Lawfare e Neoliberalismo no Brasil: um Estudo sobre a Operação Lava Jato.

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Leonardo Cunha de Britto. Lawfare e Neoliberalismo no Brasil: um Estudo sobre a Operação Lava Jato. Tese apresentada e defendida no Programa de Pós-graduação em Direito da UnB – DINTER – da Universidade de Brasília com a Universidade Federal do Acre. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2024, 310 fls.

 

A Tese foi apresentada, defendida e aprovada pela Banca Examinadora, formada Professores e Professora Alexandre Bernardino Costa – UnB, Orientador; Larissa Liz Odreski Ramina – UFPR; Ermicio Sena de Oliveira – UFAC; Argemiro Cardoso Moreira Martins – UnB e eu próprio.

Ela consiste, conforme seu resumo, em expor e caracterizar:

A prática conhecida como lawfare – o uso do direito como arma de guerra – tem suscitado debates tanto na sociedade quanto nos meios acadêmicos. No caso brasileiro, a Operação Lava Jato, notadamente, em sua ação contra Lula se constitui em um estudo de caso para evidenciar cientificamente tal fenômeno. Observado em suas tipologias militar, social e política, o lawfare apresenta uma dimensão instrumental, voltada à desestabilização, deslegitimação e destruição de inimigos políticos. Já em sua dimensão estrutural, o lawfare se apresenta enquanto elemento conformação de uma ordem baseada na racionalidade neoliberal. No Brasil, em um contexto de guerras híbridas latinoamericanas, capitaneadas pelos interesses geopolíticos estadunidenses, o lawfare, teve na Operação Lava Jato o seu principal vetor, constituindo-se em um importante ator político no cenário nacional, contribuindo decisivamente para o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e para a proscrição eleitoral de Lula e, via de consequência, para ascensão ao poder de Temer e Bolsonaro, com suas agendas de reformas neoliberais, calcadas no programa “Uma Ponte para o Futuro”. Assim, a Lava Jato veio a se constituir em um elemento central para a expansão e consolidação do neoliberalismo no país.

A partir do resumo, têm-se que a tese propõe um estudo de caso com foco na Operação Lava Jato e sua utilização, para fins políticos de táticas típicas da prática de lawfare. Desse ponto de partida o Autor sustenta os requisitos de atualidade, relevância e originalidade de seu estudo, assentado em duas dimensões, instrumental e estrutural.

Em sua dimensão instrumental como: conduções coercitivas ilegais, escolha da jurisdição favorável, vazamentos e omissão de informações, prisões cautelares visando obter delações, uso de provas ilegais, escutas ilegais de escritórios de advocacia e da então presidente da república Dilma Rousseff, ações ou omissões táticas visando blindar atores políticos aliados ou influenciar tribunais, uso de ações secretas da Receita Federal em investigações, a criação de um suspeito fundo bilionário e, sobretudo, a ação coordenada entre juiz e acusação.

Esse conjunto de ações voluntaristas e ilegais de agentes das instituições judiciárias, sustenta o Autor, contou com o apoio de tribunais superiores, do Departamento de Justiça (DOJ) e outras agências estadunidenses e obedeceu aos interesses do mercado internacional do petróleo, de movimentos políticos ligados à direita e à extrema-direita brasileira e de fortes setores da mídia, que exercem grande influência sobre a opinião pública nacional e internacional.

Já do ponto de vista da dimensão estrutural do lawfare, o que se viu no Brasil após o golpe parlamentar de 2016, com a ascensão de um governo que se instalou com um programa de extrema-direita, consumou-se uma verdadeira destruição das bases democrático-sociais da Constituição Federal de 1988 e a tentativa de consolidação do neoliberalismo no Brasil, que teve como base principal o programa “Uma Ponte para o Futuro”, cujo principal mecanismo foi a Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o teto de gastos, inviabilizando diversas políticas sociais, como educação, saúde e assistência social.

