, pela criação de M N, manifestada por Aracê e Maratus.

 

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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