Direito, igualdade e transformação social: a voz de uma magistrada comprometida com os direitos humanos
O Jornal Estado de Direito tem a honra de apresentar uma entrevista exclusiva com a desembargadora Tânia Reckziegel, referência nacional na defesa dos direitos humanos, na promoção da equidade de gênero e na construção de um Judiciário mais democrático e inclusivo.
Ao longo de sua trajetória, iniciada na advocacia e que a conduziu ao TRT da 4ª Região, onde ocupa a vaga destinada à advocacia pelo Quinto Constitucional como Desembargadora Federal, passando pelo papel de destaque no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e chegando à atual experiência como magistrada auxiliar da Presidência do Superior Tribunal Militar, Tânia Reckziegel consolidou uma carreira que alia excelência técnica a um profundo compromisso social
Nesta conversa, ela reflete sobre os marcos de sua caminhada, os desafios enfrentados ao trazer ao Judiciário pautas como o combate ao assédio moral e sexual, a implementação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, a expansão das Ouvidorias Judiciais das Mulheres e o fortalecimento da escuta qualificada como instrumento de transformação institucional.
A entrevista percorre temas atuais e urgentes: o papel das ouvidorias na formulação de políticas judiciárias eficazes, a complementaridade entre as diferentes justiças especializadas, os desafios para uma verdadeira justiça democrática e inclusiva e, ainda, o impacto simbólico e prático de sua atuação ao lado da ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a presidir o STM.
Num momento em que o Jornal Estado de Direito prepara as celebrações de seus 20 anos de resistência e construção coletiva, a fala da magistrada reafirma a relevância da imprensa jurídica independente na difusão dos direitos humanos e na democratização do conhecimento jurídico.
Com sua visão crítica, sensível e transformadora, Tânia Reckziegel nos inspira a acreditar que o Direito, quando comprometido com a dignidade humana, pode ser um instrumento real de justiça social.
1. Sua trajetória acadêmica e profissional é marcada por um compromisso profundo com os direitos humanos e com o enfrentamento das desigualdades. Como essa formação influenciou sua escolha pelo Direito e sua atuação como magistrada?
Resposta: Minha trajetória acadêmica e profissional sempre esteve orientada pela convicção de que o Direito é uma ferramenta essencial para transformar realidades e reduzir desigualdades. Nesse sentido, sempre tive um compromisso profundo com a defesa dos direitos humanos, em especial os direitos das mulheres. Desde a graduação, busquei aprofundar meus estudos em direitos humanos, pois acredito que a justiça só se realiza plenamente quando garante dignidade e oportunidades para todos, especialmente para aqueles em situação de vulnerabilidade. Mais ainda, percebi que o Direito poderia ser um instrumento poderoso para promover a equidade de gênero. Essa visão orientou minha escolha pela magistratura: estar no Judiciário me permite aplicar a lei com sensibilidade social, promover equidade e assegurar que a proteção dos direitos fundamentais seja mais do que um ideal, seja uma prática cotidiana. E assim esse engajamento esteve presente na prática, em projetos, causas e decisões voltadas à proteção e ao fortalecimento da autonomia feminina.
2. Ao longo da sua atuação no TRT da 4ª Região, a senhora consolidou uma agenda comprometida com os direitos das mulheres, o combate ao assédio moral e a promoção da dignidade no trabalho. Quais marcos destacaria dessa atuação e que resistências enfrentou ao trazer temas sensíveis para dentro do Judiciário?
Resposta: No TRT de 4ª Região, tive a oportunidade de desenvolver ações e decisões voltadas à proteção dos direitos das mulheres, à prevenção do assédio moral e sexual e à valorização da dignidade no ambiente de trabalho. Entre os marcos que destaco, estão a participação em comissões e grupos de trabalho para a implementação de políticas institucionais de enfrentamento ao assédio, a promoção de campanhas educativas voltadas a trabalhadoras e trabalhadores e decisões judiciais que reforçam a responsabilidade das empresas em manter um ambiente seguro e respeitoso. Levar esses temas ao Judiciário, muitas vezes, significou enfrentar resistências – desde a minimização da gravidade dessas questões até o receio de tocar em estruturas de poder consolidadas. Ainda assim, acredito que o papel da magistratura é justamente abrir espaço para debates sensíveis, pois só assim conseguimos romper ciclos de silêncio e invisibilidade. Cada passo nessa direção representa não apenas uma vitória institucional, mas um avanço real na vida das pessoas que dependem da Justiça para terem sua dignidade reconhecida.
3. Como foi a experiência de integrar o Conselho Nacional de Justiça e contribuir com a formulação de políticas públicas voltadas à proteção dos direitos fundamentais? Que ações a senhora considera mais emblemáticas dessa passagem pelo CNJ?
