Às vésperas da abertura oficial das comemorações pelos 20 anos do Jornal Estado de Direito, a diretora Carmela Grüne recebe, para uma conversa exclusiva, uma voz cuja trajetória encarna os valores que inspiram esta nova etapa: espírito crítico, pluralidade epistemológica e defesa incondicional da dignidade humana. Clarice Beatriz da Costa Söhngen tornou-se referência ao investigar como a linguagem jurídica faz e desfaz inclusões nos tribunais, ao denunciar a seletividade racial do punitivismo e ao coordenar o Projeto COSMOS, ponte inédita entre universidade, territórios periféricos e sistema de justiça.
Sua produção alia rigor acadêmico e sensibilidade estética: obras como “Criminologia visual” e “A gente combinamos de não morrer” acionam Conceição Evaristo e outras vozes historicamente silenciadas para iluminar o “não dito” das decisões judiciais. Em pesquisas sobre saúde mental de mulheres presas, audiências de custódia e racismo institucional, Clarice revela o impacto humano de estruturas que naturalizam a violência.
Nesta entrevista professora Clarice Beatriz da Costa Söhngen aborda:
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o hermetismo das sentenças e a potência de uma hermenêutica crítica;
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a normalização da violência estatal em periferias e prisões;
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os desafios de implementar práticas antirracistas no Judiciário;
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a extensão universitária como estratégia de transformação social;
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a literatura como antídoto contra o epistemicídio.
Ouvir Clarice Beatriz da Costa Söhngen é reafirmar o compromisso que fundou o Jornal Estado de Direito: conectar teoria e prática, centro e margem, texto e vida. É também projetar a celebração dos atos e ações que virão nos próximos vinte anos, convencidos de que um Direito verdadeiramente democrático nasce do encontro entre crítica jurídica, engajamento social e a escuta ativa dos rostos que a história tentou ocultar.
EIXO 1 – JUDICIÁRIO, LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO
1. Pergunta – Muitas vezes vemos decisões judiciais que impactam diretamente a vida das pessoas — como despejos, prisões ou guarda de filhos — mas são escritas de forma tão hermética que nem os próprios envolvidos entendem. A senhora que pesquisa linguagem e argumentação jurídica: o que essa forma de escrever e decidir revela sobre a cultura do poder no Judiciário brasileiro?
Resposta – A linguagem hermética no Judiciário brasileiro revela uma cultura que expressa a exclusão cognitiva e simbólica da maior parte dos jurisdicionados. Para além da técnica, é importante cuidar para não promover exclusões no ato da interpretação e da argumentação, evitando manter relações assimétricas de poder entre quem produz o conhecimento jurídico e quem é afetado por ele. O hermetismo linguístico pode funcionar como um dispositivo de distanciamento, transformando o direito em algo inacessível para os próprios sujeitos cujas vidas são impactadas pelas decisões.
2. Pergunta – O STF vem reconhecendo cada vez mais “violações estruturais” em temas como presídios, educação e saúde. Como a hermenêutica crítica pode ajudar a romper com decisões que apenas “administram a exclusão” sem transformá-la?
Resposta – É importante lembrar que uma posição crítica em relação à hermenêutica pode contribuir para desvelar as estruturas de poder subjacentes ao discurso jurídico, reconhecendo que toda interpretação do direito é situada histórica e politicamente.
O STF ao reconhecer violações estruturais em áreas complexas como sistema prisional, educação e saúde, possibilita para uma hermenêutica transformadora que nos desafia a pensar o direito não apenas como instrumento de resolução de conflitos, mas como ferramenta de transformação social, exigindo dos intérpretes um compromisso ético com a alteridade e com a emancipação.

EIXO 2 – SEGURANÇA PÚBLICA, POLÍCIA E SISTEMA PENAL
3. Pergunta – O caso da jovem Genivaldo de Jesus Santos, morto em uma “câmara de gás improvisada” por policiais rodoviários, chocou o Brasil. Como a sua pesquisa sobre subjetividade e punitivismo nos tribunais pode ajudar a entender como essas violências são toleradas pelo sistema?
Resposta – O caso de Genivaldo de Jesus Santos representa um marco da violência policial. As pesquisas têm evidenciado uma espécie de seletividade destas violências. Ou seja, a seletividade atende principalmente aos critérios de raça, classe e território.
