Direito ao Pão Novo – O Princípio da Dignidade Humana e a Efetivação do Direito Indígena

Coluna Lido para Você

Direito ao Pão Novo. O Princípio da Dignidade Humana e a Efetivação do Direito Indígena. MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. São Paulo: Editora Pillares, 2005, 255 p.

 

Obra de Tatiana Azambuja Ujacow Matins.

Este livro, de autoria de Tatiana Azambuja Ujacow Matins, bem poderia se intitular, como indica um de seus capítulos Direitos Humanos e Cidadania: o Direito ao Pão Novo. O título diria  bem sobre estudo, fruto de diligente pesquisa desenvolvida por sua autora no Programa Interinstitucional de Mestrado em Direito, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, para capacitação de docentes do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN), do Mato Grosso do Sul e revelaria a forte sensibilidade da pesquisadora tocada por questão dramática que continua a caracterizar a questão indígena em nosso País.

Ambas as motivações estão presentes no trabalho, que em sua forma acadêmica, inicialmente desenhada em ensaio prospectivo (MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow, Questão Indígena: O direito ao pão novo. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, org.,  Na Fronteira: Conhecimento e Práticas Jurídicas para a Solidariedade Emancipatória.  Porto Alegre: Editora Síntese, 2003, pp. 443-463), recebeu o explicativo título Diálogo Intertextual entre o Direito Kaiowa/Guarani e o Direito Positivo Brasileiro em uma Perspectiva da Dignidade da Pessoa Humana. De um lado, analisar a efetividade constitucional num contexto em que a positividade jurídica é compartilhada por diferentes culturas e etnias, não podendo prescindir da condição de alteridade para a significação de valores e expectativas societais que envolvam o reconhecimento recíproco da dignidade da pessoa humana; por outro lado, traduzir os direitos, a partir de seus próprios modos de vida, reconhecendo a legitimidade de seus fundamentos, nos referenciais do modo de ser dos povos Guarani Kaiowá/Nhandeva que habitam as reservas mal-demarcadas da região de Dourados, no Mato Grosso do Sul

Este duplo desafio, ao mesmo tempo social e epistemológico, contido na metáfora do Direito ao Pão Novo, encontra no trabalho de Tatiana Ujacow Martins um enquadramento pertinente e de atualidade exemplares, quando a tragédia que assinala a saga desses povos, depois que aos suicídios que assombraram o imaginário brasileiro, segue-se o infortúnio de suas crianças, vítimas de uma mortalidade que interpela o nosso projeto de sociedade, seus fundamentos éticos ou ausência de fundamentos éticos e seus compromissos, ou falta de compromissos, a sua inserção ou falta de inserção civilizatória designada pelos direitos humanos e agora, quando pesa sobre as conquistas históricas e constitucionais dos povos tradicionais, o anúncio de uma governança comprometida com a ganância ultraliberal que se revela hostil e refratária a essas conquistas,  repudiando a nossa ancestralidade ameríndia e pautando a revisão dos protocolos inclusive judiciais, de demarcação de suas terras e territórios, a começar pela simbólica demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (sobre esse  simbolismo e o perigo que pesa sobre o território Raposa Serra do Sol, conferir Boaventura de Sousa Santos, Raposa Serra do Sol – Brasil. Demarcação de território indígena em perigo. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, Observatório da Constituição e da Democracia, n. 24, julho de 2008, p. 24).

A partir da consideração do pluralismo jurídico e de um modelo de interlegalidades que nele se fundamenta, Boaventura de Sousa Santos aponta para o que designa porosidades de diferentes ordens jurídicas que obrigam a constantes transições e transgressões.

É neste contexto que o sociólogo português repõe o tema dos direitos humanos referidos à práticas sociais emancipatórias, nas quais as transgressões concretas são sempre, diz ele, produto de uma negociação e de um juízo político.

