O Jornal Estado de Direito tem a honra de apresentar uma entrevista exclusiva com o pesquisador e jurista Veyzon Campos Muniz, cuja trajetória transita entre a academia, a gestão pública e o ativismo jurídico. Em uma conversa profunda e instigante, Veyzon compartilha reflexões sobre o Brasil contemporâneo, marcado por disputas de território, catástrofes climáticas e o avanço do racismo institucional.
Ao longo de quase uma hora de diálogo, conduzido por Carmela Grüne, são abordados temas centrais como:
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o papel do território como espaço de memória, identidade e resistência;
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os desafios da democracia brasileira diante da ausência de um processo real de justiça de transição;
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a necessidade de enfrentar a lógica punitivista da segurança pública;
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as contribuições das epistemologias negras, indígenas e periféricas para a construção de um sistema de justiça mais inclusivo;
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o protagonismo da juventude negra e periférica na reconstrução de um país mais justo.
Veyzon nos convida a enxergar o Direito não como neutro ou técnico, mas como um campo atravessado pelas realidades sociais, históricas e raciais que estruturam o Brasil. Sua fala é um chamado à ação e à reflexão: como transformar o Judiciário e as políticas públicas em instrumentos de justiça social e racial?
Esta entrevista integra o projeto do Jornal Estado de Direito de difundir conhecimento crítico, conectar o Direito à vida concreta e valorizar vozes comprometidas com a democracia, a memória e a luta por direitos. Boa leitura:
Bloco 1 – O Brasil profundo: racialização, território e políticas públicas
- Veyzon, você atua na interseção entre Direito, políticas públicas e justiça racial. Como interpreta o momento atual do Brasil, marcado por disputas de território, catástrofes climáticas e avanço do racismo institucional?
O momento atual do Brasil é um resultado direto dos descaminhos que o nosso país viveu e vive até hoje. Disputas por territórios, catástrofes climáticas e o avanço do racismo institucional não são fenômenos isolados. Eu posso dizer taxativamente que a reivindicação por territórios é consequência direta de roubos e ocupações, legitimados pelo Estado, com o seu aparato político e jurídico, de terras de populações originárias. A terra é hoje majoritariamente utilizada por um agronegócio predatório, baseado na construção de latifúndios, despreocupado com o uso sustentável dos recursos naturais, o que invariavelmente gera catástrofes climáticas. Com o acontecimento do sinistro, quem mais sofre é quem é estruturalmente mais vulnerável. A recuperação de populações atingidas pelo caos (quase sempre pretos e pobres) é dependente de políticas públicas efetivas e, mais do que isso, é dependente de decisões políticas atentas à superação de vulnerabilidades. Contudo, as mesmas instituições, donas do poder, que podem operar na erradicação do racismo, tendem a conservar suas próprias estruturas e posicionamentos usuais, se materializando como instrumento ativo de dominação de grupos não vulneráveis.
- Nos seus estudos, o território não é apenas geografia: é espaço de memória, identidade e resistência. Como pensar políticas públicas verdadeiramente antirracistas sem enfrentar as estruturas fundiárias e as ausências do Estado nos territórios racializados?
Na realidade, eu gosto de pensar que os meus estudos conversam com minhas memórias da educação básica. A noção de território bebe da fonte de uma visão muito simples de geografia como uma investigação da relação do ser humano com o meio ambiente. Isso obrigatoriamente gera a busca por uma base teórica que reflete tanto o ser humano quanto o meio ambiente de modo complexo. Se eu preciso de fundamentos para planejar e executar uma política pública, eu preciso de uma reflexão prévia com profundidade. Agora, se eu preciso pensar e realizar uma política pública de combate ao racismo, na minha visão de mundo, não existe possibilidade de que se ignore os problemas reais que estão presentes na vida real. Eu posso fazer uma campanha de inclusão de pessoas negras em campanhas publicitárias, eu posso fazer uma campanha de combate ao racismo em jogos de futebol, mas isso é suficiente para a superação dos problemas mais sensíveis dos pretos no território brasileiro? O enfrentamento ao racismo ambiental, a luta por espaços dignos para a população negra viver e se desenvolver é o que opera mudanças no Estado e no cotidiano das pessoas. Eu acredito que esse é o verdadeiro ecossistema de memória, identidade e resistência que eu busco, que eu penso, que eu estudo e pelos quais eu luto.