Resposta: Integrar o Conselho Nacional de Justiça foi uma experiência profundamente enriquecedora e desafiadora. O CNJ é um espaço estratégico para pensar o Judiciário de forma sistêmica e para formular políticas públicas capazes de garantir a efetividade dos direitos fundamentais em todo o País. Nessa atuação, tive a oportunidade de participar de iniciativas voltadas à promoção da igualdade de gênero no sistema de Justiça, ao enfrentamento do assédio e da discriminação e ao fortalecimento da proteção de grupos vulneráveis. Entre as ações mais emblemáticas, destaco a contribuição para a elaboração e implementação de protocolos nacionais de julgamento com perspectiva de gênero, o acompanhamento de políticas de prevenção e combate ao assédio no Judiciário e a articulação com outros órgãos para ampliar a rede de proteção e garantir que os direitos humanos fossem incorporados de forma transversal na atuação judicial. Foi um período de intenso aprendizado e de reafirmação da convicção de que, quando o Judiciário se abre ao diálogo e à formulação de políticas públicas, ele se aproxima mais da sociedade e cumpre com maior plenitude seu papel constitucional.
4. Em sua atuação no CNJ, a senhora participou do desenvolvimento do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero. Qual a importância desse instrumento para transformar a prática judicial e garantir decisões mais justas e equânimes?
Resposta: O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero é um marco importante para o sistema de Justiça brasileiro. Ele oferece aos magistrados e magistradas um guia objetivo para identificar e superar estereótipos, preconceitos e desigualdades que, muitas vezes de forma inconsciente, influenciam a interpretação e a aplicação da lei. Sua importância está justamente em traduzir o compromisso constitucional com a igualdade em orientações práticas, capazes de transformar a forma como julgamos. Mais do que um documento técnico, o Protocolo é uma ferramenta pedagógica e de conscientização: ele provoca uma reflexão crítica sobre o papel do Judiciário na reprodução ou no enfrentamento das desigualdades de gênero. Ao incorporá-lo na prática judicial, avançamos para decisões mais justas, equânimes e sensíveis às realidades diversas das mulheres e de outros grupos historicamente discriminados. É um passo decisivo para que a Justiça não apenas declare a igualdade, mas a concretize na vida das pessoas.
5. A senhora também lidera o Colégio de Ouvidorias Judiciais das Mulheres, que passou de 32 para 70 ouvidorias em apenas dois anos. Como enxerga o papel das ouvidorias como espaço de escuta qualificada e acolhimento das mulheres no sistema de justiça?
Resposta: As Ouvidorias Judiciais das Mulheres cumprem um papel fundamental como porta de entrada humanizada para o sistema de Justiça. São espaços de escuta qualificada, onde as mulheres encontram acolhimento, orientação e encaminhamento adequado para suas demandas, muitas vezes relacionadas a situações de violência ou discriminação. O avanço de 32 para 70 Ouvidorias em apenas dois anos demonstra o compromisso crescente do Judiciário com a ampliação desse canal e com a interiorização do acesso à Justiça. Esse crescimento não é apenas numérico: significa que mais mulheres, em diferentes regiões do país, têm hoje um ponto de apoio institucional que legitima suas vozes e as conecta a respostas efetivas. Enxergo as Ouvidorias como instrumentos estratégicos para aproximar o Judiciário da realidade social e romper barreiras que, por muito tempo, afastaram as mulheres da Justiça. Escutar com atenção, respeito e empatia é o primeiro passo para garantir que seus direitos sejam plenamente reconhecidos e protegidos.
6. Como a escuta das mulheres através das ouvidorias pode contribuir não só para o atendimento, mas também para a formulação de políticas judiciárias mais eficazes no enfrentamento da violência institucional e da revitimização?
Resposta: A escuta das mulheres nas Ouvidorias é muito mais do que um atendimento individual: é uma fonte riquíssima de diagnóstico social e institucional. Ao acolher relatos, compreender contextos e identificar padrões de violência, discriminação e revitimização, conseguimos transformar essas experiências em dados concretos e evidências que orientam a formulação de políticas judiciárias mais eficazes. Essa escuta qualificada permite que o Judiciário reconheça falhas, reveja procedimentos e desenvolva protocolos que previnam a violência institucional, garantindo que a mulher seja tratada com dignidade e respeito em todas as etapas do processo. Além disso, contribui para que o enfrentamento da violência de gênero seja transversal, alcançando não apenas o campo penal, mas também as áreas trabalhista, cível e administrativa. Em suma, cada relato ouvido é também uma oportunidade de transformação sistêmica: do acolhimento individual à mudança estrutural, o caminho começa com a escuta.
7. Em 2025, a senhora assumiu nova função como magistrada auxiliar da Presidência do Superior Tribunal Militar. Como está sendo essa experiência ao lado da ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a presidir o STM, e o que representa para o avanço da equidade de gênero nas estruturas tradicionais do Judiciário?