Para Boaventura, a reciprocidade é o critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos enquanto expressão avançada de lutas pela reciprocidade: “Uma tal prática de direitos humanos é uma prática radical porque tem lugar nas diferentes configurações de legalidade e assume, portanto, a possibilidade de envolver práticas ilegais em qualquer dos direitos estruturais, incluindo o próprio direito estatal. É, pois, uma prática pós-reformista. Mas é também, de algum modo, uma prática pós-revolucionária, na medida em que privilegia a negociação em detrimento da ruptura e, quando recorre a esta última, constrói-a como micro-ruptura feita de momentos de legalidade e de ilegalidade num contexto prático concreto, limitado. A radicalidade da prática dos direitos humanos aqui proposta reside acima de tudo em não ter fim e, como tal, em conceber cada luta concreta como um fim em si mesmo. É uma prática micro-revolucionária. Uma prática contingente, tão contingente como os sujeitos individuais e coletivos que se mobilizam para ela a partir das comunidades interpretativas onde se aprende a aspiração de reciprocidade”.

Note-se que Roberto Lyra Filho, na medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social – “aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social” – também indicou como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.

Lyra Filho fala em direitos humanos, pois, enquanto síntese jurídica. Para ele, o processo social, a História, é um movimento de libertação constante e dentro deste processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem.

Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho: “Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade, em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do Direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda“.

Foto: Reprodução/Commons

Vê-se, logo, nesta ordem de consideração, que a reposição do tema dos direitos humanos referidos ao contexto de práticas sociais emancipatórias, traz, por sua vez, o problema da inafastável e incindível base ética de toda normatividade, não obstante a pretensão cientificista de separação entre Ética e Direito, conveniente a uma conjuntura de localização e de isolamento do poder político numa determinada instituição – o Estado e de fetichização de seu instrumento privilegiado de intervenção – o direito positivo estatal.

Numa recuperação histórica e filosófica de uma experiência então ainda irredutível ao arbitrário da separação entre Estado e Sociedade, entre Público e Privado, o que se poderia configurar como caracterização do campo ético, designava, perfeitamente, a identidade concreta entre eticidade e moralidade e direito.

Marilena Chauí registra bem esta identidade, partindo de uma constatação de ordem etimológica. Vale dizer, na sua dupla derivação, a palavra ethos significa, num aspecto, o caráter, a constituição interior, seja psíquica ou física, e as disposições interiores de um ser humano para a ação e para uma ação determinada, a ação virtuosa; noutro aspecto, significa o conjunto de costumes do grupo social, aquilo que vai corresponder em latim a mores, isto é aos costumes, porém não a qualquer costume, mas aos costumes enquanto costume de uma comunidade, que oferece a si mesma certos fins que considera bons.

Assim, na origem, a constituição do campo ético é, simultaneamente, a constituição da normatividade, sem que a dimensão subjetiva deste processo implique em isolar a moralidade enquanto consciência subjetiva da eticidade, enquanto moralidade coletiva.

É verdade que este caminho, aqui negado, foi sustentado com vigor filosófico e conseqüências jurídicas, na formulação kantiana da autonomia moral e da pura racionalidade de sua elaboração enunciativa do imperativo categórico abstrato.

Entretanto, como salienta Marilena Chauí, a ética como normatividade, ela também, não se realiza senão historicamente: “a ética não se realiza na solidão de um sujeito nem na solidão de alguns sujeitos, mas na intersubjetividade social, no mundo cultural e histórico. Ou seja, toda ética está enraizada num campo histórico-cultural com o qual ela nasce, ao qual ela responde e o qual ela pode transformar. Ela pode, através da própria ação dos sujeitos morais, transformar o universo de valores culturais herdados, postos pela sua própria ação”.

Hegel é o filósofo que liga a ética à história e à política na medida em que o agir ético do homem precisa concretizar-se dentro de uma determinada sociedade política e de um momento histórico determinado, dentro dos quais a liberdade se daria uma existência concreta, organizando-se por meio das instituições.

Com efeito, conforme indica Bárbara Freitag, “a polaridade entre indivíduo e sociedade, a consciência moral subjetiva e a consciência moral objetiva é retomada na obra de Hegel sob o ângulo da dialética entre moralidade e eticidade. Na filosofia do Direito, Hegel lembra a origem comum dos dois termos, atribuindo-lhes, contudo, um significado lógico distinto, denotando diferenças importantes na elaboração da questão da moralidade. A moralidade hegeliana é uma figura do espírito que inclui a consciência moral subjetiva, mas não é redutível a ela. A eticidade é uma figura do espírito, que leva em conta a moralidade coletiva, objetivada em instituições sociais, sem esgotar-se nela. Esta dialética entre moralidade e eticidade tenta incluir na reflexão dois aspectos, o do comportamento da ação moral do sujeito, por um lado, e o da sociedade – o comportamento moral dos atores inseridos em contextos sociais globais – por outro lado. Hegel, com efeito, insere na concepção de moralidade a idéia de uma consciência moral subjetiva, que sabe da existência de um todo social objetivado, que constitui a condição material de sua realização. Assim como a eticidade, enquanto moralidade institucionalizada nas formas sociais da família, da sociedade civil, do Estado, sabe da existência e da necessidade de atuação, no seu interior, de consciências morais subjetivas, singularizadas em indivíduos concretos”.