A análise do lawfare nas ações da Lava Jato enquanto ação política em curso no meio jurídico nacional, afirma o Autor, contribui ainda para questionar de forma crítica as instituições nacionais que, na prática, deveriam garantir direitos fundamentais, mantendo com isso a vida democrática em perfeito fluxo.

Portanto, não se trata apenas de um estudo de caso específico, da análise hermenêutica ou de mérito de decisões judiciais, mas das conexões da ação política articulada nacional e internacionalmente influenciando o próprio sistema jurídico nacional, apresentando a vulnerabilidade de seus sistemas de controle, que deveriam ser inibidores à eventual prática do lawfare – prática, por essência, autoritária.

Para o Autor, o debate sobre o lawfare é ainda incipiente no meio acadêmico, carecendo de maior aprofundamento teórico. Assim, a pesquisa poderá contribuir significativamente para aprofundar o debate acerca dos aspectos teóricos do instituto, bem como melhor identificar esclarecer o sistema jurídico brasileiro acerca do uso das instituições judiciárias para a deslegitimação, desestabilização e eliminação do inimigo político, bem como para a prática de lawfare de forma estruturante.

Assim, segundo o Autor, de um ponto de vista geral, o tema a ser estudado tem imensa importância para o aperfeiçoamento teórico tanto no âmbito da ciência do direito quando da própria ciência política. Uma de suas contribuições, em particular, será a de chamar a atenção da academia, da comunidade jurídica e das instituições do estado brasileiro para a prevenção de tais práticas.

O Autor tem consciência de que o aprofundamento do estudo por meio de tese doutoral pretende levar a sugestões de modificações na realidade jurídica do país, tanto do ponto de vista legislativo, em relação à atuação das instituições, dos sistemas de controle, quanto das normas deontológicas que regem a atuação das diversas profissões jurídicas em sua atuação no sistema judiciário brasileiro. Com essa consciência busca responder ao seguinte problema: em que medida a prática conhecida como lawfare, que no Brasil teve como principal instrumento a Operação Lava Jato (OLJ), contribuiu para a expansão do neoliberalismo no país? Nesse sentido, surgem no horizonte duas hipóteses, que não se excluem e que podem ser verificadas ao longo do trabalho de pesquisa: a) no caso brasileiro, o lawfare, que teve como principal instrumento a Operação Lava Jato, teve um papel decisivo para deslegitimação, desestabilização e tentativa de aniquilamento dos inimigos do neoliberalismo – representados sobretudo, por Lula -, que historicamente, constituiu-se, como resistência à implantação do neoliberalismo no país. Tal processo e sua dinâmica política veio a resultar na realização do golpe parlamentar de 2016 e na inabilitação eleitoral do ex-presidente Lula na eleição presidencial de 2018, contribuindo por consequência, para uma forte expansão das políticas neoliberais no país; b) Em sua dimensão estrutural, o lawfare se constituiu em um componente estrutural fundamental para a expansão e consolidação do neoliberalismo no Brasil, por meio de mudanças constitucionais e infraconstitucionais que aprofundaram políticas de austeridade e o desmonte das políticas sociais, e, via de consequência, resultaram na desconstrução dos marcos da Constituição de 1988.

Com esse intuito, o Autor desenvolve uma rigorosa articulação do que ele denomina conceitos-parâmetros (p. 20), desdobrada em duas narrativas distintas de enunciação teórico-empíricas que se complementam: a narrativa exterior que serve à explicação do papel decisivo que teve o lawfare no caso brasileiro, no período compreendido entre 2013 e 2022, em um contexto de guerra híbrida, faz-se necessário adotar duas linhas de perspectivas teóricas acerca do lawfare.

A primeira,  leva em consideração sua dimensão instrumental, visando explicar, sobretudo, a ação da Operação Lava Jato, que resultou, tanto em um processo de enfraquecimento, deslegitimação quanto na tentativa de aniquilamento do inimigo político, com o cerco à esquerda resistente ao neoliberalismo, derrubada golpista do governo Dilma, condenação, prisão e inabilitação do ex-presidente Lula no processo eleitoral de 2018 e a ascensão da extrema-direita, herdeira da ditadura cívico-militar brasileira.

