Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (PPGDH/CEAM/UnB), 2024, 335 fls.
Integrei a Banca Examinadora, presidida pelo Orientador professor Menelick de Carvalho Netto e formada ainda pela professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelos professores José Carlos Moreira da Silva Filho, da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Mamede Said Maia Filho, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Desde logo, com a dupla satisfação de um reencontro. Primeiro, pelo que política e epistemologicamente nos liga, já anotado por Mauro nos agradecimentos com que abre a tese, no que me toca por, diz ele, lhe ter apresentado “ao Direito como libertação e me ter acolhido, desde a graduação, na reflexão crítica da matriz teórica de O Direito Achado na Rua, ‘furando os colchões da rotina e da opinião vulgar’. Posso dizer, mais de três décadas depois desse encontro, que aqueles anos de formação foram decisivos e me orientam na caminhada desde então”.
Depois, acompanhando o seu percurso, no que tenho registrado em comentários e prefácios a trabalhos seus – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/ – NOLETO, Mauro Almeida. Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, ao me debruçar sobre seus livros, um deles fruto da dissertação que tive o gosto de orientar, na Faculdade de Direito da UnB para recuperar do autor, estudos mais avançados – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/ – NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021, que prefaciei, e no qual Mauro analisa “a temática dos direitos (subjetivos) humanos enquanto bases para uma práxis jurídica emancipatória, na qual a hermenêutica pode assumir um papel de destaque no reenquadramento dos significados jurídicos das práticas sociais, conforme as pautas éticas de realização de uma ordem democrática. Os direitos humanos são encarados aqui sob a luz de sua historicidade e complexidade, afastando-se as interpretações idealistas e naturalizadas”.
Sobre a sua tese, tomo o resumo:
A tradição de conciliação via anistia tem prevalecido no Brasil desde os primórdios da nacionalidade e se mostrou ainda mais presente ao longo de todo o período republicano, desempenhando papel importante nas “aberturas”, isto é, nas transições para os regimes de restauração da constitucionalidade democrática. Mas, há muito silêncio sobre como se deu a fixação dessa tradição na rotina institucional e política. As anistias parecem ter conseguido, pelo menos parcialmente, promover um duplo silenciamento: dos crimes abrangidos pelo seu comando de esquecimento e dos próprios fatos e circunstâncias políticas que determinaram as sucessivas edições da medida ao longo da história republicana. No entanto, a concessão da medida nem sempre conseguiu de fato impedir a irrupção de novos surtos de violência política, insurreições e até mesmo de golpes de Estado. Ao contrário, pode ter contribuído para a manutenção desse quadro latente de ruptura institucional. Por outro lado, a promessa de esquecimento dos crimes anistiados também não foi cumprida à risca, como o demonstra a luta por direitos de reparação ou restituição de status civil e militar de muitos grupos de anistiados durante todo o período republicano. A tradição conciliatória, em que as anistias se inserem, por muitas vezes silenciou as vozes dissonantes, as críticas aos abusos e distorções cometidos com o emprego concreto da medida e a sua relação essencial com o “estado de exceção” e com a impunidade dos abusos da repressão, tudo em nome de um uso idealizado e exemplar, em que a anistia é vista como instrumento (mágico) de pacificação pelo silenciamento das disputas passadas. A hipótese aqui aventada é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação.
Aliás, antes mesmo de completar a leitura da tese, vali-me desse resumo, para situar artigo de opinião recém publicado – https://brasilpopular.com/autoanistia-uma-violencia-inconstitucional-e-inconvencionaldo-delinquente-a-fim-gerar-sua-impunidade/. Com efeito, bem na linha de advertência que a tese traz, vi ser urgente confrontar consulta pública aberta no Senado, nos termos regimentais, a propósito do PROJETO DE LEI nº 5064 de 2023 (PL 5064/2023), que concede anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.
A autoria da proposição é do General-Senador Hamilton Mourão (REPUBLICANOS/RS), sabidamente, basta conferir seus atos e pronunciamentos, um possível beneficiário futuro a depender do curso das investigações e dos indiciamentos, assim como de seu anterior superior no governo, a quem serviu e escudou com fidelidade.
Curiosamente o projeto exclui da anistia os executores dos delitos e serve de escapismo complacente, aos que dele se beneficiam ou se beneficiarão. É a lição de Maquiavel: “para os amigos tudo; para os inimigos a lei”. Diz o projeto: “Esta Lei não alcança as acusações e as condenações pelos crimes de dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa, porventura ocorridas em razão das manifestações indicadas no caput deste artigo”.
