Literaturas Munduruku: As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Literaturas Munduruku: As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva. Catherine Fonseca Coutinho. Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: Universidade de Brasília/CEAM-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, 2021, 115 p.

 

                           

 

A defesa na íntegra, da bela dissertação objeto deste Lido para Você pode ser assistida pelo Canal YouTube de O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=P7nrAIFApYE.

Tive a satisfação de orientar a Dissertação e de acompanhar todo o seu processo de elaboração, desde o esboço original da proposta até a sua forma definitiva, submetida à Banca Examinadora, formada por mim, como presidente, mas sem competência deliberativa e pelas professoras Elaine Moreira, Membro Interno (ICS/ELA); Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Membro Externo (UFRJ). Também integrou a Banca como suplente, a professora Talita Tatiana Dias Rampin da Faculdade de Direito, que também acompanhou o processo de elaboração do trabalho.

Do que cuida a Dissertação, diz bem o resumo formal que integra o trabalho:

A pesquisa pretende apresentar o olhar às histórias contadas por autores que sempre as desenvolveram, todavia, não as tiveram reconhecidas tampouco apreciadas no plano do discurso histórico e da literatura brasileira. Na forma de objeto de estudo, as literaturas munduruku, escritas por Daniel Munduruku, reivindicam uma história autodefinida face ao imaginário da sociedade brasileira construída, ao longo dos séculos, sobre os povos originários. Para os munduruku, a narração das histórias, a partir do prisma do interlocutor, constitui parte integrante da memória coletiva e do acervo histórico dos sujeitos implicados na narrativa. Já a literatura indígena publicada em livros, aparece na década de 1990 como ferramenta criada por escritores indígenas na postulação e apropriação de suas autorias (em contraposição ao local de objetos de estudo), bem como, na formulação das histórias sob a lente da autoperspectiva. Para confecção de um trabalho que pensa a autoria indígena, o estudo conta com a revisão bibliográfica de textos e livros de autores e autoras indígenas, a análise de três obras de Daniel Munduruku e uma entrevista com Daniel Munduruku transcrita ao longo dos três capítulos da dissertação. No panorama onde o imperialismo e a colonialidade vindicam permanentemente a construção da história de “índios” genéricos, descontextualizados e atrasados no plano nacional de desenvolvimento, os livros publicados por Daniel Munduruku traduzem o significado do conceito de justiça cognitiva, pois disputam presença no campo políticoepistêmico; no caso, contrapõem-se ao discurso histórico hegemônico e às epistemologias validadas pelo norte global, ao mesmo tempo, permitem a existência e resistência da identidade munduruku.

 

Para uma visualização do conteúdo da Dissertação, remeto ao bem construído Sumário da obra:

Prólogo: o fim do mundo e o início da minha inquietação

Introdução

CAPITULO 1 – DANIEL MUNDURUKU E O MERGULHO NO RIO DAS HISTÓRIAS

1.1 Alargar subjetividades: literatura e poética sobre existências

1.2 A literatura “escrita, falada, dançada, cantada”

1.3 Munduruku: entre ser e se fazer presente na(s) história(s)

1.3.1 Meu vô Apolinário: Um mergulho no rio da (minha) memória

1.3.2 Banquete dos Deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira

1.3.3 As serpentes que roubaram a noite e outros mitos

1.3.4 A demarcação originária das literaturas munduruku

CAPÍTULO 2 – PRESENTE, PASSADO E FUTURO: A MEMÓRIA E OESQUECIMENTO, A HISTÓRIA E A FICÇÃO

2.1 Uma história, uma narrativa

2.2 O Tempo e O Outro

2.3 O mito é moderno

2.4 O mito é nacional

2.5 A invasão pariwat e a resistência munduruku: o atravessamento colonial

2.6 Movimento indígena brasileiro: a luta comum e a identidade “pan-indígena”

2.7 As interpelações do tempo presente

CAPÍTULO 3 – A JUSTIÇA COGNITIVA E A LITERATURA MUNDURUKU

3.1 Conhecimentos, epistemologias e a sociedade que “experimenta a Lua, coloniza a Lua, civiliza a Lua, humaniza a Lua”

3.2 E o que é Justiça Cognitiva?

3.3 A justiça cognitiva nas literaturas munduruku

3.4 O amanhã não está à venda, a convocação é política e contemporânea

3.5 O fim do trabalho, a permanente inquietação

A conclusão ou “o resumo da Oka”

Referências.

