O assédio na técnica de Marte

Coluna Assédio Moral no Trabalho

As indissociáveis relações assimétricas de poder presentes no Assédio Moral, surpreendentemente, não são rompidas quando mulheres ocupam espaço esportivo dito masculino, qual seja, das artes marciais. (1)

Foto: Pixabay

Ao reverso, o preconceito e a violência de gênero fazem-se muitas vezes presentes ainda que, num primeiro instante, vislumbre-se uma apropriação dos caracteres identificados com o homem, a saber, coragem, confiança, controle emocional etc.
Destarte, se o ingresso das mulheres no mundo esportivo é fenômeno recente marcado por dificuldades – na primeira Olimpíada moderna datada de 1896 compartilhavam apenas como espectadoras –, tal quadro se exacerba quando se está diante de modalidades “(…) incompatíveis com as condições de sua natureza” (artigo 54 do Decreto-Lei 3.199/41), cuja proibição da prática ao “sexo frágil” só cedera na década de 70, no levante das transformações sociais e culturais:
“Durante muitos anos as mulheres foram proibidas de participar em atividades esportivas e mesmo depois de que se começara a permitir sua participação em tais atividades, a situação não melhorou como deveria. A mulher sofreu, e ainda sofre, com o preconceito da sociedade e podemos dizer que esta situação se agrava quando se trata de modalidades de luta ou artes marciais.” (2)
Interessante anotar que, quando se pensa numa mulher a praticar qualquer tipo de luta, partindo-se do histórico subjugo feminino e do diuturno risco à violação, imagina-se a demanda pela autodefesa, porém, não se cinge a esta única motivação.
Com efeito, fatores como competitividade, desafio, atividade física, alívio para o estresse e mesmo influxo de namorados ou amigos respondem ainda, pela ida das mulheres aos tatames.
Neste meio contudo, percebe-se a falta de um maior referencial feminino e, por conseguinte, um “teto de vidro” a embaraçar graus mais progredidos na modalidade escolhida. E, por óbvio, isto reflete numa desinformação também a distanciar a mulher desta arena de treinamento desportivo.
Aquelas que superam o preconceito e adentram este reduto sentem o peso do papel atribuído ao gênero: discriminação, desvalorização (inclusive salarial), desincentivo etc. quando não, o assédio sexual.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Aliás, o assédio sexual – verbal ou físico – não é incomum. Sofrido em silêncio mais uma vez pelas vítimas, imiscui-se com “inocentes elogios” e frases de duplo sentido, alcançando as chamadas “mãos bobas”:
“O assédio ocorreu antes da aula com cantadas e propostas. E durante a aula com algumas pegadas desnecessárias, suspiros no ouvido, fora do que é habitual durante a luta.” (3)
Tais condições impelem as mulheres a abandonar as artes marciais. Agregam-se a tudo isto, introjeções próprias das participantes como, temor da perda da “feminilidade”, receio do estigma, pressão do companheiro ou da família, medo da “violência” intrínseca ao esporte etc.
Neste sentido, Yvone Duarte, atleta mais graduada do mundo e primeira mulher a conquistar a faixa preta no jiu-jitsu:
“Quando comecei no jiu-jítsu, lutava em uma academia, no Rio de Janeiro, que tinha um grupo de mulheres, mas fui a única que chegou à faixa preta. Ser mulher na América Latina implica em acúmulos. Ser mãe, trabalhar, eu ainda tinha o jiu-jítsu… Acho que minhas colegas de academia não conseguiram a faixa preta por causa dessa cobrança da sociedade brasileira. Nossa primeira competição foi em 1985, depois que conversei com o Rickson Gracie, que levou o pedido para o Helio. Não digo que foi difícil, mas precisamos explicar. Ainda há um resquício de machismo na sociedade, e isso também aparece no jiu-jítsu.” (4)
Por óbvio, não se pretende pontuar este discurso como verdade absoluta a desmerecer as positivas vivências experimentadas por mulheres e homens neste peculiar mundo desportivo: histórias de amizade e pertencimento a uma “família” são frequentes.
Enfatizar todavia que, nada obstante haja indiscutível avanço – com uma visibilidade mais desatrelada a questões sexuais – o problema ainda persiste é indispensável. E, principalmente, reforçar que este campo de luta também é nosso.

Referências:

(1) Artes marciais (do latim ars: “técnica”, do romano: “deus Marte” – “A técnica de Marte”) são práticas físicas e mentais, derivadas de técnicas de guerra, divididas em diferentes graus, com o objetivo de desenvolvimento de seus praticantes para que possam defender-se atacando, ou submeter o adversário mediante diversas técnicas. Muitas destas artes de guerra deram origem a artes que atualmente são praticadas em todo o mundo, como por exemplo: Kung Fu; taekwondo; judô; karatê; luta olímpica (a luta greco-romana e a luta livre olímpica); jiu-jitsu; muay thai; kickboxing, etc.
(2) Disponível em: https://revistas.ufpr.br/alesde/article/view/37220/25579. Acesso em: 07 fev. 2019.
(3) Disponível em: http://www.espn.com.br/blogs/espnw/723649_assedio-nos-tatames-parte-1-introducao . Acesso em: 07 fev. 2019.
(4) Disponível em: https://www.clickpb.com.br/blogs/nocaute/mulheres-na-luta-desafios-do-passado-presente-e-futuro-nas-artes-marciais-218586.html. Acesso em: 07 fev. 2019.

Ivanira
Ivanira Pancheri é Articulista do Estado de Direito, Pós-Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2015). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1993). Mestrado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (2000). Pós-Graduação lato sensu em Direito Ambiental pela Faculdades Metropolitanas Unidas (2009). Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é advogada – Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Esteve à frente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo. Participa em bancas examinadoras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como Professora Convidada. Autora de artigos e publicações em revistas especializadas na área do Direito. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processual Penal, Ambiental e Biodireito.

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