Hegel, assim como antes Platão e Aristóteles operam na questão ética em perspectiva política. Em Hegel, se se pudesse falar em um ideal ético, diz Valls, este seria o de uma vida livre dentro de um Estado livre, que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem superadas e nem em contradição.

Assim, para Hegel, a noção de liberdade é consentânea da noção de eticidade e de direito, de modo que a liberdade precisa organizar-se na sociedade. “Hegel deixa claro – diz Bárbara Freitag – que o ponto de vista moral do sujeito, com sua ação e seu julgamento, não faz sentido fora da sociedade, e esta, por sua vez, precisa ser regida por princípios éticos, normas de ação validas para todos e conscientizadas e respeitadas por cada um. O Estado ou a sociedade civil não teriam existência própria se não fossem mantidos e renovados, em sua existência ética, por sujeitos dotados de liberdade de ação, moralmente conscientes da responsabilidade que essa liberdade lhes impõe e que reconhecem como válidas as leis gerais”.

Portanto, segundo Álvaro Valls (O Que é Ética, Brasiliense), à crítica de que, no seu projeto o processo supera o individual e esvazia a dimensão ética, Hegel responderia: “supera-se dialeticamente a moral, para entrar no terreno sólido e real da vida ética (sittlichkeit), concretizada em instituições (supra-individuais) como a família, a sociedade civil e o Estado, dimensões que não podem ser ignoradas por nenhuma ética que pretenda ser concreta”.

Há, assim, na elaboração hegeliana, uma reivindicação à experiência de sujeitos capazes de agir e de refletir sobre a sua ação, no aprendizado da transformação da moralidade em eticidade. Daí dizer Valls, nesta perspectiva, “que o homem não é o que apenas é, pois ele precisa tornar-se em homem, realizando em sua vida a síntese das contradições que o constituem inicialmente”

Aristóteles ao afirmar ser o homem um animal político, menos que atribuir uma distinção de racionalidade entre o animal homem e os outros animais, estivesse mesmo indicando isto que ficou assinalado como o processo de tornar-se homem.

Vale dizer, na afirmação aristotélica talvez pudesse estar presente a consideração de que, efetivamente, o homem se constitui homem, na experiência concreta de sua atuação na polis. Daí porque, para Aristóteles, o escravo não era homem, alienado, pois, desta condição, como decorrência da natureza das coisas, apenas uma “ferramenta falante” ou  “utensílio vocalis”, na confirmação de Cícero.

Por isto se diz que os direitos humanos não se confundem com as declarações que pretendem contê-los, com as idéias filosóficas que se propõem fundamentá-los, com os valores a que eles se referem ou mesmo com as instituições nas quais se busca representá-los. Os direitos humanos são as lutas sociais concretas da experiência de humanização. São, em síntese, o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação das sociedades, na trajetória emancipatória do homem.

São, na História do Brasil, para particularizar, as lutas abolicionistas, num país já então constitucionalizado, no paradigma de um homem abstrato igual e livre, porém, numa sociedade, todavia escravista, na qual o escravo é, por conseguinte, não-homem, mercadoria sujeita ao uso, fruição e abuso.

Como se recorda, foi necessária a resolução papal, expressa na Bula de Paulo III, em 1537, para determinar “que esses mesmos índios, na sua qualidade de verdadeiros homens” e, ainda assim, provocar o esclarecimento contido na Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, de 1663, no sentido de que “da resolução da dúvida sentenciada pelo Sumo Pastor da Igreja, que passou em coisa julgada consta que são eles verdadeiros indivíduos da espécie humana, e verdadeiros homens, como nós, capazes dos sacramentos da Santa Igreja, livres por natureza, e senhores de seus bens e ações”.

Para o índio, ainda agora, a cidadania oscila entre intenções e compromissos, entre o genocídio e as exigências de uma sociedade real de homens concretos que a realizem, superando as dúvidas contemporâneas acerca de sua condição de gente.

Em 1980, no Brasil, o então Tribunal Federal de Recursos, julgando habeas corpus em favor do cacique Mário Juruna para garantir-lhe o direito de participação no Tribunal Russel de Assuntos Indígenas, instalado em Roterdã, recolocou a questão neste voto do ministro Washinton Bolivar de Brito: “Nenhuma Nação tem o direito de impedir que os seus filhos dela se ausentem ou retornem livremente e isso também foi dito da Tribuna, relembrando passagem da Declaração dos Direitos do Homem. Haveria alguma dúvida de que o silvícola é um homem? Evidentemente que não. E não havendo esta dúvida sendo também certo que a Nação Brasileira aderiu à Carta de São Francisco, onde estão consignados tais direitos, não se poderia impedir a ausência do homem brasileiro, seja ele silvícola ou não”.

Foto: Thiago Gomes/Agência Pará

A polêmica brasileira em torno da edição de decreto do executivo acerca do processo de demarcação de terras indígenas reabriu o exercício político tocado por esta dúvida. Num depoimento de um “jagunço” recolhido pelo jornal “Porantim”, do Conselho Indigenista Missionário, organismo ligado `Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ele diz a certa altura do relato de suas memórias: “Atirei nele (num índio), quando cheguei perto, vi que chorava. Parecia gente!”. Na consciência do matador de aluguel a humanidade do índio é questão tão irresolvida quanto o era para portugueses e espanhóis, às vésperas da negociação do Tratado de Madrid e do destino dos Sete Povos das Missões, como o é ainda agora, a luz dos debates acerca de seu futuro étnico.

Como quer que seja, dito de outro modo, apesar de todas as condicionantes conferidas no julgamento a cargo do Supremo Tribunal Federal,  a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é hoje um direito originário e constitucional dos povos indígenas de Roraima e do Brasil. Depois de um histórico de 32 anos de luta pela demarcação e homologação, um processo marcado por ameaças, destruições, violência e até mortes de indígenas, atos ainda impunes pela justiça brasileira, a terra indígena Raposa Serra do Sol, finalmente, foi reconhecida pelo Estado brasileiro através do Decreto homologatório de 15 de abril de 2005 e reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, como terra indígena originária pertencente aos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingaricó. Um reconhecimento não só aos povos indígenas de Roraima, mas do Brasil que ao longo dos séculos sofrem com invasões dos seus territórios tradicionais indígenas.

Para esse reconhecimento muito contribuíram os conceitos desenvolvidos no âmbito acadêmico sob a orientação teórica de pesquisadores de escol, entre todos Carlos Frederico Marés de Souza Filho, da Universidade Católica do Paraná (Curitiba); de membros ativos do Ministério Público Federal, com fôlego para os grandes temas, podendo mencionar Julio José Araujo Junior (Direitos Territoriais Indígenas. Uma Interpretação Intercultural. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2018);  de advogados experimentados no exercício jurídico de defesa dos direitos indígenas, entre todos Paulo Machado Guimarães (CIMI – Conselho Indigenista Missionário).

Destaco nessa dupla condição Rosane Freire Lacerda (atenção Plácido Arraes, a D’Plácido está demorando em fixar seu selo nessa obra que já é referência antes mesmo de ser editada), antiga consultora jurídica do CIMI, hoje professora da Universidade Federal de Pernambuco. Nesse sentido, seu livro Diferença não é Incapacidade. O mito da tutela indígena (São Paulo: Baraúna, 2009, 675 p.), no qual a autora trata da questão da capacidade civil dos indígenas no Brasil e de sua sujeição ao regime tutelar especial previsto nas leis infra-constitucionais. Ela parte do pressuposto da ruptura histórica com o antigo paradigma da incorporação integracionista dos índios à sociedade e à nação brasileira, no marco da Constituição de 1988. O cerne da obra é compreender em que medida essa ruptura afetou a compreensão e a prática de juristas, de agentes públicos e das instituições do Estado, para superar as resistências que ainda inibem e que atualmente mais se armam não só para reduzir o potencial emancipatório do indígena e de sua capacidade política e civil,  como para conter a luta dos povos originários por autonomia e reconhecimento de sua diversidade étnica e cultural.