 

            Ainda bem que os avanços das tecnologias de educação, com o aperfeiçoamento de plataformas pedagógicas e assim ditas ferramentas tornam possível agregar a textos de análise os aparatos que os complementam. Assim, aqui indicado, o link para acompanhar toda a defesa. Por ela se observa que a performance da candidata ao Mestrado confirma a qualidade de seu texto e o adita com uma riqueza interpretativa forte no discurso e no arranjo expositivo que dá vivacidade e oferece um fio condutor para a melhor articulação dos elementos do estudo apresentado.

            Vale a pena recuperar os slides dessa apresentação (eles aparecem como imagens na apresentação da dissertação no YouTube) para extrair de suas lâminas as missangas enredadas no fio diretor da narrativa, muito mais que simples bijuterias para ornar desde a oralitura que dá expressão ao imaginário contido nos textos estudados, até contribuir para elevá-los ao patamar de reconhecida alta literatura indígena, tão capaz de apropriar-se do real para pensar com Eduardo Lourenço que assim designa a verdadeira literatura (in Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999): a literatura não é um delírio mas a apropriação do real por meio de outra linguagem.

            Assim, pois, o problema de pesquisa, que inspirou a Autora a partir das instigações de Ailton Krenak e suas ideias para adiar o fim do mundo, de David Kopenawa e seu ingente esforço para segurar o céu em queda, e de um formidável plantel de autoras e autores indígenas, acabou alcançando os que narra Daniel Munduruku.

Com efeito, a partir dos conhecimentos que formam hoje um campo de saber bem estabelecido, uma racionalidade autêntica, constituída pelos saberes indígenas, a Autora quer compreender como as histórias contadas por Daniel Munduruku, demarcam uma forma epistêmica, identitária e política e logram alcançar e se inserir no plano de uma justiça cognitiva, categoria que ela traz de Boaventura de Sousa Santos.

Esse o seu ponto de partida, configurado como uma interpelação inscrita nas histórias indígenas, que se vai projetar, desdobradamente nos três princiapis capítulos que organizam a Dissertação: 1. o campo literário e a composição das narrativas; 2. a ocupação política e epistêmica (literaturas munduruku), no contexto das intersecções coloniais; 3. a justiça cognitiva (conceito e luta), e desde aí os obstáculos, capacidades e potencialidades, que convocam o protagonismo indígena, no que eu penso pode ser uma referência para descolonizar, indigienizando (tal como Barreto sugeriu em relação à dissertação de Renata Vieira: cf. http://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-povos-e-comunidades-tradicionais-e-agricultores-e-familiares-a-disputa-pelo-direito-no-conselho-de-gestao-do-patrimonio-genetico-cgen/), as instituições (ação política) e o conhecimento (ação epistêmica). Lembrando que nessa banca, além de Henyo Barreto, foram examinadores Raquel Yrigoyen Fajardo e Boaventura de Sousa Santos.

Na perspectiva da justiça cognitiva, conceitualmente referida desde Boaventura de Sousa Santos, como o resultado do cenário de opressões contra sociabilidades e subjetividades rejeitadas pelo padrão normativo moderno e realizada com a formação e a repercussão de saberes opostos à opressão colonial, a Autora extrai de Daniel Munduruku o significado da memória e do esquecimento numa nova significação histórica inscrita no ficcional de modo que possa articular presente, passado e futuro.

Desse modo, conforme a Autora, dá-se uma intersecção entre a justiça cognitiva nas literaturas mundurucu e como resultante, ela sugere: 1.a promoção da distinção frente ao conhecimento científico, pois imparciais, subjetivas e comprometidas com a ética do conhecimento; 2. a manifestação contraposta ao discurso histórico nacional e ao engendramento da identidade brasileira, realocando-os como mito; 3. o diálogo proporcionado entre os munduruku, para pensar a realidade de ser munduruku, mantendo viva a memória coletiva; 4. a demarcação da autoria e da autenticidade indígenas em meio a literatura canonizada; 5. a representação da cosmologia que interpreta o presente na forma de compromisso e o passado como chave para o pertencimento; 6. o combate à monocultura e ao extrativismo dos modos de fazer ocidentais, tanto na dimensão hermenêutica como na dimensão epistemológica.

A Dissertação de Catherine Coutinho foi à defesa na semana em que o Conselho Universitário da UnB, por decisão unânime e aclamação, outorgou a Ailton Krenak, referência forte no trabalho, título de Doutor Honoris Causa.