Nessa perspectiva instrumental, são analisadas as diversas tipologias do lawfare, sobretudo nem suas tipologias militar, social e política, na qual algumas construções teóricas têm centralidade. A primeira, com autores como Dunlap Jr e Orde Kittrie, nesse caso, com a transposição da classificação de lawfare instrumental e lawfare de alavancagem de conformidade do campo militar para o campo político; a segunda, com Siri Gloppen e sua teoria do lawfare para a luta social; e a terceira, com autores que tratam da perspectiva do lawfare enquanto uso do direito para, estrategicamente, deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo político, como a teoria do lawfare enquanto objeto da ciência da estratégia defendida por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, e a perspectiva do lawfare enquanto prática do “Vergonhoso Direito Penal”, do professor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni. Para relacionar o lawfare instrumental ao neoliberalismo utilizaremos a perspectiva teórica da escolha da guerra civil neoliberal, presente na perspectiva de Laval, Dardot, Guéguen e Lauvêtre.

Já na segunda linha de perspectiva teórica, que compreende a dimensão estrutural do lawfare enquanto elemento estruturante para a expansão e consolidação do neoliberalismo no Brasil, utilizamos como teoria de base a racionalidade neoliberal, dos autores Christian Laval e Pierre Dardot.

A segunda linha se desenvolve no uso muito adequado e preciso de notas de roda-pé, fundamentais para a fixação dos termos de referência do diálogo de conhecimento que o trabalho analítico conduz.

Todo esse material está distribuído com pertinência e continuidade nos capítulos que estruturam a tese. No primeiro capítulo, o Autor apresenta os aspectos etimológicos, antecedentes, aspectos conceituais sobre o lawfare, suas tipologias militar, social e política, bem como sua relação com outras práticas, como as guerras híbridas, para ao fim, definirmos parâmetros comuns que podem servir de base para a identificação da prática de lawfare pela OLJC.

No segundo, apresenta a prática de lawfare ao neoliberalismo, a partir da sua relação com a racionalidade neoliberal e sua perspectiva de guerra civil. Nesse sentido, faz uma apresentação dos fundamentos teóricos da racionalidade neoliberal e de sua perspectiva de guerra civil situando, no caso estudado, o lawfare como arma de guerra neoliberal e sua dimensão estruturante para a conformação de uma ordem neoliberal.

No terceiro capítulo, busca identificar, partindo dos parâmetros estabelecidos no primeiro capítulo, que caracterizam a prática de lawfare, se a atuação da OLJC, no caso Lula, constitui-se em uma prática de lawfare.

Por fim, no quarto capítulo, dá como verificado que – ao menos sob a sua perspectiva autoral – a prática de lawfare, tanto em sua dimensão instrumental, quanto estrutural, contribuíram para a expansão do neoliberalismo no Brasil. Para tanto, analisa a ação da OLJC enquanto agente político e as dinâmicas decorrentes dessa condição, que permitiram com que, por meio da prática de lawfare instrumental contra Lula, fossem construídos cenários para a prática de lawfare estrutural, por meio da implementação do programa “Uma Ponte para o Futuro”.

É certo que numa mirada retrospectiva, desde que com o cuidado de não visualizar o pretérito com as lentes do presente e com as projeções de futuro, é possível distinguir e política de meios para estabelecer fins na lógica da guerra (como o faz Brito lendo Clausewitz), ou como podemos fazê-lo, na leitura de O Príncipe. Aos amigos, exceções e favores. Aos desconhecidos e inimigos, nada além do que o rigor da lei (os príncipes devem atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça). O dito, se não se deva a Maquiavel, conforme em geral lhe é atribuído, é também dito de Getúlio Vargas, tal como é difundido entre nós.