Com alcance superlativo, sua tese de doutoramento “VOLVERÉ Y SERÉ MILONES: CONTRIBUIÇÕES DESCOLONIAIS DOS MOVIMENTOS INDÍGENAS LATINO AMERICANOS PARA A SUPERAÇÃO DO MITO DO ESTADO-NAÇÃO”. A tese, escolhida pela Faculdade de Direito da UnB, como a melhor defendida em seu programa de pós-graduação no ano de 2014, recebeu Menção Honrosa da Capes, na edição 2015, do Prêmio Capes de Melhor Tese da área de Direito.

Foto: UNFPA Colombia

Nesse trabalho Rosane  Lacerda trata da emergência do modelo plurinacional de Estado na América Latina a partir das demandas históricas dos povos indígenas. São demandas pelo seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos e jurídicos autodeterminados, no marco do Estado territorial moderno. O foco central está na importância e contribuição dos movimentos indígenas latino-americanos, em especial os da Bolívia, Equador e Brasil, para a construção de um modelo de Estado que desafie e supere as relações coloniais e eurocêntricas de poder e de conhecimento presentes no modelo de Estado-nação. O trabalho busca responder a duas indagações: (a) o chamado modelo “plurinacional” de Estado consiste no simples reconhecimento da diversidade étnica e cultural da sociedade e na concessão, a estas identidades diversas, de direitos específicos? e (b) o Estado Brasileiro, tendo em vista os reconhecimentos do art. 231 da Constituição Federal de 1988, possui os elementos ou pode ser considerado um Estado “plurinacional”? A hipótese é a de que o Estado plurinacional, longe do simples reconhecimento da heterogeneidade e da concessão de direitos específicos, constitui um modelo cujas bases axiológicas e institucionais são construídas a partir da pluralidade de concepções éticas, jurídicas e políticas próprias das diversas identidades “nacionais”.

No caso do Brasil, a hipótese é a de que apesar do reconhecimento da diversidade étnica e cultural expressa no art. 231 da CF/88, o modelo institucional de Estado continua uni-nacional e marcado pelas relações coloniais de poder. O objetivo geral do trabalho é identificar e analisar, a partir das reivindicações e contribuições políticas dos movimentos indígenas e de seus reflexos no movimento do chamado Novo Constitucionalismo Latino-americano, o significado e a importância constitucionais do modelo “plurinacional” de Estado, em especial as possibilidades que este oferece para a ruptura com históricas relações de dominação no interior de Estados marcados pela diversidade étnica e cultural.

A análise teórica que Rosane Lacerda oferece tem por base os estudos sobre a “colonialidade” (Anibal Quijano), em especial as modalidades “colonialidade do poder” (Quijano), “do saber” ou “epistêmica” (Walter Mignolo e Boaventura de Sousa Santos), e “do ser” (Nelson Maldonado-Torres). Considerando a ideia de homogeneidade étnica e cultural como subjacente à concepção da identidade necessária entre Estado e nação, e como uma produção ideológica baseada no não reconhecimento da diversidade, afirma-se a incapacidade do Estado-nação na América Latina para dar conta de sua pretensão de promover uma integração social democrática, justa y solidaria. Procura-se demonstrar, na trajetória histórica do constitucionalismo latinoamericano pós-independência, que os Estados uni-nacionais na região desenvolveram-se e constituem-se enquanto espaços de manutenção das relações coloniais de poder, de ser e de saber, que invisibilizam a diversidade étnico-cultural e colocam os indígenas em condições de subalternidade política e epistêmica. A partir daí são analisadas as históricas lutas de resistência indígena a este quadro, bem como as mobilizações em torno da recente construção dos modelos plurinacionais de Estado na Bolivia (2009) e Equador (2008), como expressões de uma atitude “descolonial” (Quijano), fundada na “desobediência epistêmica” (Mignolo) e na “interculturalidade crítica” (Catherine Walsh). Conclui que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano as demandas indígenas trouxeram a plurinacionalidade como uma tentativa de construção um novo modelo de Estado, em bases descoloniais

Este é, pois, o pano de fundo sobre o qual se desenrola a análise de Tatiana em seu livro e que abre ensejo para descortinar uma hermenêutica jurídica de resignificação do modo de ser indígena, de sua dignidade de povo e da dimensão constitucional de seus direitos.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
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