O Direito Internacional dos Refugiados e os Boat People no Mar Mediterrâneo

O Brasil na década de 1990 do século XX regressou ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos, após um longo período de governo autoritário que procurava isolar a “ingerência externa” que a defesa de direitos humanos poderia representar. Foram incorporados à nossa legislação os principais tratados internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito regional como mundial. O Brasil teve um papel de protagonismo na II Conferência Internacional de Direitos Humanos de 1993, da Organização das Nações Unidas (ONU). Além de ter criado um arcabouço jurídico para recebimento dos chamados refugiados, pessoas que fogem de seus locais de origem com fundados temores de perseguição política, racial, étnica, cultural, de grupos sociais, de acordo com os parâmetros internacionais da Organização das Nações Unidas – Convenção de Genebra de 1951.

Neste raciocínio, no caso da política brasileira para refugiados, a Lei 9.474/1997 incorporou este tratado internacional e estabeleceu critérios e procedimentos para a obtenção e cassação do refúgio, direitos e deveres dos refugiados e previu a aplicação das soluções duradouras para refugiados. Assim como tornou as autoridades de fronteira protagonistas para o recebimento de solicitantes de refúgio, e ainda institucionalizou um órgão específico colegiado, interministerial, diretamente ligado ao Ministério da Justiça de modo a decidir o status de refugiado aos solicitantes que chegam ao país, para assim ditar diretrizes políticas para os deslocados, articulada com as autoridades nacionais de fronteira e com os Estados-membros da federação[1].

A instituição política que foi criada pela legislação foi o CONARE – Comitê Nacional para Refugiados, de modo a tentar responder ao desafio de estabelecer diretrizes para políticas relacionadas aos refugiados; um organismo coletivo, tripartite, não paritário, com representantes do governo, da sociedade civil e da comunidade internacional[2].

Uma organização com graves problemas estruturais e de recursos humanos desde sua criação , o Estatuto dos Refugiados, com um acúmulo na ordem de 15 mil pedidos de refúgio até meados deste ano, segundo o próprio organismo. Neste sentido, o governo federal ao reconhecer estes problemas, vem procurando descentralizar o órgão e aumentar a quantidade de funcionários públicos à disposição, ao buscar criar um Plano Nacional de Refúgio[3].

Além disso, permanece uma grave contradição institucional e legislativa.  A Lei 6.815/1980, conhecida como o Estatuto do Estrangeiro, legislação que regula a situação global dos imigrantes internacionais no país, é a legislação ainda vigente, produzida durante o Regime Militar, inspirada no Estado Novo de Getúlio Vargas. É claramente dominada por uma visão ideológica de segurança nacional e de utilitarismo econômico, em que o estrangeiro é visto como potencial perigo de “subversão”; e que somente é bem-vindo o imigrante que traga complementação econômica ao país. Em outras palavras, com pouca ou nenhuma visão humanitária ou de hospitalidade com o imigrante internacional.

Conforme termo que foi popularizado nos anos 80 para se referir à legislação criada durante o autoritarismo que continuou vigente, tratar-se-ia de um verdadeiro “entulho autoritário”.  E apenas recentemente começou-se uma discussão mais central de mudança global da legislação no âmbito do Congresso Nacional e do Poder Executivo, após várias tentativas frustradas desde o governo de Fernando Collor de Mello.

O Brasil é um país que foi formado em grande parte por imigrantes – voluntários (europeus, asiáticos) ou forçados (africanos). No entanto, não tem uma política consistente de imigração internacional, não apresentando sequer um processo de integração legislativa com os países limítrofes no que tange à proteção de refugiados. As situações existentes ou são tratadas como casos individuais e pontuais, ou têm soluções “ad hoc”, como no caso dos imigrantes do Haiti ou de Gana.

Quando se verifica o número de refugiados recebido pelo país, em comparação com outros países com mesmo porte em termos de tamanho de população e economia, se verifica relativa defasagem entre o discurso oficial e a ação do governo brasileiro em termos de recebimento e acolhimento de refugiados.

Embora tenha aumentado o número de pedidos de refúgio em um período recente, conforme pode ser visto no Gráfico 1, este número de casos por ano é quase comparável ao que chega à Itália por semana, e não impediu o acúmulo de casos sem que o órgão conseguisse examinar todos os pedidos.

O perfil dos refugiados traz indicações sobre laços pré-existentes. Por exemplo, dos 7.289 refugiados recebidos até outubro de 2014, 1.524 eram sírios, constituindo-se no principal grupo, o que provavelmente se deve á existência de uma comunidade de origem síria importante, formada por gerações de imigrantes vindos ao longo dos séculos XIX e XX. Por outro lado, a característica multiétnica e o pluralismo religioso deveriam tornar menos problemática integração de imigrantes vindos da África e do Oriente Médio.

