Coluna Assédio Moral no Trabalho
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Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.
– Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia.
(Fabiano, Vidas Secas)
Vidas Secas
Vidas Secas é o quarto romance do escritor brasileiro Graciliano Ramos, escrito entre 1937 e 1938, publicado originalmente em 1938 pela editora José Olympio.
A obra é inspirada em muitas histórias que Graciliano Ramos acompanhou na infância sobre a vida de retirantes, lembrando que nascera em Quebrângulo, Alagoas (1892-1953).
Cuida-se de uma família composta inicialmente por Fabiano, Sinha Vitória, duas crianças, a cachorra Baleia e um papagaio.
Aliás, a cadela Baleia é considerada uma das mais famosas personagens na literatura brasileira.
Os efeitos do flagelo da seca são demonstrados na contínua fuga da família. Também, a exploração do patrão, a arbitrariedade da classe dominante, a pesada mão estatal, o abuso de poder, a íntima relação da Igreja com o Poder dos Coronéis são temas presentes.
O livro principia-se com a mudança da família e a insólita morte do papagaio quando a fome apertara e não existira sinal de comida. Assim:
” Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo… Ordinariamente a família falava pouco”.
A hostil paisagem do sertão nordestino é pincelada – “A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos” – e a retirada em fuga é a única saída na busca pela sobrevivência – “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos”.
Depois de tanto andar numa peregrinação modorrenta, vislumbra-se uma parada. Fabiano, o pai, “Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto” e apesar do fazendeiro tentar expulsá-lo, acaba por empregar o vaqueiro.
Contudo, junto com o trabalho vem a exploração. Deste modo:
“Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
(…)
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
(…)
Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.”
E, se não fosse o bastante, a humilhação faz-se presente. Assim:
“O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?”.
Ao final, a certeza de sua completa dispensabilidade. Desta forma:
“Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituísse.
(…)
E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.”
A desesperança é então, inevitável. Assim:
“Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto.
Nem valia a pena trabalhar.”
No drama, aparecem ainda, o soldado amarelo que personifica a polícia abusiva, arbitrária e truculenta e os cobradores da prefeitura, como exemplos da ineficiência corrupta do Estado. Enfim, todos personagens atualíssimos.
Ainda assim, o inferno é outro lugar. Para a mãe, Sinha Vitória, ao explicar ao menino mais velho, diz que é local ruim com espetos e fogueiras:
“- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.”
E, um lampejo de esperança parece resistir. Destarte:
“Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.”
Antes de encerrar, necessário enfocar a personagem Baleia, claramente humanizada ao reverso das demais personagens, ignorantes ou embrutecidas. E, o capítulo IX que trata de sua morte é ímpar, merecendo ser lido e relido e lido novamente:
“A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. (…)
Então Fabiano resolveu matá-la. (…)
viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pos a latir desesperadamente. (…)
E Baleia fugiu precipitada, (…)
Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. (…)
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito. (…)
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”
Tocante!
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira, sendo absolutamente contemporâneo. Situações como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, humilhação no trabalho estão ainda presentes permeando nosso cotidiano e nossa moral: “E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.”.
Referências
Dica: Vidas Secas em filme.
Belíssima película brasileira de 1963, do gênero drama, dirigida por Nelson Pereira dos Santos e baseada no livro homônimo de Graciliano Ramos.
Filmada em Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, sertão de Alagoas, foi o único filme brasileiro a ser indicado pelo “British Film Institute” como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca. Em novembro de 2015, entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Neste filme fica perceptível a influência marcante do neorrealismo italiano na obra do diretor Nelson Pereira dos Santos e tornou-se um ícone dos mais conhecidos do movimento chamado de Cinema Novo, que abordava problemas sociais do Brasil.
No caso, de novo, a narrativa cuida da miséria da família de retirantes que persiste em contínuas secas que assolam o sertão brasileiro.
Ivanira Pancheri é Articulista do Estado de Direito, Pós-Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2015). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (1993). Mestrado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (2000). Pós-Graduação lato sensu em Direito Ambiental pela Faculdades Metropolitanas Unidas (2009). Doutorado em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é advogada – Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Esteve à frente do Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo. Participa em bancas examinadoras da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como Professora Convidada. Autora de artigos e publicações em revistas especializadas na área do Direito. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, Processual Penal, Ambiental e Biodireito. |