- Você trabalha com o conceito de justiça de transição. O Brasil nunca fez um processo profundo de reparação e verdade sobre sua história colonial e escravocrata. Como isso afeta a democracia brasileira e a nossa ideia de cidadania?
Essa é uma pergunta muito interessante. Eu como trabalhador do Direito nunca me percebi lidando diretamente com a ideia de justiça de transição, de modo tradicional. Mas me esforçando para me ver como alguém que trabalha explicitamente com a noção de justiça de transição, eu posso dizer que nós vivemos em um país em que se escolheu a anistia ao invés de lidar de modo efetivo com abusos e supressão de direitos humanos cometidos em períodos de autoritarismo pelo próprio Estado. Isso ocorreu no período de redemocratização após a ditadura militar e também no período após o encerramento formal do regime escravagista. Contudo, não considero que tivemos uma real democratização dos espaços de poder e a política militarizada, polícias militares, milícias e até escolas cívico-militares me provam isso em 2025. Quando pensamos em uma democracia, após séculos de tráfico humano e trabalhos forçados, que ainda convive com desigualdades sócio-econômicas explícitas, mas que decide que o crime de escravização, reduzir alguém a condição análoga à de escravo, é um crime comum, com uma pena máxima de oito anos, podendo chegar a doze, percebemos que a nossa cidadania é bastante precária. Eu acredito que a mudança desse estado de coisas deve buscar a ideia de justiça restaurativa, precisamos curar nossos traumas sociais com metodologias de diálogo focadas na reparação dos danos passados e presentes com a participação efetiva das vítimas e das suas comunidades.
Bloco 2 – Justiça, segurança pública e epistemologias negras
- A segurança pública ainda opera sob uma lógica punitivista e racializada. Como romper com essa mentalidade, sem cair no falso dilema entre segurança e direitos humanos?
Primeiro: na minha opinião, não há oposição entre direitos humanos e segurança. Segurança é um direito humano. Afinal, todo ser humano tem direito à condição de ser livre de perigos, riscos ou ameaças. O problema é a condução de políticas de segurança pública com viés racista e o rompimento com essa lógica depende, em sentido amplo, do rompimento com o racismo em si. Há mais ou menos dois anos, foi amplamente noticiado que negros, jovens e tatuados formavam um grupo de interesse, era tidos como suspeitos prioritários pela polícia gaúcha. A formação profissional dos agentes de segurança pública é enviesada e isso é flagrante. Logo, podemos perceber que a proteção e o bem-estar estão direcionados a certos humanos: brancos, maduros e não tatuados. Esse é um exemplo jocoso de uma lógica dramática. Agora, a mudança de chave pressupõe ações que mudem as estruturas desses órgãos que institucionalmente operam, desde o início do Estado brasileiro, como garantidores dos direitos dos grupos que detém poder.
- Você acredita que o sistema de justiça está preparado para escutar saberes e práticas que vêm das periferias, dos povos indígenas, quilombolas e das epistemologias negras?
A resposta simples e sintética é: não. Contudo, é importante reconhecer que existem movimentos dentro do sistema de justiça que buscam democratizar espaços e conhecimentos. O governo brasileiro, por exemplo, assumiu um compromisso voluntário (embora simbólico) com a equidade étnico-racial declarando um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável específico no âmbito da Agenda 2030. No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial orientando o julgamento de processos que envolvem pessoas e comunidades racializadas e a interpretação de normas considerando suas condições ontológicas, identitárias, objetivando uma administração da justiça mais inclusiva e mais efetiva. Ampliando a perspectiva, temos Ailton Krenak e Ana Maria Gonçalves como imortais na Academia Brasileira de Letras e isso é muito importante, é o reconhecimento de produções literárias com potencial real de impacto na formulação de doutrina em outras áreas afins, como é o Direito.
- A litigância estratégica é uma das frentes que você acompanha e pesquisa. O que falta para que o Judiciário seja, de fato, um agente de transformação no enfrentamento ao racismo estrutural?
Novamente, temos uma resposta simples e sintética, que é: falta querer. Quando eu penso em litigância estratégica, eu penso em intencionalidade, planejamento e ação sistêmica. Transformar um Poder da República, como é o Judiciário, em um agente de enfrentamento, mas mais do que isso, de combate ao racismo depende justamente de objetividade e de mudanças institucionais atentas a problemas que não podem ser varridos para baixo dos tapetes dos tribunais. A falta de representatividade em seu corpo funcional, a ausência de sistematização de dados raciais, os vieses e os preconceitos enraizados em sua atividade-fim devem ser enfrentados com seriedade e, essencialmente, deve-se buscar no dia-a-dia a concretização da igualmente material, como bem prevista na nossa Constituição Cidadã.
Bloco 3 – Educação, produção de conhecimento e ativismo jurídico
- Você é um pesquisador que transita entre a universidade, a gestão pública e o ativismo. Como foi essa trajetória e que aprendizados ela te trouxe sobre como (re)produzimos conhecimento no Brasil?
Acredito que a minha trajetória acadêmica e profissional se aproxima da realidade de muitos pesquisadores brasileiros, sobretudo da maioria dos pesquisadores negros do nosso país. Esse trânsito entre espaços acadêmicos, no Brasil e em Portugal, ambientes de gestão, sobretudo no setor público, e a rua, o extra-muros, acaba sendo uma imposição para quem não pode, pela realidade econômica, se dedicar exclusivamente ao campo da pesquisa. Contudo, posso afirmar que se aprende muito com o trabalho não-acadêmico e com a militância por causas que fazem sentido para a nossa vida. No que tange a minha percepção sobre o Direito, eu nunca consegui vislumbrar teoria e prática desassociadas. Entretanto, é importante denunciar: a produção de conhecimento no país é extremamente complicada, especialmente pela desvalorização financeira e até mesmo social. De um lado, temos uma expressiva parte da sociedade que não compreende a importância das ciências e das relações de trabalho e, de outro, um movimento inglório de luta pela produção de conhecimento científico, que, em certa medida, se vale da reprodução de construções já consolidadas, seja por uma certa preguiça (falta de inventividade), seja por estabilidade, pela busca de progressão nesse processo construtivo.
- Qual é o papel da juventude negra e periférica na reconstrução de um Brasil mais justo? E o que a universidade brasileira precisa aprender com esses sujeitos e territórios?
Talvez esses sejam os questionamentos mais difíceis de serem respondidos. Eu não tenho respostas fechadas. Eu penso que hoje o papel da juventude negra e periférica é de protagonista em um filme de terror de sobrevivência. Os dados estatísticos não mentem e são assustadores. Se manter vivo, alegre e forte é, por si só, um manifesto pela construção de um Brasil mais justo (e um pouco menos racista), porém, de fato, isso não é suficiente. Eu realmente acredito que precisamos construir um país que reconheça o potencial e dê condições estruturais para que a juventude exerça a sua força e criatividade sem entraves. A universidade, enquanto agente social, de mesmo modo, tem muito a aprender com a realidade, com a vida e com a luta das pessoas. Se ela estiver aberta a essa juventude negra, indígena, PCD, LGBTQIAP+ e periférica, com certeza, conseguiremos constituir intercâmbios que transformarão o meio acadêmico, os próprios jovens, as suas comunidades e a sociedade como um todo.
- Muitas vezes, o Direito é ensinado como algo neutro, técnico e distante das realidades sociais. Como desconstruir essa ideia, e formar profissionais comprometidos com a justiça social?