A justificativa do projeto me soou como um acinte à dignidade da política e uma afronta à Justiça: “As manifestações ocorridas no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, constituem conduta deplorável, que merece nossa reprovação, pelo nítido caráter antidemocrático do movimento. Todavia, não se pode apenar indistintamente aqueles manifestantes, pois a maioria não agiu em comunhão de desígnios. Ocorre que os órgãos de persecução penal não têm conseguido individualizar as condutas praticadas por cada um dos manifestantes. Diante dessa realidade, é inconcebível que sejam acusados e condenados indistintamente por crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.
Mas, simultaneamente, uma confissão e uma mobilização, sem justa causa e sem base constitucional ou convencional ((sistema internacional de direitos, especialmente Corte Interamericana de Direitos Humanos), para impor silêncio perpétuo à delinquência que tolerou.
Por isso que, no meu artigo, indiquei ter retirado a expressão silêncio perpétuo, de tese que estou lendo para defesa ainda neste mês de setembro (Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Faculdade de Direito da UnB. Claro que considerei haver um recorte temporal na tese, para cumprir cronograma de apresentação do trabalho. Mas salientei que a consideração do autor, na tese, é atemporal: “ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os ‘crimes conexos’, as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional”.
É certo, também, que a consulta refere a mais uma iniciativa inscrita no móvel da anistia como esquecimento, como uma forma de “passar pano na delinquência política”. Assim que em outra oportunidade, tive ensejo de abordar o tema, conforme https://brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/, a propósito de abonar entendimento que considero certo, que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).
Pois, na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo (cf. livro que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf), e que teve em José Carlos Moreira Silva Filho, seu mais orgânico e diligente co-organizador, incluindo um dos desdobramentos a série de vídeos-documentários produzidos pela UnBTV, parte do projeto de edição.
Em relação ao projeto submetido a consulta, não hesito em dizer que ele ilustra a metáfora do gato que quer se esconder, mas deixa seu rabo comprido de fora. Pois, apesar da astúcia, é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa dessa proposta.
Com efeito, Mauro chama a atenção para isso nas suas conclusões, que o sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento de medidas de autoanistia, sobretudo quando elas deixam claro a intenção de acobertar crimes contra a humanidade e os direitos humanos. Mauro deixa isso claro ao trazer a confronto, especialmente quanto ao julgamento no STF na ADPF 153, a sentença no caso Gomes Lund e outros versus Brasil (caso da Guerrilha do Araguaia)
Também como já afirmei – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – estar seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.
Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.
Penso que a tese de Mauro Noleto incide agudamente na desconstrução de algumas falácias. A primeira, sobre recusar a posição gatopardista de transição política, como conciliação, esquecimento de dissensos e antagonismos, que querem naturalizar restaurações dos processos de rupturas na História, banalizando a sua crueza e a letalidade que neles se desencadeia, na atenuação dissimuladora de uma cordialidade generosa e pacificadora que nos caracterizaria, disfarçando a violência própria de uma experiência que se mantêm neocolonial, apesar da descolonização sem o a decolonialidade que poderia superá-la. Por isso Mauro fala em silenciamento. Para ele, um cálculo político, que impõe a condição do esquecimento: “os militares não trabalhavam com um acordo, mas com um plano para aprovar o projeto de anistia em condições ‘inegociáveis’ quanto ao tratamento legal do seu passado”.
Veja-se o Sumário da tese:
Introdução
Capítulo I – Anistia e Exceção
- Anistia: o esquecimento excepcional comandado
- Anistia à brasileira: repressão e conciliação controlada
- O estado de exceção e sua emergência na história republicana brasileira
- Anistias de transição em revista
Capítulo II – A transição da Monarquia para a República: uma “anistia inversa” moderniza a tradição
- A abolição do “passado negro”: anistia?
- República proclamada: golpes, guerras e anistias
- Marechais no Poder: consolidação militar da República
- Estado de sítio e anistia na Primeira República: a exceção ordinária
- Anistiar e Punir: a anistia teratológica
- A judicialização da anistia: o “caso Trindade” (crimes conexos) e o julgamento da constitucionalidade da “anistia inversa” (razão de Estado)
- O Atentado de 5 de novembro: epílogo do florianismo e da transição.