Este é um dos fatores que poderia contribuir para uma iniciativa das autoridades brasileiras, no sentido de compartilhar com os europeus, eventualmente mesmo com apoio financeiro destes, a responsabilidade internacional pela recepção de novos “Boat People”, no contexto de uma colaboração mais consistente e prolongada com o sistema internacional de proteção aos direitos humanos erigido pela ONU ao longo do século XX, e neste sentido, a criação do Direito Internacional dos Refugiados.

Se o Brasil quer ir além da participação simbólica que tem hoje, e fugir do risco da irrelevância, precisa agir conectando suas aspirações no cenário internacional com ações concretas na sua política interna, ou seja, a colaboração com os regimes internacionais de proteção de direitos humanos dos refugiados não pode ficar apenas no campo financeiro com organismos internacionais, desconectado com sua política doméstica. Não basta uma declaração simpática do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para tornar o país uma potência internacional.

Um exemplo de como nossa imagem externa tem outras nuances é posição do Brasil no ranking do “soft power” da Portland Comunications, que nos coloca em vigésimo terceiro lugar entre 30 casos  avaliados. Ainda que possam ser discutidos os critérios, indica que nossa importância internacional não é uma unanimidade. Além, óbvio, do fortalecimento de seu sistema migratório, dentre as instituições políticas envolvidas com o processo de reconhecimento e de acolhimento aos migrantes e refugiados. Um sistema defasado desde a década de 80, tendo em vista a conjuntura econômica e social daquele período, em que o país mais exportou pessoas do que as recebeu.

Ao relembrar-se no período entre guerras e particularmente ao final de 1945, na conjuntura mundial atual infelizmente há vários termos de comparação com relação ao que ocorria no mundo em termos de deslocamento forçado e da necessidade do direito internacional dos refugiados para proteção de pessoas vulneráveis. Os conflitos bélicos atuais, em guerras declaradas e não declaradas continuam matando tanto ou mais que há um século. Hoje há um número comparável de refugiados e pessoas deslocadas no mundo ao que havia ao final da Segunda Guerra Mundial, na época da criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).  E a tendência é de aumento deste número, na medida em que soluções provisórias são as únicas respostas que países como a Itália e outros europeus se esforçam para conseguir, no resgate aos atuais “boat people” no Mar Mediterrâneo, que se arriscam para chegar á Europa em busca de novas vidas e de segurança.

Neste contexto, o protagonismo brasileiro em torno do desenvolvimento do direito internacional dos refugiados, ao receber mais pessoas nesta situação, poderia aumentar, visto que têm as condições necessárias para ser um protagonista global. Mas esta é uma decisão política que tem de ser tomada por nossas autoridades.

No momento, as prioridades governamentais parecem estar atreladas ao ajuste econômico e fiscal, deixando-se a defesa de uma política externa atrelada aos direitos humanos e à condição dos refugiados em segundo plano, ainda que com esforços pontuais e fragmentados.

No entanto, esta é uma conjuntura que pode mudar rapidamente. Se o Brasil realmente quer se qualificar como uma potência mundial deve agir quando é necessário, e não apenas quando lhe é conveniente. E para isso a melhoria de seu sistema migratório na infraestrutura e nos recursos humanos, a modernização de sua legislação e uma reorientação de sua política externa, atrelada de forma mais clara e consistente com questões humanitárias, tais como a causa global dos refugiados parece ser evidente.

Esta não é uma tarefa fácil, para um governo que se encontra em situação extremamente fragilizada tanto em termos de apoio popular como parlamentar. A aplicação de recursos para ajudar imigrantes internacionais em situação vulnerável pode conflitar com os interesses de uma população mais preocupada com o desemprego e a inflação, dissociando uma questão da outra. Mas seria esta coragem que poderia projetar a imagem de um país com uma liderança que pode ser relevante tanto interna como externamente.  Não é hora de escolher os caminhos fáceis, mas de enfrentar os desafios. Ainda que isto pareça pouco provável no momento.

Professor de Relações Internacionais na UFGD –  César Augusto S. da Silva

[1] Lei 9.474 – de 22 de julho de 1997 –  Estatuto dos Refugiados – artigos 17º ao 28º, artigos 38º ao 39º, artigos 4º ao 6º, artigos 40º ao 41º, artigos 42º ao 46º, respectivamente.

[2]Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. CONARE – Comitê Nacional para Refugiados, Lei 9.474/1997, artigo 16º.

[3] Disponível em: http://oestrangeiro.org/2015/06/27/modernizar-e-agilizar/. Acesso em 27/06/2015.

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