Por Carmela Grüne
As ações preparatórias para o Ato Solene e Festivo dos 20 anos do Jornal Estado de Direito seguem a todo vapor. Nesta edição especial, temos a honra de entrevistar a Professora Magda Kanaan Polanczyk — advogada, mestre em Direito Constitucional e professora há mais de duas décadas nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo e Tributário. Além de sua atuação docente, Magda possui publicações acadêmicas relevantes sobre o sistema tributário nacional e justiça social. Integra a Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/RS, é membro do IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário), do FESDT (Fundação Escola Superior de Direito Tributário), do IARGS (Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul) e da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo). Em reconhecimento à sua destacada contribuição jurídica, foi agraciada com a condecoração “Mulheres de Ordem” em 2016.
Magda integrou a primeira edição do Jornal Estado de Direito em 2005 e, desde então, segue sendo uma das vozes mais lúcidas e críticas sobre o papel do Direito Público na consolidação do Estado Democrático de Direito.
Nesta oportunidade, apresentam-se trechos da entrevista, que na íntegra estará em breve disponível no canal do Jornal Estado de Direito no YouTube onde a Professora Magda Kanaan Polanczyk percorre temas como o Direito Administrativo de resultados, o impacto das catástrofes climáticas na gestão pública, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a crise da burocracia estatal, os desafios da nova Lei de Licitações, os limites da discricionariedade administrativa e os caminhos possíveis para a reconstrução social a partir da escuta, da transparência e da equidade. Acompanhe:
Entrevista: Professora Magda Azário Kanaan Polanczyk – Jornal Estado de Direito
Jornal Estado de Direito: Professora, qual a importância de refletirmos sobre o Direito Administrativo no contexto atual do Brasil?
Magda Polanczyk: A reflexão sobre o Direito Administrativo é crucial porque ele se encontra no cerne das transformações que o Brasil vivencia. Historicamente, tivemos um Direito Administrativo marcado pelo autoritarismo e pela concentração de poder, distanciado do cidadão. Contudo, a Constituição de 1988 impôs uma guinada paradigmática, exigindo um Direito Administrativo de resultados, intrinsecamente vinculado à dignidade da pessoa humana, à promoção de direitos sociais e à reparação de desigualdades. Nesse sentido, o Direito Administrativo contemporâneo assume uma dupla missão: a de reconstruir institucionalmente o país e a de promover a justiça social.
Jornal Estado de Direito: Como a senhora percebe essa reconstrução institucional?
Magda Polanczyk: A reconstrução institucional, conforme abordamos, passa pela fundamental retomada do papel do Estado, que não pode mais se omitir diante das complexas demandas sociais. A recente catástrofe climática no Rio Grande do Sul, em 2024 e aprofundada neste ano, por exemplo, expôs de forma dramática a lacuna entre a existência de leis e sistemas e a efetiva execução e planejamento. A mencionada imagem simbólica dos sacos de areia no lugar de portões de contenção em Porto Alegre, reforça a percepção de uma ausência estatal onde sua presença era mais vital. A reconstrução, portanto, exige que o Estado se posicione de forma eficiente, com capacidade de escuta das necessidades da população e com um compromisso social inabalável, alinhando-se aos princípios que regem a reconstrução da casa pública.
Jornal Estado de Direito: E o que seria, então, o Direito Administrativo de resultados?
Magda Polanczyk: O Direito Administrativo de resultados transcende a mera legalidade formal. Ele impõe que a Administração Pública produza efeitos concretos e mensuráveis na vida das pessoas, com total transparência. Estamos falando de uma gestão pública orientada pela governança, pela integridade e pela responsabilização. A máxima de que “não se fez por falta de dinheiro” não se sustenta mais sem a devida comprovação. A reserva do possível, hoje, exige prova cabal, e a omissão administrativa deve ser devidamente justificada, pois a discricionariedade não é um salvo-conduto para a inação – como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
Jornal Estado de Direito: Como a senhora avalia a relação entre a Lei de Responsabilidade Fiscal e os direitos sociais?
Magda Polanczyk: A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF/LC101) é, sem dúvida, um instrumento de controle orçamentário essencial. Contudo, ela não pode se converter em uma armadilha contra a concretização dos direitos sociais. O gestor público tem o dever de equilibrar as contas, mas essa responsabilidade fiscal deve ser conjugada com a prioridade às demandas urgentes nas áreas de saúde, educação, habitação e assistência. O protagonismo judicial tem sido fundamental nesse cenário, exigindo que a escassez de recursos seja efetivamente comprovada. Casos como a ADPF 347 e o Tema 698 do STF demonstram que a discricionariedade administrativa não é absoluta, e o gestor não pode invocar conveniência e oportunidade para negar direitos fundamentais.