Capítulo III – A República em transição: revoluções tenentistas, anistias e a constitucionalização efêmera (1922-1934)
- Tenentismo: revolução, exílio e anistia
1922: “sangue nas areias de Copacabana”
1924: a “Revolução Esquecida”
Clevelândia
Depois da Coluna Prestes: exílio e luta pela anistia
- Outubro de 1930: “façamos a revolução antes que o povo a faça”
- Governo Provisório: entre duas anistias
- A pressão por anistia “ampla” na Constituinte de 1933/1934
Capítulo IV – A transição para a ditadura do Estado Novo (1935-1937).
- Sob estado de (exceção) Segurança Nacional: o “plano inclinado”
- A “Lei Monstro”
- O inimigo é vermelho: a “revolução” que virou “intentona”
- A reforma da Constituição: “o fetichismo constitucional vai muito bem nos tempos normais, agora não!”
- A “Segurança”: um Tribunal para “julgar” os inimigos
- Estado Novo: “o golpe silencioso” sem anistia.
Epílogo – A anistia de 1945: “mil bocas em silêncio, murmurando”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES DOCUMENTAIS
IMAGENS
ANEXOS
Por essas razões, meu relevo na leitura da tese de Mauro Noleto está na sua tomada de posição relativamente a vencer os limites de entendimento, seja sob a perspectiva linguística, seja sob o enfoque hermenêutico, ou da critica teórica, para localizar e ampliar “as iniciativas de recuperação da memória e da história desse tempo (p. 19), de modo a resgatar a anistia extorquida ou o uso parasitário do seu conceito, para romper o silêncio perpétuo, tal como indica o título de sua tese.
Sua abordagem reclama a necessidade da ousadia e da novidade na concepção política do presente e do futuro. E, de algum modo, uma disposição crítica da política e da história, com apoio em boa base conceitual para escovar a contrapelo e permitir que se revele um singular coletivo, uma passagem entre o passado e o futuro.
Em artigo da minha Coluna O Direito Achado na Rua, no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/), referi-me ao livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília). No livro, os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) designam uma justiça de transição reversa, que insiste em preservar essa astúcia de acobertamento da violência e da afronta aos direitos, numa exceção que parece não ter fim na sua recorrência.
Em outro texto -https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/, lembrei, com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, voltando ao nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade), aliás citado por Mauro, que também participa da obra (embora associando sistema eleitoral e justiça de transição, pra expor O Direito Eleitoral da Ditadura, as aparências enganam?) que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade.
Teria sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Reivindicar a verdade e resgatar a memória, como referências éticas contribui para estancar a mentira na política. Referi-me à grande pensadora Hanna Arendt exatamente para reter, sobre esse tema (cf. meu Memória e Verdade como Direitos Humanos in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 99-100) a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Ou, dito poeticamente, com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos meses de seu falecimento (11/07/23): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).
Mauro afirma (p. 32), que a hipótese aventada na tese “é a de que, ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os “crimes conexos”), as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional ao longo do tempo, naturalizando tanto o recurso à violência para a tomada do poder, quanto a repressão política de exceção aos “inimigos” do Estado. Mas, ao criar restrições, condições e exclusões, de modo a satisfazer interesses políticos dos regimes de força, as anistias de transição entram em contradição com o seu sentido comum, o esquecimento (silêncio perpétuo) e até mesmo a conciliação”.
A questão que lhe ponho é simples: Há acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” ou a outros fautores sabidamente perpetradores de crimes, imprescritíveis e não anistiáveis? Quando pergunto se há horizonte é no sentido de aferir as condições de completude da transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho do Mauro. A tese, realmente conduz à admissão dessa possibilidade que coincide em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100). Sobretudo em meu artigo de 1987, quando então, eu tinha na constituinte, na anistia e na busca da memória e da verdade para resgatar a política e calibrar a própria transição entre o regime ditatorial e a instalação de um regime de enunciado democrático, as condições de possibilidade para esse trânsito.
Em relação à anistia, vou ao meu texto (Humanidades, 1987: 26-28): anistia, neste contexto, define responsabilidade, não apenas função corretiva que se exerça por meio do esquecimento de comoções já conjuradas; a sua substância real lhe define o título político: é inevitável extrair da liberdade a nova ordem para a qual ela é mediação necessária e impedir que a velha ordem sustente ainda os seus interesses com a reivindicação de uma interpretação obscurantista.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |