Futuro Ancestral

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Ailton Krenak. Futuro Ancestral, 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, 122 p.

                         

         A Companhia das Letras, que tem feito a edição sucessiva de escritos de Ailton Kernak, mais uma vez nos brinda com essa primorosa e necessária edição de nova obra do autor, Futuro Ancestral. Anunciando o livro em sua página, a Editora indica “esta nova coleção de textos, [com os quais] Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento”.

            Essa consigna está contida na descrição da obra, oferecida pela Editora, na qual se destaca que “a ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras, ela se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em ambos os casos, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”.

            São referências que se enquadram na composição do escritor Muniz Sodré, que confirma: “Ailton Krenak é um filósofo originário: desentranha do pensamento indígena uma forma que os ocidentais se habituaram a reconhecer como ‘filosofia’ e a confronta, à medida que também a aproxima, com os modos especulativos europeus e outras.

            A chave de leitura dos textos que compõem o livro é oferecida pelo próprio Autor:

Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa:

Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido do que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: ‘Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente’.

 Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios.

O sumário organiza incursões que o Autor faz no tempo ancestral em evocações que dão essa medida de maravilhamento: “saudações aos rios”; “Cartografias para depois do fim”; “Cidades, pandemias e outras geringonças”; “Alianças afetivas”; “O coração no ritmo da terra”. Esse material, produzido pelo Autor em diversas circunstâncias e em diferentes auditórios e tantas interlocuções, foi trabalhado (pesquisa) e organizado (edição), por Rita Carelli. Para esse trabalho, leal à oralitura do grande pensador, diz a organizadora:

A ideia de futuro por vezes nos assombra com cenários apocalípticos. Por outras palavras, se apresenta como possibilidade de redenção, como se todos os problemas do presente pudessem ser magicamente resolvidos depois. Em todo caso, as ilusões nos afastam do que está ao nosso redor. Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, Ailton Krenak nos provoca com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que demove o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: ‘Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui’

De que outro modo será possível abrir diálogo sobre a origem do mundo senão a partir da cosmovisão dos povos, dos Yanomami, conforme indica Suliete Baré (O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ). Dissertação de mestrado submetido ao Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, como requisito para a obtenção de Grau de Mestre em Direitos Humanos. Brasília: Universidade de Brasília, 2022, cf. em http://estadodedireito.com.br/29767-2/); de modo abrangente, para compreender a importância do território para o povo, e abordando o respeito com a natureza, cf. Catherine Fonseca Coutinho (http://estadodedireito.com.br/literaturas-munduruku-as-historias-contadas-e-a-justica-cognitiva/), numa leitura atenta de Gersen Baniwa, Davi Kopenawa e Ailton Krenak.

Vali-me desse maravilhamento invocável, ao me deparar com a exigência de indignação em face do genocídio em cursos contra o povo Yanomami (https://www.brasilpopular.com/pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima/). No texto, recuperei entrevista de Davi Kopenawa (https://www.ihu.unisinos.br/625951-parem-de-mentir-lider-yanomami-dario-kopenawa-critica-militares-e-rebate-bolsonaristas), de onde anotei seu questionamento às 570 mortes de crianças de seu povo “por causa de invasores [que receberam] apoio logístico do governo passado, eu não estaria falando com vocês [da imprensa]. Eu não estaria falando na rede, mostrando minha cara. Eu ficaria na minha aldeia, cuidando dos meus parentes, trabalhando. Ia colocar as roças, ajudar meu povo sem problema” avisando que vão“continuar criticando o governo passado, porque eles têm responsabilidade. Eles têm que responder na Justiça pelo que eles não cumpriram, não respeitaram a legislação brasileira. Não pode falar mentiras nas redes sociais e nos jornais. Eles têm que responder na Justiça pelo erro, pela gravidade e pela negligência. Eles mataram 600 [mil brasileiros na pandemia]. Isso significa massacre, que é o genocídio. Não cuidaram da população brasileira. Eu quero que a justiça seja bem dura. A Justiça tem que cumprir, e essas pessoas têm que ser presas”.

E, para afirmar a minha conclusão sobre tipificar o genocídio, afirmei que sim, pode-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Pois nos vemos diante deu uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. E arrematei: “Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação que um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que cabe preservar”.