Desconstruir a ideia de que o Direito é neutro, técnico e alheio a realidade não é difícil. Penso que, em 2025, é realmente muito surreal pensarmos o Direito como um campo que ignora a materialidade da vida e da história, até mesmo para quem tem uma ideologia mais conservadora sobre a prática jurídica. Os problemas sociais, que se confundem com os objetos dos conflitos jurídicos, estão escancarados e seguir ensinando Direito sem enfrentá-los se torna bem mais complicado do que abordá-los. A grande questão, contudo, é que, afastado o paradigma de pseudo-neutralidade e vencida a técnica pela técnica, resta a escolha formativa de abordagem. O que eu quero dizer é que, infelizmente, vivemos em tempos em que o Direito pode e vem sendo manejado de modo a reafirmar realidades de desigualdade e injustiça. Assim, a luta por justiça social e racial se confunde com uma luta histórica e não-anacrônica pela construção de um Direito verdadeiramente humanista e equitativo.
Encerramento – Caminhos e convites
- Veyzon, que experiências te marcaram nessa caminhada até aqui, e que conselhos você daria para jovens negros que estão ingressando no Direito ou nas políticas públicas?
São dezenove anos como trabalhador do Direito, eu comecei a faculdade com dezessete anos e, desde então, nunca me afastei das reflexões que ela me introduziu. Essa jornada nunca foi estritamente individual e, como cantava Chico Science, “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. O Direito é um campo muito rico e, mesmo que a pessoa não queira atuar diretamente nele, os conteúdos filosóficos que o constituem permitem uma inegável ampliação de visões de mundo. Um primeiro conselho seria: use o Direito no que lhe for útil e saudável. Quando eu vejo jovens negros universitários, além de orgulho, eu torço para que eles se sintam verdadeiramente pertencentes dos espaços que adentrem. Ainda hoje, vejo que os ambientes jurídicos são hostis para pessoas negras, o que não é novo e, muitas vezes, revolta. Eu sempre me lembro da história de George McLaurin. Ele foi o primeiro negro a frequentar a cursar Direito nos Estados Unidos, após decisão da Suprema Corte, em tempos de segregação. As palavras dele fizeram muito sentido e tiveram muita familiaridade para mim na época de faculdade: “Alguns colegas me olhavam como se eu fosse um animal, não me diziam uma palavra, os professores pareciam que sequer estavam lá para mim, nem sempre respondiam minhas perguntas. Entretanto, eu me dediquei”. Assim, outro conselho que eu poderia dar é: acredite em você mesmo e se dedique. Não há jogo ganho, há sempre jogo jogado.
- Por fim, deixo aqui um convite afetuoso: podemos contar com sua presença no Ato Solene e Festivo dos 20 anos do Jornal Estado de Direito, no dia 06 de novembro de 2025, em Porto Alegre? E se quiser compartilhar uma memória sua com o Jornal Estado de Direito para o nosso público, o espaço é todo seu.
Com certeza! Estaremos lá, comemorando esse veículo de comunicação, que informa o público, mas que também pauta opinião pública qualificada. Uma memória que eu gostaria de compartilhar não é propriamente uma lembrança, mas sim um agradecimento e um registro: o Estado de Direito promoveu um projeto disruptivo chamado “Samba no pé e Direito na cabeça”, era uma verdadeira manifestação do Direito que eu acredito, conectado com a cidadania e com a cultura popular. Esse contato com ele, certamente, foi uma inspiração fundamental para o “Direito, Arte e Negritude”, livro que eu organizei e que acabou sendo finalista do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Não Ficção/Artes.
Resumo biográfico – Veyzon Campos Muniz é Mestre e Bacharel em Direito pela PUCRS. Possui especialização em Direito Tributário pela UNIP, em Direito Público pela UCS e em Direitos Humanos e Saúde pela FIOCRUZ. Advogado licenciado, exerce atualmente o cargo de Oficial de Justiça Estadual e é doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra.