Na sessão, sob aplausos efusivos  https://www.youtube.com/watch?v=xw5z2KLgMiU – foi lido o parecer da Relatora, professora Mônica Nogueira:

 

Ailton Krenak é um polímata em sentido estrito, reunindo conhecimentos, habilidades e mostras de incidência em diversas áreas do conhecimento e assuntos de alta relevância para os povos e as relações humanas com o meio ambiente. Soma-se à envergadura de suas qualidades intelectuais, sua capacidade de liderança em momentos decisivos da história brasileira.

 A proposta de outorga de título de Doutor Honoris Causa a Ailton Krenak é, portanto, não apenas adequada pelo mérito da personalidade a ser homenageada, mas é  igualmente oportuna, em face da crise que vivenciamos, marcada por um novo influxo  da democracia brasileira, pelos ataques crescentes aos povos indígenas e seus territórios e pelas fortes ameaças à continuidade da vida em todo o planeta,  relacionadas à degradação ambiental.

A Universidade de Brasília, ao conceder o título a Ailton Krenak, quiçá contribua com o “adiamento do fim do mundo”, na medida em que, com esse gesto, demarcará a sua posição institucional de defesa incondicional dos direitos humanos, em especial de reconhecimento e valorização da pluralidade das formas de pensar e viver dos povos, bem como de seu engajamento no enfrentamento dos grandes desafios do nosso tempo, como o da sustentabilidade.

 

            O parecer acolheu a proposição originária do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (CEAM), subscrita por mim e pela professora Vanessa Castro, subscrita por Marilena Chauí e Boaventura de Sousa Santos, ambos Doutores Honris Causa da UnB. O título AILTON KRENAK: “Terra e Humanidades Caminhando Juntas”.

         Já na proposta identificamos, para caracterizar a proposição, o duplo alcance político e epistêmico, que a autoriza, em parte valendo-nos de fundamentos que encontramos em pesquisadores indígenas admitidos na UnB e também, em Catherine Coutinho então, antecipando de seu exame de qualificação, elementos pertinentes que ela agora trouxe para o trabalho final:

Talvez por isso Krenak convide para o sonho como busca de alternativa para o reencontro das humanidades. Assim, diz ele, “quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”.

O que importa considerar, em qualquer aproximação a esse tema é, tomando de Mia Couto, outro Doutor Honoris Causa da UnB, ter em conta que “a terra esteja aberta a futuros”. Mas a terra pensada de modo a compreender, com  Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano) que “a luta pela proteção dos territórios indígenas é o que unifica, articula e mobiliza todos, abordando especialmente a importância para a vida dos povos originários, sem o território não há saúde, educação, proteção do meio ambiente, não há vida, o território é fundamental na resistência dos povos indígenas, para além de bens materiais o território tem um significado que envolve espiritualidade, valores, conhecimentos e tradições. Território é onde se fortalece a identidade e a cultura de cada povo” (retirei a referência em MONTEIRO, Suliete Gervásio. O Retorno de Xawara no Território Yanomami: Conflito, Luta e Resistência. Projeto de Qualificação para o Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020).

Com todo o engajamento inclusivo da UnB, por meio de suas ações afirmativas, temos hoje negros e indígenas ocupando os lugares de formação nos espaços universitários. Mas incluímos nesses espaços o conhecimento que promovem, as epistemologias que memorializam? Suas narrativas são reais, registra Catherine Fonseca Coutinho (Oralituras Munduruku: As histórias contadas e a justiça cognitiva. Projeto de Qualificação de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020), com Daniel Munduruku, sua fonte direta: “Elas aconteceram de verdade e marcaram profundamente o modo de ser do meu povo. É por causa da repetição constante dessas histórias que esse povo relembra seu sentido de existir e permanece atuante e lutando pelo direito de viver. É assim que damos sentido e valor à nossa existência”. Mas elas têm lugar nos arranjos pedagógicos do conhecimento que entre nós é compartilhado?

Voltamos a Catherine Coutinho, nesse ponto, já que ela insiste em lembrar que sem a atenção a essas fontes de conhecimento “o Brazil mata o Brasil” (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598670-o-brazil-esta-matando-o-brasil)  conferindo com Krenak a lição  por ele “ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”.

 

Resgatar a casa comum, recuperar a corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. Contar histórias é condição para adiar o fim do mundo. Questão de Justiça (Cognitiva).

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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