Em muitos casos, a punição seletiva revela-se na desproporcionalidade estrutural quanto ao rigor aplicado a crimes praticados por pessoas pobres.
4. Pergunta – Nos seus estudos sobre facções e territórios, o que explica a falência das políticas públicas de segurança nos bairros periféricos, mesmo com altos investimentos policiais?
Resposta – Evidencia-se a falência das políticas de segurança em territórios periféricos apesar dos investimentos policiais. Os estudos sobre territorialidades e dinâmicas criminais apontam que não existe a compreensão estrutural das dinâmicas territoriais e sociais das periferias e que não existe uma conexão entre políticas de segurança e políticas públicas que promovam a educação, a moradia, e lazer, que também é essencial como política pública.
Também cabe destacar a importância da participação comunitária nas propostas conjuntas das políticas de segurança, pois não se mostram suficientes os investimentos direcionados em vigilância, por exemplo, sem atenção aos fatores sociais e estruturais.
5. Pergunta – Como o sistema de justiça lida com as disputas de poder entre Estado e grupos armados? Como o sistema de justiça pode ser mais eficaz na responsabilização de agentes estatais envolvidos em práticas abusivas?
Resposta – O sistema de justiça tem operado com ambiguidade nas disputas de poder entre Estado e grupos armados. Ao mesmo tempo, legitima intervenções violentas do Estado em territórios periféricos com a justificativa do combate ao crime organizado; e apresenta dificuldades em responsabilizar agentes estatais por práticas abusivas.
Para maior eficácia na responsabilização, é necessária uma transformação cultural no sistema de justiça que rompa com a naturalização da violência de Estado contra determinados grupos.
EIXO 3 – MULHERES, PRISÕES E RACISMO INSTITUCIONAL
6. Pergunta – Relatórios do CNJ destacam a precariedade no atendimento à saúde mental de mulheres presas. Como a senhora avalia a responsabilidade do Estado diante do sofrimento psíquico dessas mulheres?
Resposta – A precariedade no atendimento à saúde mental de mulheres encarceradas constitui uma grave violação de direitos humanos e revela as múltiplas punições impostas a elas. Para além da privação de liberdade, há lacunas nos tratamentos terapêuticos.
A Constituição da República Federativa Brasileira, bem como tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário, preveem a garantia pela saúde física e mental das pessoas sob a custódia do Estado. Entretanto, em muitos casos, este cuidado não é observado, o que resulta na intensificação de velhos sofrimentos e produção de novos sofrimentos.
As mulheres ingressam no sistema marcadas pelas interseccionalidades institucionalizadas. A maioria são mulheres negras, pobres e periféricas que vivenciaram violências que resultaram em sofrimento psíquico. Essa realidade se mostra agravada no cárcere especialmente pela separação dos filhos, condições precárias do espaço e até mesmo pelo uso de medicalização sem acompanhamento terapêutico adequado.
7. Pergunta – A decisão do STF sobre a inconstitucionalidade da prisão de gestantes e mães de crianças pequenas em determinadas condições trouxe avanços. Quais desafios ainda persistem na efetivação dessa decisão?
Resposta – A decisão do STF no HC coletivo 143.641 representou um marco importante no reconhecimento dos direitos das mulheres encarceradas e seus filhos. Mas cabe destacar que sua implementação enfrenta resistências, por exemplo: na interpretação restritiva dos julgadores com a inclusão de requisitos não previstos na decisão; a estigmatização social, ausência de políticas públicas às egressas que assegurem moradia, trabalho e assistência social.
Para além de mecanismos de fiscalização do CNJ, a efetivação plena da decisão exige uma transformação cultural no sistema de justiça que reconheça as especificidades de gênero e a centralidade do princípio do melhor interesse da criança nas decisões sobre prisão preventiva.
8. Pergunta – Como você avalia a efetividade das audiências de custódia diante da continuidade das prisões preventivas como regra e não exceção? O que as suas pesquisas revelam sobre o uso seletivo da prisão cautelar, especialmente em relação a pessoas negras, pobres e periféricas?
Resposta – As audiências de custódia têm apresentado efetividade limitada diante da continuidade das prisões preventivas como regra. Os dados mostram que pessoas negras, pobres e moradoras de periferias têm probabilidade significativamente maior de terem a prisão preventiva decretada, mesmo quando os fatos são similares aos de pessoas brancas e de classe média.