Resposta: Assumir a função de magistrada auxiliar da Presidência do Superior Tribunal Militar, ao lado da ministra Maria Elizabeth Rocha, está sendo uma experiência marcante sob muitos aspectos. Trabalhar com a primeira mulher a presidir o STM não é apenas uma honra, mas um testemunho vivo de que a presença feminina pode e deve ocupar todos os espaços, inclusive aqueles historicamente marcados por estruturas mais tradicionais. Essa experiência reforça a importância de olhares diversos na lata cúpula do Judiciário. A liderança da ministra Maria Elizabeth Rocha é exemplo de que a sensibilidade para a equidade de gênero pode caminhar lado a lado com excelência técnica e firmeza institucional. Estar nesse contexto significa não apenas contribuir para a gestão estratégica do Tribunal, mas também é uma oportunidade de participar de um momento histórico que inspira outras mulheres a romper barreiras e acreditar que não há limites para sua atuação no sistema de Justiça. É um avanço simbólico e prático: simbólico, porque representa a quebra de paradigmas; prático, porque abre portas e consolida políticas que fortalecem a presença e a voz das mulheres no Judiciário.
8. Quais foram as principais aprendizagens nesse diálogo entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Militar? Há uma complementaridade entre essas justiças especializadas no que diz respeito à proteção de direitos fundamentais?
Resposta: O diálogo entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Militar me trouxe aprendizagens valiosas sobre a pluralidade de perspectivas dentro do sistema judicial e sobre como diferentes ramos podem se complementar na proteção de direitos fundamentais. A Justiça do Trabalho, com sua vocação voltada para a dignidade da pessoa humana nas relações laborais, e a Justiça Militar, com seu foco na hierarquia, disciplina e na garantia de direitos de militares e civis em contextos específicos, partilham um elemento comum: ambas lidam diretamente com a vida concreta das pessoas, com situações que exigem equilíbrio entre a aplicação da lei e a preservação de valores constitucionais. Ao aproximar essas experiências, percebi que há um campo fértil de complementaridade, especialmente no combate a práticas abusivas, na prevenção da violência institucional e na promoção de um ambiente de trabalho digno, seja ele civil ou militar. Essa interação reforça a ideia de que, embora especializadas, todas as justiças têm um compromisso comum com a defesa da cidadania e a efetivação dos direitos humanos.
9. Olhando para o panorama atual, quais são, em sua visão, os principais desafios do sistema de justiça brasileiro? Que caminhos ainda precisam ser trilhados para que o Judiciário avance na direção de uma verdadeira justiça democrática e inclusiva?
Resposta: O sistema de justiça brasileiro enfrenta hoje desafios que exigem coragem institucional e compromisso ético. Entre eles, destaco a necessidade de ampliar o acesso à Justiça, superar barreiras sociais, econômicas e culturais que ainda excluem milhões de pessoas, e fortalecer a confiança da sociedade nas instituições. É preciso também enfrentar com seriedade as desigualdades estruturais – de gênero, raça, classe e território – que ainda influenciam o modo como a Justiça é vivida e percebida. Outro desafio é promover uma mudança de cultura no próprio Judiciário, para que sejamos menos burocráticos e mais sensíveis às demandas reais da população, adotando práticas mais transparentes, participativas e inclusivas. O caminho para uma verdadeira justiça democrática e inclusiva passa por três eixos: escuta ativa da sociedade, formulação de políticas judiciárias baseadas em evidências e compromisso com a igualdade material, e não apenas formal. Isso significa que o Judiciário precisa não apenas aplicar a lei, mas também atuar como agente de transformação social, garantindo que direitos fundamentais sejam efetivamente respeitados, independentemente de quem os reivindique.
10. O Jornal Estado de Direito completa 20 anos de resistência e construção coletiva em 2025. Como a senhora avalia o papel da imprensa jurídica independente na difusão dos direitos humanos e na democratização do acesso ao conhecimento jurídico?
Resposta: O papel da imprensa jurídica independente, como o Jornal Estado de Direito, é fundamental para a construção de uma sociedade mais informada, crítica e participativa. Ao longo desses 20 anos, o Jornal não apenas noticiou fatos, mas promoveu reflexões profundas, aproximou o Direito da vida cotidiana e deu visibilidade a temas muitas vezes silenciados, especialmente no campo dos direitos humanos. A democratização do conhecimento jurídico é um passo essencial para que a cidadania seja exercida de forma plena. Quando a informação é clara, acessível e comprometida com a verdade, ela empodera as pessoas, rompe barreiras e combate a desinformação. A resistência e a construção coletiva que marcam a história do Jornal Estado de Direito mostram que é possível fazer jornalismo jurídico com independência editorial, rigor técnico e compromisso social. Essa atuação contribui não apenas para difundir direitos, mas para formar uma consciência jurídica mais inclusiva e alinhada aos valores democráticos.
Quem é Tânia Regina Silva Reckziegel – Desembargadora Federal do Trabalho no TRT da 4ª Região, onde ingressou pelo Quinto Constitucional da Advocacia. Atuou como conselheira no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), destacando-se na formulação de políticas públicas voltadas à equidade de gênero, ao combate ao assédio e à proteção dos direitos humanos. Atualmente, exerce a função de magistrada auxiliar da Presidência do Superior Tribunal Militar (STM), ao lado da ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a presidir a Corte. Sua trajetória profissional é marcada pelo compromisso com a promoção da dignidade da pessoa humana, a defesa da igualdade de gênero e o fortalecimento de mecanismos de acesso à Justiça, como a expansão das Ouvidorias Judiciais das Mulheres em todo o país.