Com efeito, de minha parte constato que tudo que leio de Ailton conduz a projetar uma humanidade que se realize num movimento de “aproximação da antiguidade” a partir da qual se projete o futuro ancestral. Ao menos foi assim que referi no evento que culminou com a outorga, pela Universidade de Brasília, do título de Doutor Honoris Causa a Ailton Krenak, quiçá querendo contribuir para o “adiamento do fim do mundo”, na medida em que, com esse gesto, se demarca posição institucional de defesa incondicional dos direitos humanos, em especial de reconhecimento e valorização da pluralidade das formas de pensar e viver dos povos, bem como de seu engajamento no enfrentamento dos grandes desafios do nosso tempo, como o da sustentabilidade.

No meu parecer que lastreou o acolhimento da proposição originária do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (CEAM), subscrita por mim e pela professora Vanessa Castro, e também por Marilena Chauí e Boaventura de Sousa Santos, ambos Doutores Honoris Causa da UnB, o título que propus foi: AILTON KRENAK: “Terra e Humanidades Caminhando Juntas”.

Terra e Humanidades, assim mesmo no plural, é o que traz Ailton Krenak, com a sua lição “ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”.

Fiz esse registro em http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/, lembrando que, para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

Futuro Ancestral prossegue o itinerário que Muniz Sodré identifica na oralitura de Krenak, enquanto “experiência de romper o espaço entorno em busca de algo que ainda não se conhece, mas se pressente. É uma viagem com o transe da paixão pela descoberta”. Com Ailton, diferentemente do Meandro o rio que se prorrogou em metáfora apolínea para pensamentos que se enroscam em sinuosidades penosas, o “Watu e os outros rios de que fala Krenak, junto com seus seres, são entidades vivas, astutas o suficiente para mergulhar em busca de lençóis freáticos…para manter seu fluxo, ou mesmo sobreviver ao ecocídio tóxico dos detritos”, e que orientam o agir para adiar o fim do mundo.

Sob essa ótica (http://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/), Ailton já falava de uma humanidade fecundada numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reivificação  e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por essa antropofagia: “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (p. 44, de Ideias para Adiar o Fim do Mundo).

Trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/).

Trata-se, em suma, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas.

Retomo em Ailton, o seu próprio texto:

Comecei a questionar essa busca permanente pela confirmação da igualdade e atinei pela primeira vez para o conceito de alianças afetivas – que pressupõe afetos entre mundos não iguais. Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode entrar calçado. Assim eu escapei das parábolas do sindicato e do partido (quando um pacto começar a cobrar tributo, já perdeu sentido) e fui experimentar a dança das alianças afetivas, que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu despareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos. Só assim é possível conjugar o mundializar, esse verbo que expressa a potência de experimentar outros mundos, que se abre para outras cosmovisões e consegue imaginar pluriversos (Futuro Ancestral, p. 82-83).

Difícil visualizar e ter denotações discursivas para essa antevisão planetária, plurivérsica. Mas, numa lógica desformalizada, que se embrenhe na dialética do mundo e da existência, não é inusitado admitir essa possibilidade.

Lodo depois da publicação do livro O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, obra que reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre, a Autêntica preparou uma live, com a autora e os autores, para que apresentassem e expusessem as suas percepções a partir dos ensaios, convidando também a professora Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro/UFGD e do Centro de Referência em Direitos Humanos do Estado de Mato, para uma leitura crítica dos ensaios. Fui o moderador do debate.

  Divulgado amplamente nas redes de transmissão da plataforma youtube, a conversa, em toda a sua extensão e riqueza pode ser acompanhada pelo link https://www.youtube.com/watch?v=9gRuSpR8l7I (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua). Não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos na conversa o que logo se percebeu é existir mesmo uma complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação.

Aproveitei toda essa mobilização para dar conteúdo a uma recensão aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/). A minha conclusão ali, em face da obra e do debate, é o que trago para fecho de minha leitura de Futuro Ancestral, a partir da indicação de Ailton Krenak sobre a possibilidade de alianças afetivas

Certamente, cuida-se de pensar e discutir, como sugeriu Boaventura na conversa transmitida pela live, nas escolas, nas organizações, nas comunidades; de ler e escrever com os olhos dos outros, propõe Helena Silvestre, sem perder de vista, aconselha Cláudia Carvalho, a linha abissal que separa os mundos, dos visíveis e dos invisíveis, dos humanos e dos não-humanos, conforme o olhar da esquerda e da direita, dos fascistas e dos democratas; mas também, de pensar mundos, como diz Krenak.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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