A valoração diferenciada dos antecedentes; a interpretação subjetiva do risco à ordem pública; a presunção diferenciada de inocência baseada em estereótipos raciais e sociais são recursos ainda utilizados para legitimarem as prisões preventivas e, portanto, intensificam o encarceramento e aprofundam as desigualdades raciais no sistema de justiça criminal.
9. Pergunta – Em decisões recentes, como no julgamento da constitucionalidade da Lei de Cotas, o STF reafirmou a necessidade de políticas antirracistas. Como você vê a atuação do Judiciário quando o racismo atravessa as prisões e os julgamentos?
Resposta – Apesar do reconhecimento formal pela constitucionalidade da Lei de Cotas, o racismo institucional no sistema prisional apresenta contradições. As cotas raciais representam um avanço nas decisões, mas ainda há dificuldades do próprio sistema de justiça em reconhecer suas práticas racistas estruturais. Por exemplo, o racismo evidenciado nas pesquisas estatísticas sofre apagamento nas decisões.
Esse cenário implica na resistência ao reconhecimento do racismo estrutural no sistema penal e na resistência para implementação de práticas antirracistas concretas no que tange a aplicação da lei penal. O incremento da formação antirracista continuada no Judiciário poderá contribuir muito para modificar esse cenário.
Um outro ponto a ser destacado é o número reduzido de magistrados negros, o que enseja políticas afirmativas na alocação das vagas para a magistratura.
EIXO 4 – DIREITO E LITERATURA NA VIDA REAL
10. Pergunta – Em textos como “Criminologia visual” e “A gente combinamos de não morrer”, a senhora usa obras de Conceição Evaristo e distopias para tratar de direito penal. Como usar literatura de forma pedagógica e política no ensino jurídico?
Resposta – As interfaces entre Direito e Literatura promovem deslocamentos que humanizam a prática jurídica e possibilitam um tratamento pedagógico e metodológico transformador no ensino jurídico. Assim, ao utilizar obras como as de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Eliane Marques, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Jr. a partir de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Abdias Nascimento, Cida Bento, Angela Davis e bell-hooks, é possível alcançar a humanização do outro, desconstruir para reconstruir categorias jurídicas pseudo neutras e quiçá alternativas críticas às estruturas arraigadas existentes.
A literatura também pode romper com o epistemicídio negro por meio das vozes marginalizadas até então; contando as experiências de justiça e injustiça que o direito puro não sabe enfrentar. Esta é proposta pedagógica complexa que nos desafia, pois cuidados metodológicos necessitam ser construídos para evitar a superficialidade deste tipo de abordagem.
11. Pergunta – O caso Mariana Ferrer gerou críticas à forma como o Judiciário trata mulheres vítimas. Como a perspectiva literária pode ajudar a visibilizar o “não dito” nos julgamentos?
Resposta – Os encontros entre Direito e Literatura promovem a abertura semântica e pragmática através de uma hermenêutica plural para visibilizar o “não dito” em julgamentos como o caso Mariana Ferrer. Eles possibilitam identificar as narrativas implícitas que estruturam decisões judiciais, especialmente nos casos de violência sexual.
A teoria literária também nos permite essa abertura para interpretar os textos jurídicos a partir do explícito em aprofundamento ao implícito e metaplícito. São presenças em aparentes ausências e silêncios. Uma análise literária do caso citado revela os estigmas especialmente de gênero que condicionam algumas categorias pré-determinadas, como o questionamento da fidedignidade do testemunho feminino; a estrutura do julgamento da vítima como contranarrativa que inverte papéis; a construção do tempo narrativo que fragmenta a experiência traumática, exigindo linearidade impossível; e o léxico da “honestidade sexual” que, mesmo abolido formalmente da lei, persiste como subtexto interpretativo.
EIXO 5 – ENSINO, EXTENSÃO E PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO
12. Pergunta – A senhora coordena o projeto COSMOS e outros focados no sistema prisional. O que o sistema de justiça ainda não compreendeu sobre o papel da extensão universitária em territórios de vulnerabilidade?