Jornal Estado de Direito: E a nova Lei de Licitações? O que ela representa nesse cenário?
Magda Polanczyk: A nova Lei 14.133/2021 representa um avanço significativo no campo do Direito Administrativo. Ela incorpora mecanismos modernos de gestão pública, como o diálogo competitivo, que é uma inovação crucial. Este mecanismo permite que a Administração reconheça suas limitações técnicas e busque a colaboração de especialistas para conceber as melhores soluções antes da contratação, promovendo um verdadeiro planejamento e inteligência administrativa. A efetividade dessa lei, porém, dependerá intrinsecamente de sua implementação e do papel vigilante dos tribunais de contas e do controle interno.
Jornal Estado de Direito: A senhora também mencionou a exclusão digital como um problema concreto. Poderia comentar?
Magda Polanczyk: Certamente. A digitalização dos serviços públicos, intensificada pela pandemia, embora traga potencial para agilidade e transparência, criou um novo tipo de exclusão. Muitas pessoas, sem acesso a dispositivos ou conhecimento digital, são impedidas de acessar seus direitos básicos. O Estado tem a responsabilidade de manter canais presenciais, acessíveis e humanos, garantindo que a tecnologia seja uma ponte, e não um muro. Não é aceitável exigir que um idoso ou uma pessoa em situação de rua utilize um QR Code para acessar auxílio, pois isso configura uma desumanidade institucional.
Jornal Estado de Direito: Como enfrentar o desmonte das políticas públicas diante do avanço das privatizações?
Magda Polanczyk: O Brasil nunca deixou de operar sob o vetor do PND – Plano Nacional de Desestatização. O debate sobre as privatizações é complexo e deve ser pautado pela equidade. A privatização não pode ser um dogma; cada caso precisa ser analisado com rigor, considerando o impacto social, a realização de consultas públicas e a transparência. Quando serviços essenciais são desestatizados, a população mais vulnerável é impactada de forma importante. A Constituição Federal nos oferece os fundamentos para essa discussão, ao enfatizar a função social, a redução das desigualdades e a universalização dos serviços públicos com força vinculante.
Jornal Estado de Direito: E a burocracia? Ela atrapalha ou ajuda?
Magda Polanczyk: A burocracia é, sim, necessária para a organização do Estado. No entanto, ela precisa ser urgentemente repensada. Não pode ser uma estrutura hermética que exclui o cidadão – isso nos afasta da Democracia. Precisamos de uma burocracia inclusiva, democrática e representativa. É por isso que políticas como as cotas para o serviço público são tão importantes e respaldadas pelo STF. Elas representam uma reparação histórica e garantem a presença de diversos grupos sociais, como povos originários, mulheres negras e pessoas com deficiência. Sem essa diversidade na burocracia, as políticas públicas não alcançarão sua efetividade plena.
Jornal Estado de Direito: Que mensagem final a senhora deixaria aos nossos leitores?
Magda Polanczyk: Minha mensagem final é de esperança e ação. É perfeitamente possível reconstruir o nosso país. O Direito Administrativo, nesse contexto, pode e deve ser um campo de escuta, de transformação e de esperança. Cada um de nós – advogados, juízes, promotores de justiça, servidores públicos, empregados públicos, gestores públicos – temos um papel fundamental nessa reconstrução democrática. E o Jornal Estado de Direito, ao longo de seus 20 anos, tem sido uma parte viva e essencial desse processo.
Jornal Estado de Direito: Professora, como a senhora vê esses 20 anos do Jornal Estado de Direito?
Magda Polanczyk: Vejo os 20 anos do Jornal Estado de Direito como uma luz, uma construção ética, corajosa e absolutamente necessária. O Jornal foi pioneiro em demonstrar que o Direito pode e deve dialogar com a cultura, com a música, com os movimentos sociais, com os presídios e com os territórios invisíveis. São duas décadas de coerência, de resistência e, acima de tudo, de beleza, pois há uma beleza intrínseca na luta por justiça. Sinto um carinho imenso por este projeto, tendo a honra de ter publicado um artigo em sua primeira edição. Estar aqui, 20 anos depois, me emociona profundamente e reforça minha gratidão e esperança.
Convite à celebração
A entrevista integra o ciclo comemorativo de entrevistas, publicações e atividades que culminará no ato festivo dos 20 anos do Jornal Estado de Direito. O evento pretende reunir 400 convidados e contará com homenagens, debates e uma edição especial comemorativa. A professora Magda Azario Kanaan Polanczyk é uma das convidadas de honra da celebração, reconhecida por sua contribuição ao pensamento crítico e à construção de um Direito mais democrático e humanista.
📍 6 de novembro de 2025
📍 Associação Leopoldina Juvenil — Porto Alegre/RS
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