E cada vez se prestando a outros alcances. Paulo César do Vale Madeira, Juiz de Direito, ex-Juiz membro do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá, Mestre em Direito Constitucional pela UnB (Programa Interinstitucional UnB/Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá). Marketing Eleitoral Predatório: é preciso reagir. O autor não usa a expressão lawfare, mas descreve com a sua experiência de juiz eleitoral, uma forma acentuada de novos mecanismos usados por autocratas ou por líderes populistas para minarem a democracia, fugindo dos clássicos golpes militares, como os ocorridos no Brasil e no Chile, com o emprego de mecanismos de desmoralização da democracia foram potencializados pelo fenômeno das redes sociais, uma das transformações mais impactantes na sociedade atual, gerando diz ele,  o grande problema, com implicações criminais, que é o proveito político eleitoral para o provocador, que logra suprimir os debates de ideias, para que as notícias ênfase nos atos de violência física e moral entre candidatos, suas posturas performáticas. O ponto de vista sustentado no artigo é o de que práticas predatórias nas redes, reiteradas nos debates, com o objetivo de tirar proveito político a partir da desmoralização das instituições democráticas, gerando “notícias” nas redes sociais e até na imprensa profissional, justifica a atuação do Ministério Público e do Estado-Juiz para instauração de procedimento voltado para a exclusão do predador da corrida eleitoral, que deve seguir regras e princípios, preservando a dignidade da pessoa humana (https://edicoes.diariodoamapa.com.br/2024/set/26/4/).

Nessa mesma lógica pode-se situar a resposta conservadora que Nelson Rockfeller, indicou em 1969, no relatório sobre o estado da Aliança para o Progresso e a política dos EUA na América Latina que lhe fora encomendado pelo recém-eleito e empossado presidente dos EUA, Richard Nixon. Nelson Rockefeller uma liderança do Partido Republicano de Nixon e, na época, governador do estado de Nova York (no final da Segunda Guerra Mundial serviu no Departamento de Estado dos EUA como o líder da divisão responsável pelas relações latino-americanas) traçou diretrizes para calçar a intervenção do imperialismo, em novos moldes de guerra, guerra às drogas, guerra ao terrorismo e guerra contra a teologia da libertação (https://patrialatina.com.br/relatorio-rockefeller-sobre-as-americas-e-as-desgracas-que-nos-assolam/). Sabemos como opera essa lógica, que não se apoia em invasões militares, em golpes armados, mas que combina articulação jurídico-judiciária (sistemas de segurança) e religiosa (teologia da prosperidade, teologia do domínio, neopentecostalismo), incluindo a formação e ideologização de quadros desses sistemas (caso de integrantes das forças-tarefas do lavajatismo e dos meios de comunicação convocados para a guerra de narrativas), no sofisticado repertório do lawfare.

Por todas as aproximações ao tema que vêm se colecionando nos últimos dez anos, não exagero em constatar que o trabalho de Larissa Ramina, presente na banca, juntamente com Carol Proner, mobilizando um pugilato de juristas integrantes de coletivos altamente mobilizados tem sido determinante para o resgate do utópico e de reservas democráticas que o institucional do Direito vem enfrentando engolfado no perigo do lawfare, e que agora, aos poucos vai se recompondo para preservar a democracia, o sistema de justiça e o processo eleitoral que quase se deixara capturar pelo fascismo e pela exceção, quando surto autoritário assaltou o país e o povo brasileiro, na conjuntura, tal como descreve Leonardo de Brito.

De Carol Proner em co-organização com Gisele Cittadino, acaba de ser lançado o livro 10 anos da operação lava jato: A desestabilização do Brasil, Canal 6 Editora, editada com o apoio de um conjunto de entidades sindicais, entre elas a CUT, com o objetivo, segundo o anunciado pelos organizadores de “revisitar a Operação Lava Jato e seus principais eventos passa a ser um dever, se queremos efetivamente entender as graves consequências produzidas no campo político, econômico e jurídico. No plano da política, os estudos de lawfare denotam o uso do direito como forma estratégica de perseguir adversários, agora transformados em inimigos, estratégia programática que vem sendo aplicada com o auxílio da extraterritorialidade e da colaboração internacional em matéria de combate à corrupção. No plano da economia, a Lava Jato foi responsável pela desarticulação da cadeia produtiva nacional na área da construção civil e da engenharia, bem como de óleo e gás e de outros setores estratégicos. No plano jurídico, o lavajatismo tornou-se referência de uma cultura de autoritarismo judicial que, em colaboração com meios de comunicação e a sensibilização da opinião pública, produziu verdadeiros processos de execração pública com julgamentos antecipados e ilegais contra pessoas, grupos empresariais públicos e privados, servidores públicos em geral, agentes estatais, políticos de modo geral, inaugurando uma nova forma de criminalização da política o país. Com uma extensa gama de autores, a obra revisita a operação que desestabilizou o Brasil”.