Resposta – Projetos como o COSMOS demonstram que a universidade pode atuar como mediadora entre comunidades marginalizadas e o sistema de justiça, construindo pontes epistêmicas e práticas. A extensão em territórios vulneráveis produz conhecimento jurídico situado, que emerge das experiências concretas de injustiça e das estratégias de resistência desenvolvidas pelas próprias comunidades. Este conhecimento questiona categorias jurídicas abstratas a partir da realidade vivida. Além disso, a extensão cria laboratórios de práticas jurídicas inovadoras, desenvolvendo metodologias participativas para efetivação de direitos que poderiam informar políticas públicas mais eficazes.
13. Pergunta – Considerando que a maior parte da população brasileira enfrenta algum tipo de vulnerabilidade — seja racial, econômica, territorial ou de gênero — por que o ensino jurídico ainda forma profissionais tão distantes dessa realidade? Quais experiências em projetos de extensão a senhora destacaria como exemplo do potencial transformador de um direito que olha para quem está nas margens do sistema?
Resposta – Em relação à resistência de parte da magistratura à presença de projetos universitários e organizações civis dentro das prisões, acredito que ainda precisa ser avaliada. Precisamos consolidar o entendimento sobre como a compreensão do espaço prisional pode ser uma extensão das decisões. No entanto, ainda urge observar que os espaços prisionais são os que mais necessitam de transparência e controle social.
Indubitavelmente, a participação da universidade e da sociedade civil organizada dentro das prisões trata de requisito democrático para um sistema penitenciário que respeite direitos fundamentais e a dignidade humana.
É interessante que o distanciamento entre a formação jurídica e a realidade de vulnerabilidade da maioria da população brasileira ainda permanece. Na sua grande maioria, o ensino jurídico reproduz uma tradição que forma profissionais do direito para atuar em um sistema de justiça apartado das experiências cotidianas da população vulnerável. Mas dentre as experiências transformadoras há laboratórios jurídicos, núcleos de prática jurídica que atuam na academia e junto à periferia, projetos de justiça restaurativa e programas e projetos de extensão no sistema socioeducativo.
ENCERRAMENTO
14. Pergunta – O Jornal Estado de Direito completa 20 anos promovendo o pensamento crítico e democrático. Como a senhora avalia a importância de espaços como este na construção de uma sociedade mais justa?
Resposta – Espaços como o Jornal Estado de Direito são fundamentais na construção de uma sociedade mais justa e oportunizam o contraponto ao pensamento jurídico hegemônico. Espaços como este promovem a reflexão acadêmica crítica, democratizando o debate sobre justiça e direitos.
Em um momento histórico marcado pela polarização e pelo enfraquecimento do debate público qualificado, publicações que mantêm compromisso com o pensamento crítico, plural e democrático tornam-se verdadeiros patrimônios da esfera pública.
A longevidade de 20 anos do Jornal demonstra não apenas sua relevância, mas a persistência de uma comunidade de leitores e colaboradores comprometidos com um direito a serviço da emancipação social. Este espaço contribui para a formação de juristas mais reflexivos e críticos que respondam aos desafios de uma sociedade profundamente desigual como a brasileira.
O Jornal Estado de Direito está de parabéns por sua trajetória e pela resistência em manter vivo um espaço de pensamento jurídico crítico no exercício legítimo da sua polifonia.
Clarice Beatriz da Costa Söhngen – Graduada em Direito e doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Clarice Beatriz da Costa Söhngen construiu uma carreira que entrelaça linguagem, poder e justiça. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e colaboradora do PPG em Filosofia, ela também coordena o Grupo de Pesquisa “Gestão Integrada da Segurança Pública” (CNPq) e ocupa a Coordenação de Desenvolvimento Acadêmico da universidade. Advogada militante e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS, Clarice participa ainda do Conselho da Diversidade do IBCCRIM, da Rede de Direito e Literatura e da Comissão Científica da Escola de Direito da PUCRS. Sua trajetória acadêmica — com mestrados em Linguística e Letras e em Ciências Criminais — reflete a vocação para o diálogo interdisciplinar. Nos estudos e na docência, dedica-se a temas como hermenêutica jurídica, diversidades, direito e literatura, metodologia jurídica e democracia, além de pesquisar políticas de segurança pública. Combinando rigor intelectual e engajamento social, Clarice se tornou referência nacional na crítica às formas excludentes de linguagem jurídica e na defesa de práticas antirracistas e de direitos humanos.