Comissões Parlamentares de Inquérito e o Estado de Direito

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Bruno Miragem*

As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) são espécies de comissões temporárias criadas por prazo certo, mediante requerimento de um terço dos deputados, visando à apuração de fato determinado, o qual se encontre no âmbito da competência do Poder Legislativo, conforme prevê o artigo 58, §3º da Constituição Federal. Ao longo da história recente do Brasil, as CPIs converteram-se em importantes instrumentos de controle e investigação do poder político, embora não tenham sido poucos os casos, igualmente, em que o modo como se desenvolveram as investigações, imersas em paixões políticas diversas, fizeram com que este importante instrumento previsto pela Constituição deixasse de cumprir de modo satisfatório sua elevada função constitucional.
A criação e instalação da CPI são reconhecidas como um direito da minoria parlamentar, cumpridos os requisitos constitucionais. Neste sentido, podem os requerentes demandar judicialmente, uma vez que o requerimento de sua criação atenda os requisitos constitucionais, na forma prevista no Regimento Interno da Casa, podendo a partir daí, exigir-se sua instalação (STF, ADI 3619, Rel. Eros Grau). São requisitos objetivos considerados para efeito de criação da CPI: o atendimento do número de requerentes; a determinação dos fatos a serem investigados; e a submissão destes fatos à esfera de competência do Poder Legislativo no âmbito do qual é criada a comissão. Neste sentido é que a exigência de fato determinado é importante para o controle das atividades da comissão, de modo que a própria comissão não pode alargar o objeto de investigação para a qual foi criada.

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Foto: Arquivo/Agência Brasil

Distingue-se a CPI das demais Comissões parlamentares, além de sua finalidade, pelos poderes constitucionais de que é investida, especialmente por serem dotadas de poderes próprios das autoridades judiciais. Tais poderes pertencem à Comissão enquanto órgão do Poder Legislativo, não do parlamentar individualmente considerado. Pertence à comissão, enquanto instrumento constitucional que permite a realização das investigações parlamentares.
Contudo, é preciso observar que ao reconhecer o poder da CPI para exercício dos poderes próprios de autoridade judicial, a Constituição indica também os limites e responsabilidades decorrentes do exercício destes poderes. Daí porque o próprio Supremo Tribunal Federal vem delineando quais os poderes que se reconhecem à CPI, afastando dela a possibilidade de determinar busca domiciliar (CF, art. 5.º, XI), interceptação telefônica (CF, art. 5.º, XII) (STF, HC 83515, Rel. Nelson Jobim). decretação da prisão (quando não se configure o flagrante delito) ou a busca e apreensão de documentos (STF, MS 23455, Rel. Néri da Silveira), situações em que apenas o Poder Judiciário poderá autorizar tais atos em face do princípio da reserva de jurisdição (STF, MS 23452, Rel. Celso de Mello). Pode a CPI, contudo, promover a quebra de sigilo fiscal e bancário (STF, MS 23652, Rel. Celso de Mello), o que, todavia, não pode servir para uma devassa indiscriminada dos investigados, exigindo fato que caracterize causa provável da investigação. Note-se que os poderes da CPI, neste particular, submetem-se aos mesmos limites reconhecidos ao Poder Judiciário quando da realização da instrução criminal. Exerce seus poderes apenas em relação às pessoas abrangidas pela competência do respectivo Poder Legislativo onde se localiza (STF, HC 71039, Rel. Paulo Brossard), sendo que em relação a outras autoridades só poderá atuar por intermédio de pedidos de informações.
Não podem os investigados na CPI sofrer tratamento atentatório de sua integridade pessoal, hipótese em que é cabível indenização. No caso da oitiva de indiciados, poderão estes permanecer em silêncio (STF, HC 79812, Rel. Celso de Mello), mesma garantia constitucional reconhecida aos acusados em geral, de modo a evitar sua autoincriminação. (STF, MS 23851, Rel. Celso de Mello). Pela mesma razão é que se assegura que quem preste depoimento em CPI se faça acompanhar por advogado, a fim de preservar sua garantia de ampla defesa prevista na Constituição.
Como regra, os trabalhos da CPI encerram-se com a aprovação de um relatório circunstanciado de suas conclusões, em geral sob a forma de projeto de resolução a ser submetido ao Plenário do órgão do Poder Legislativo para deliberação, devendo suas conclusões ser encaminhadas, se for o caso, “ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores” (art. 58, §3º, da CF/88), bem como a outras autoridades para que promovam as providências que lhe competirem.
Este perfil contemporâneo da Comissão Parlamentar de Inquérito decorre, em primeiro lugar, do amadurecimento democrático nos últimos vinte anos, de modo a privilegiar a necessária competência de investigação e controle legislativo que tem na CPI um de seus principais instrumentos, ao mesmo tempo em que preserva a integridade e dignidade das pessoas investigadas e o êxito da investigação, mediante adequada coleta e exame de informações sobre os fatos objeto de apuração. Daí porque, ainda que atualmente muitas vozes anotem a eventual exaustão das CPIs como instrumento de investigação eficiente no âmbito do controle dos agentes públicos, não se pode deixar de reconhecer seu papel de alta importância, consolidado pelos limites que a Constituição lhe estabelece, a partir do significado construído pelo Poder Judiciário. Eis o perfil da Comissão Parlamentar de Inquérito consentâneo ao moderno Estado de Direito constitucional.

 

*Doutor e Mestre em Direito, professor da Escola Superior do Ministério Público e do UNIRITTER. Advogado e consultor jurídico em Porto Alegre/RS. Co-Autor do livro “Comentários a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul”, publicado pela Editora Forense.

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