Sob uma perspectiva que colhe da percepção sindical esse aspecto de desestabilização, consequência da intensificação solapadora da lógica neoliberal, essa é também a perspectiva de Leonardo de Brito, quando põe em causa para a sua interpretação, a injunção da agenda do neoliberalismo.

Essa perspectiva chega a ser configurada como conspiratória, conforme mostra outra obra recente, de Luis Nassif,  “Conspiração Lava Jato“. Tive a oportunidade de participar com Nassif da apresentação do livro em Brasília, na qual ele explica a obra em seu diversos ângulos, e o emaranhado por trás do impeachment, com a Lava Jato sendo apenas um desfecho de um cenário mais amplo. A intenção do autor é promover um diálogo sobre os múltiplos aspectos geopolíticos abordados na obra, incluindo o papel do crime organizado, do STF, da PGR, das Forças Armadas e de setores evangélicos, oferecendo uma visão abrangente da história recente do Brasil. (cf. em https://www.youtube.com/watch?v=1NPuKoCoriE).

Volto à obra que Larissa Ramina (Org). Coleção Mulheres no Direito Internacional. Volumes IV, V e VI (co-organizador VI Lucas da Silva de Souza). Lawfare. Guerra Jurídica e Retrocesso Democrático. Curitiba: Editora Íthala, 2022. Vol. IV, págs. 1-470 p; vol. V, págs. 471-686; vol. VI, 303 p. Disponível também em e-book (https://estadodedireito.com.br/lawfare-guerra-juridica-e-retrocesso-democratico/).

Eu próprio, a convite de Larissa Ramina, contribui para um dos volumes da Coleção (Volume III, Carol Proner: Intelectual e Militante da Democracia, da Justiça e dos Direitos Humanos) e, posteriormente, elaborado uma recensão para esta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/).

E, de certo modo, retomo minha contribuição ao livro Relações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394; https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes.

Na minha abordagem – https://estadodedireito.com.br/relacoes-indecentes/ – conquanto a Lava Jato,  comece a se revelar como  um dos episódios mais característicos da história recente do Brasil, com enorme retrocesso nas lutas sociais por cidadania e direitos no que serviu uma grande aliança das elites no poder, dos mídia, e de uma boa parte do sistema judicial,  a ponto de muitos o considerarem degradado, em face de gritantes ilegalidades, o simbólico da luta contra a corrupção que ela logrou instituir, começa a deixar à mostra os seus desvios e a necessidade do conhecimento processual e os meandros que permitam identificar os casos de irregularidade e o contexto jurídico e político de como tudo isso se processou.

Presente na obra, a convite de Wilson Ramos Filho, elaborei o texto Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices, a tanto me instigou o quadro de degradação funcional, sobre o qual, aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, tenho me manifestado.

Pus em causa, no texto, que em todo esse processo, o engendramento funcional para conduzi-lo e as motivações dos agentes que o armaram, aos poucos vai-se desnudando e expondo aqueles que se disfarçaram com a aparente institucionalidade, especialmente aquele homem que, logrando transmitir, com o que já tem como exagero, o passo de uma ação jurídica regular ocultando o caráter político da Lava Jato, desde o momento em que aceitou ir para o ministério do esquema beneficiado conforme a lógica e os objetivos do poder que se instalou com seus mais obscuros compromissos.

