Um ano da descriminalização do porte de maconha: um passo tímido diante da catástrofe punitiva brasileira

CNJ Divulgação

Pedro Henrique Pavanatto*

No dia 26 de junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal deu um passo histórico ao formar maioria no julgamento do RE 635.659, declarando que o porte de cannabis sativa para consumo pessoal não constitui infração penal. Após quase uma década de tramitação, a Corte decidiu que condutas enquadradas no art. 28 da Lei de Drogas — desde que dentro de certos parâmetros quantitativos (até 40g ou seis plantas-fêmeas) — devem ser tratadas como ilícitos administrativos, e não mais penais.

Passado um ano da decisão, é necessário avaliar: foi esta uma inflexão transformadora no sistema penal brasileiro ou apenas uma tímida concessão simbólica, incapaz de romper com a lógica de guerra que estrutura a política de drogas no país?

A resposta, infelizmente, pende para a segunda hipótese. O STF perdeu uma oportunidade histórica de enfrentar com a coragem devida a falência da política proibicionista e os impactos perversos da criminalização da pobreza. A Corte se acovardou diante do desafio de romper com o modelo repressivo, optando por um meio-termo que conserva os mecanismos estruturantes do controle penal seletivo.

A decisão relatada pelo Min. Gilmar Mendes reconhece, acertadamente, que a criminalização da posse para uso pessoal viola os direitos fundamentais à intimidade, liberdade e autodeterminação. No entanto, ao manter a ilicitude da conduta e permitir que a distinção entre porte e tráfico continue sendo feita, na prática, pelo policial militar na abordagem de rua — figura desprovida de formação jurídica e frequentemente condicionada por estigmas e discricionariedades — pouco se alterou na realidade concreta da seletividade penal.

Até mesmo a autoridade policial (delegado), que deveria filtrar juridicamente essas ocorrências, continuará sendo frequentemente levada a erro pelos relatos e enquadramentos realizados ainda na rua, perpetuando prisões injustas e processos penais fundados em presunções frágeis e enviesadas. Pois, há um padrão estrutural de “presunção de veracidade” atribuída ao policial militar, mesmo diante de vícios formais e materiais na apreensão das substâncias e na cadeia de custódia dos entorpecentes. Esse quadro confere ao agente policial um poder quase absoluto na definição do destino penal do abordado, convertendo-o, na prática, em juiz instantâneo da liberdade alheia — fenômeno que o STF, lamentavelmente, não enfrentou com a radicalidade necessária.

Na prática, continua sendo possível que jovens negros da periferia, mesmo portando quantidades inferiores ao teto de 40g, sejam presos e processados por tráfico com base em supostos “indícios de mercancia” — como balança, forma de acondicionamento ou troca de mensagens em celular. A “presunção relativa” fixada pela Corte é frágil demais para conter a cultura inquisitorial que impera nas abordagens policiais.

Do ponto de vista político-criminal, a descriminalização parcial do porte para uso pessoal é uma medida necessária, mas absolutamente insuficiente. A guerra às drogas fracassou não apenas em seus objetivos declarados (redução do consumo e da oferta), mas também como política pública racional. Ao contrário, ela potencializou a violência, o encarceramento em massa e a estigmatização de populações vulneráveis.

Verdade é que sob a ótica dos princípios do direito penal mínimo — especialmente o princípio da ofensividade e o harm principle — a criminalização do uso de drogas é incompatível com um Estado Democrático de Direito. Conforme já demonstrado na obra de nossa autoria sobre o tema, não há bem jurídico legitimamente protegido quando o Estado intervém penalmente em condutas autolesivas ou consensuais que não afetam terceiros. A posse de maconha para consumo próprio, como reconhecido na decisão paradigmática do STF, não lesiona qualquer bem jurídico alheio.

Todavia, a manutenção da ilicitude e da repressão administrativa sugere uma equivocada suposição paternalista: a de que o Estado pode compelir adultos a não escolherem estilos de vida considerados arriscados ou “desviantes”. Trata-se de um moralismo jurídico inaceitável sob a ótica liberal e constitucional.

A decisão do STF tampouco enfrentou de maneira estrutural o problema da desigualdade racial na aplicação da Lei de Drogas. O critério objetivo de 40g é importante, mas insuficiente para conter o racismo institucional que marca o sistema de justiça criminal brasileiro. As decisões sobre quem é usuário ou traficante continuarão sendo tomadas, muitas vezes, com base em estereótipos, discricionariedade e seletividade punitiva.

Por isso, celebramos a decisão, mas sem ingenuidade. A Corte deu um passo simbólico, porém insuficiente, hesitante e comprometido com a manutenção de um status quo violento. O STF não ousou legalizar, não teve coragem de descriminalizar de fato, e muito menos de promover uma ruptura com o paradigma bélico da guerra às drogas. Perdeu-se a chance de afirmar, com todas as letras, que o Estado não pode punir condutas que não causam danos a terceiros.

A descriminalização real exige mais do que a retirada do rótulo “crime” — ela requer a eliminação de qualquer forma de sanção penal ou administrativa que restrinja direitos com base em escolhas individuais legítimas. Exige ainda uma revisão estrutural da política de drogas, com legalização, regulação, educação e cuidado.

Enquanto isso não ocorre, seguiremos testemunhando a continuidade da repressão seletiva, a superlotação das prisões e a destruição de vidas em nome de uma guerra fracassada. O futuro que queremos — se vier — será de liberdade, ciência, e política pública baseada em evidências. Por ora, um ano depois, seguimos com o gosto amargo de uma decisão que poderia ter sido histórica, mas se limitou a ser apenas palatável para os ministros do Supremo.

  • Advogado Criminal, Ativista em Direitos Humanos e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Articulista do Jornal Estado de Direito.
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