Sobre derrubar estátuas: a memória como uma arena de disputas

Créditos: PixaBay

  Coluna (Re)pensando os Direitos Humanos, por Ralph Schibelbein, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

        Vivemos tempos intensos. Em meio a pandemia e aos problemas que ela vem escancarando, se reacendeu o debate necessário sobre o racismo e a violência policial. A partir do assassinado de George Floyd, homem negro estadunidense, morto por um policial, o mundo se colocou a refletir sobre os abusos de policiais que agem com muita truculência e pouca assertividade. E principalmente a questionar uma polícia, que enquanto parte da instituição estatal, age de forma a reproduzir um racismo estrutural.  No Brasil esse debate se faz fundamental, visto que temos na escravidão nossa chaga maior, e na nossa polícia ainda predomina resquícios de uma ditadura militar. Racismo e violência policial são temas carregados de história, memória, percepções coletivas e institucionais.

        Nesse contexto, nas últimas semanas, podemos perceber através de notícias midiáticas e das redes sociais, o caloroso debate no mundo inteiro a respeito das derrubadas de estátuas, as quais representam uma insatisfação geral com esses monumentos que carregam consigo uma memória. Mas afinal, o que é memória e como essa se relaciona com o presente?

        A memória é uma arena de disputas. Um lugar misterioso onde o passado se transforma em presente. É uma atualização do passado no presente, trazendo do passado o que interessa no presente e construindo uma ordem para a desordem das experiências vividas. Neste sentido, a memória é um duplo ato de lembrar e esquecer, ordenando hierarquicamente e selecionando o que é ou não importante. Esse espaço é permeado pelo poder que força o esquecimento de algumas coisas e cria a lembrança de outras.

        Devemos ter o cuidado de não confundir passado com história. A chave está em perceber que a memória não é o que aconteceu, mas o que sobrou daquele passado. É a nossa interpretação sobre o ocorrido. E nesse sentido, ela pode ser diferente em cada pessoa. Cabe ressaltar que a memória também pode ser alterada. Existe a memória pessoal de cada indivíduo e a chamada memória coletiva. Assim existem, portanto, lugares de memória. Espaços e símbolos que auxiliam na fabricação de uma memória coletiva.

        As estátuas são uma das formas mais antigas de se prestar homenagem e tornar a memória em um símbolo. Como forma de permanecer, atravessando o tempo e os lugares, os monumentos históricos cumprem um papel de ecoar um passado. Personagens de grandes feitos, símbolos de importantes conquistas, significado e permanência de valores, noção de pertencimento e identidade. Muitos são os motivos e critérios que giram em torno da construção e preservação de patrimônios históricos.

        Muitas vezes, esvaziados de sentido, as estátuas viram parte da paisagem, motivo para fotografia ou até mesmo espaço para pichação e vandalismo. Porém o que chama atenção no cenário atual é o incomodo que esses monumentos podem trazer a partir do que significam e representam.

        Dando sentido ao passado, a memória não é pacífica. O sociólogo Michael Pollack retrata sobre a dimensão conflituosa da memória pelo uso político, onde na medida em que ela é um lugar importante de construção de identidade e da sensação de pertencimento, é muito comum que grupos políticos acionem a memória para poder interferir nas construções identitárias. Neste contexto, a memória se estabiliza, encontra um espaço de visibilidade através dos monumentos. As estátuas derrubadas a partir de uma mobilização social nas últimas semanas, retrata o quanto esses monumentos, carregados de memória, são preenchidos também por relações de poder praticadas pelos grupos hegemônicos, denominando o que deve ou não ser lembrado, e o que deve ou não ser esquecido.

        Essas memórias que não são as amplamente compartilhadas entre os grupos hegemônicos, mas que merecem atenção, e que estão sendo reivindicadas ao longo dos anos, em especial nas últimas semanas, são as memórias conflituosas e silenciadas, que conforme o conceito de Pollack, são as “memórias subterrâneas”. Dar voz a esses indivíduos significa dar a possibilidade de compreender como os múltiplos sujeitos históricos vivenciaram determinado processo.

        Vale ressaltar ainda, que a memória também se relaciona com projetos de futuro, pois a maneira como ordena-se o passado no presente diz muito sobre os caminhos que se quer seguir como sociedade, selecionando algo que legitime percepções do que somos. Neste sentido, pode-se compreender a ação da derrubada das estátuas, pois a memória que a mesma carrega, está sujeita a relacionar-se com projetos coletivos de futuro. É importante questionarmos se essas memórias legitimam as percepções do que somos e do que queremos ser. Analisando as ações conflituosas das estátuas, percebemos a notável (re)significação que os sujeitos estão dando aos monumentos.

        Existem alguns lugares que retratam momentos de um passado terrível e que não se quer de volta. Podemos citar os campos de concentração que foram preservados e atualmente funcionam como museus a céu aberto. Também o próprio Coliseu, palco das batalhas em que escravos eram oferecidos a morte. Para falar da realidade nacional, há como referenciar o pelourinho, espaço para castigar os escravos ou até mesmo a estátua do bandeirante, responsável por capturar indígenas e escravos, Borba Gato. Vale lembrar que espaços e estátuas têm conotações diferentes. Sobretudo na questão de (re)significação.

        Não estamos aqui propondo que se derrube ou destrua os monumentos e os espaços históricos. Tampouco defendemos a permanência de homenagens que afronte nossas ideias de democracia e direitos humanos, tão valiosas. Estamos provocando a reflexão e sobretudo a importância que os lugares e obras de   memória possuem na construção da identidade de um povo.

        Quando algum lugar histórico ou símbolo de homenagem e reconhecimento, passa a ser combatido e atacado, significa que algo está mudando. Resta saber quais serão os critérios e parâmetros para tais medidas.

        Em um país que tem no seu próprio nome a marca da exploração e carrega um presente sem olhar para seu passado, parece ser fundamental que possamos refletir sobre o significado dessas construções históricas. Enquanto houver escola com nome de ditador, estaremos fadados a repetir um autoritarismo sem questionar? Devemos manter ruas com nomes de personagens que lideraram governos autoritários? Está correto a manutenção de praças homenageando políticos comprovadamente inescrupulosos? Mas se fossemos repensar todas homenagens será que sobraria algum humano que no passado não tenha tido comportamento machista, racista, preconceituoso e intolerante? Qual o limite entre o que está pessoa pensava e como ela agia? Devemos tomar cuidado para não cairmos no anacronismo (que é olhar para um passado julgando-o com o olhar do presente.) Porém, é necessário lembrar que refletir sobre o presente a partir das experiências passadas é um caminho para se pensar as ações futuras.

        Memória enquanto arena de embates, está a serviço do poder. E desta forma, conforme o tempo passa e as relações se transformam, heróis podem virar vilões e excluídos da história podem vir a tornarem-se homenageados. O Elevado de São Paulo, construído no regime militar, na gestão Maluf (ARENA) foi batizado de Costa e Silva em homenagem ao segundo governante da ditadura militar no país. Tempos depois, no governo de Haddad (PT) o elevado passou a chamar-se João Goulart, fazendo referência ao último presidente antes do golpe de 1964. Porém até hoje é popularmente conhecido como “minhocão”. A avenida Castelo Branco, em Porto Alegre, em homenagem ao primeiro governante do regime militar de 1964, mudou para avenida da Legalidade e Democracia, para fazer homenagem ao Leonel Brizola, crítico à ditadura, que liderou o movimento pela legalidade e democracia. Porém, atualmente voltou a chamar-se Castelo Branco. A estátua de Luís XV foi derrubada durante a revolução francesa e deu lugar a guilhotina. Atualmente, o país não se vê mais representado no símbolo do absolutismo, tampouco no passado da revolução sangrenta, e adotou um monumento para a concórdia.

        Numa tentativa de dar voz aos projetos futuros e de não silenciar memórias “esquecidas”, os diversos grupos sociais se organizam e derrubam monumentos, os quais não os representam mais, marcando assim, essa grande arena de conflitualidade que é a memória. Fica a lição de que devemos buscar derrubar nossos preconceitos, (re)significar nossos olhares e refletir sobre o tipo de sociedade que queremos construir.

 *Ralph Schibelbein é Professor, Mestre em Educação (UDE/ UI – Montevidéu- 2016), onde estudou a relação da educação e dos Direitos Humanos com o processo de (re)socialização. Pós-Graduado em História, Comunicação e Memória do Brasil pela Universidade Feevale (2010), sendo especialista em cultura, arte e identidade brasileira. Possui licenciatura plena em História pelo Centro Universitário Metodista IPA (2008) e pela mesma faculdade é graduado também em Ciências Sociais (2019). Atualmente é Mestrando em Direitos Humanos na Uniritter e cursa licenciatura em Letras/Literatura (IPA). 

 

 

SEJA  APOIADOR

Valores sugeridos:  | R$ 20,00 | R$ 30,00 | R$ 50,00 | R$ 100,00 |

FORMAS DE PAGAMENTO

 
Depósito Bancário:

Estado de Direito Comunicação Social Ltda
Banco do Brasil 
Agência 3255-7
Conta Corrente 15.439-3
CNPJ 08.583.884.000/66
Pagseguro: (Boleto ou cartão de crédito)

 

R$10 |
R$15 |
R$20 |
R$25 |
R$50 |
R$100 |

 

Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Notícias + lidas

Cadastra-se para
receber nossa newsletter