Trata-se de uma tarefa, mediada pela metodologia afluente da invenção democrática, pela afirmação de espaços participativos e de controle social da racionalidade burocrático-estatal e pela instrumentalidade dos direitos humanos, eis a exigência da conjuntura. Conforme lembramos Renata Carolina Corrêa Vieira e eu próprio em publicação recente, com a Constituição e a Democracia bloqueadas – https://odireitoachadonarua.blogspot.com/2019/09/que-se-vayan-todos.html?spref=fb&fbclid=IwAR3J6CY0_ibbfWipYiRitatWKHh_56F-FO7bRJ9GlfoiWaEggY7vZBviNiE – hoje no Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Julgavam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça.

Já não são agentes da cidadania e da justiça, mostram os registros, são justiceiros. Não seguem o Direito, querem fazer justiça pelas próprias mãos. Não promovem a dignidade garantista do devido processo legal, lincham. E vão amealhando moedas com isso.

Por fim, numa conjuntura de lawfare, com táticas jurídicas no contexto de guerras híbridas, penso que um tanto desse apelo se expressou sob a forma de uma derivação performática, sacrificial, ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo, e que na tese é figurado, com base em Eugenio Raúl Zaffaroni, como prática de um vergonhoso Direito Penal. Para Leonardo de Brito, esse processo serve para relacionar o lawfare instrumental ao neoliberalismo, no plano estrutural, cujo ponto mais agudo de inflexão se deu com o afastamento da Presidenta da República Dilma Rousseff e a prisão de Lula da Silva, como modo de impedir a sua candidatura à Presidência da República.

Explica também o esgarçamento institucional em curso no Brasil e em outros lugares do mundo. Esse desvio esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).

Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo  é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva,  revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão.  Em texto precioso, ele  traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial  para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente: “Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”.

A tese de Leonardo de Brito é forte na originalidade de configurar o lawfare numa dimensão estrutural que o configura como uma estratégia que o neoliberalismo constrói para confrontar e aniquilar ou imobilizar seus inimigos (o socialismo, a social-democracia, as políticas keynesianas, o sindicalismo, os movimentos sociais, o movimento ecológico), enquanto engendra o seu modo de governar.

O direito tem um papel central, estrutural no neoliberalismo. O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. Por essa perspectiva, o neoliberalismo consiste no conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.  O direito é importante para a governamentalidade neoliberal pois é instrumental para um novo intervencionismo não tem como escopo a redistribuição, mas de criar uma segurança para as forças do mercado. Trata-se de uma ordem de mercado construída ou dando suporte ao caráter espontâneo do mercado.

O combate aos adversários constitui um pilar político do neoliberalismo. A decisão de engajar em uma “guerra civil” é um ato definidor. Dentro desse cenário de conflito, o neoliberalismo articula de maneira estratégica uma série de discursos, práticas e mecanismos de poder. O objetivo é estabelecer um novo quadro político, alterar as normas que regem a economia e transformar as relações sociais, com o propósito de impor seus objetivos.

 Neste sentido, Alexandre Bernardino Costa, orientador da tese, busca estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19. Em um texto estruturado em cinco partes, o autor analisa o contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como a correlação entre democracia, autoritarismo e neoliberalismo. Busca demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e saúde – como uma economia desumana – a qual foi agravada por uma pandemia e por uma sociedade profundamente desigual. Essa relação está bem documentada em vários estudos atualmente desenvolvidos em seu exercício acadêmico. No interesse da tese, menciono Desigualdade, Crise Sanitária e Direitos. Alexandre Bernardino Costa e Claudiane Silva Carvalho (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, também em formato ebook (https://www.amazon.com.br/dp/B098FDSFPX/ref=cm_sw_r_wa_awdb_WNFDFWZJZ1GDG18EDXAH). Epub 1860kb. E, para mais referências à obra, minha recensão em https://estadodedireito.com.br/desigualdade-crise-sanitaria-e-direitos/.

Em que pese uma certa remissão na mobilização do direito, sobretudo a partir do julgamento, quando o STF declarou a anulação das condenações do Presidente Lula e a suspeição do juiz Sergio Moro e de todo o procedimento judicial da lavajato e, no contexto da pandemia da Covid-19, uma postura de reconhecimento de um certo estado de coisas inconstitucional, em face das iniciativas do social e do mundo do trabalho, confrontando o capital e o aparato neoliberal para defender a vida (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs) Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia, vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), o STF permanece como um tribunal neoliberal, fiel às diretrizes do Banco Mundial que financia reformas e modernização do sistema de justiça, com o pressuposto de a justiça está na garantia da estabilidade dos negócios (RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a Reforma da Justiça no Brasil e suas Contribuições para uma Análise Geopolítica da Justiça na America Latina. Brasília: Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018.), quando ele se faz mais porteiro do que guardião da Constituição no que ela poderia se realizar como garante dos direitos direitos humanos (Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018 – https://estadodedireito.com.br/porteiro-ou-guardiao-o-supremo-tribunal-federal-em-face-aos-direitos-humanos/.

Sobre essa perspectiva do STF como um tribunal neoliberal, na sua orientação de engajamento  com a governamentalidade, veja-se também, Thiago Arruda Queiroz Lima em tese defendida no programa interinstitucional de doutorado UnB/UFERSA, aliás, sob a orientação do professor Alexandre Bernardino Costa (a tese transformada em livro, intitulado “Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como Custo”, publicado pela Editora Lumen Juris, em 2020); e, no mesmo sentido, Caio Santiago Fernandes Santos. Supremo Tribunal Federal e Neoliberalismo: uma análise do período pós-1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021(https://estadodedireito.com.br/supremo-tribunal-federal-e-neoliberalismo/).

Leonardo, na conclusão, refere ao cenário que se formou a partir daí se apresentou com imensa complexidade, trazendo a atuação intensa e influente de novos atores, como o Ministério Público e o Poder Judiciário e de uma extrema-direita nostálgica da ditadura militar, em uma dinâmica própria com a mídia e os movimentos de contra-público das redes sociais.

Para ele, “esse processo se mostrou desafiador paras as instituições brasileiras, gerando uma profunda crise, que teve seu ápice com a tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado democrático de direito, ocorrida em 8 de janeiro de 2023. Mesmo com a reação das instituições, ela persiste até os dias atuais. O desafio do fortalecimento das instituições republicanas e da democracia abalada persiste como um tema central na agenda brasileira”.

Em que pese uma certa remissão na mobilização do direito, sobretudo a partir do julgamento, quando o STF declarou a anulação das condenações do Presidente Lula e a suspeição do juiz Sergio Moro e de todo o procedimento judicial da lavajato e, no contexto da pandemia da Covid-19, uma postura de reconhecimento de um certo estado de coisas inconstitucional, em face das iniciativas do social e do mundo do trabalho, confrontando o capital e o aparato neoliberal para defender a vida (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs) Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia, vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), há condições reais para vencer esse desafio e trazer o direito, o sistema de justiça e o STF para a posição que a Constituição de 1988 lhe assinalou (O Desenho Constitucional da Desigualdade. Antonio Moreira Maués. 1ª edição – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, https://estadodedireito.com.br/o-desenho-constitucional-da-desigualdade/)?  Ou esse é um esforço baldo, e o social terá que se movimentar por si, nós por nós, com um STF que permanece como um tribunal neoliberal, fiel às diretrizes do Banco Mundial que financia reformas e modernização do sistema de justiça, com o pressuposto de a justiça está na garantia da estabilidade dos negócios, quando ele se faz mais porteiro do que guardião da Constituição no que ela poderia se realizar como garante dos direitos direitos humanos?

Há horizonte, ao menos utópico, na contracorrente dos ensaios de austeridade em curso aqui e alhures apoiados por golpes institucionais e juridicidades de exceção, para vislumbrar, com Antonio José Avelãs Nunes (Neoliberalismo & Direitos Humanos, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2003), que “o projecto neoliberal está condenado ao fracasso (p. 121) e que já é possível pensar em alternativas credíveis de um mundo de cooperação e de solidariedade, um mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes de planeta (p. 122)” – https://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/?

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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