Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito
Para o filósofo Nietzsche, o processo de formação do indivíduo deveria ter por finalidade “tornar-se aquilo que se é”. Oposta à tradição socrática do “conhece-te a ti mesmo”, essa máxima propõe tomar a vida como uma obra e não como uma trilha já rascunhada. Para tanto, deve-se sequer suspeitar aquilo que se pode ou deve ser, semelhante ao trabalho do artista cujo sentido de sua obra só se dá enquanto acontece o trabalho. Nessa postura, se aceita o trágico (as perdas e as violências da vida) não como o prenúncio de um destino, mas como combustível para a invenção de um humano singular e potente. Essa explanação filosófica abre espaço para uma reflexão atual: como se dá o processo de “tornar-se jovem” nas periferias do Brasil? Importante esclarecer que o ser jovem é uma construção social da Modernidade, amparado em discursos científicos. Saberes que se disseminaram no início do século XIX, a partir de necessidades Estatais de conhecer a população para adequá-la ao emergente sistema de produção capitalista. Processo que envolveu práticas individualizantes – as técnicas disciplinares da escola, fábrica, etc. – e o estudo de fenômenos coletivos. Estes saberes acoplaram-se as conquistas em Direitos Humanos, produzindo a noção de grupos sociais, diferenciados por suas “especificidades” (Foucault, 2008).
Um dos grupos sociais que emerge com força já no século XX é o do jovem. Ampara-se em concepções sociológicas – “um ser no auge da saúde, aptidão produtiva e utilidade social” – e psicológicas – “alguém em ebulição por impulsos e hormônios”. A partir da década de 60, passa a ser valorizado pela imagem de “revolta”, necessária para a consolidação da democracia. Já nos anos 80, com a crise do Estado de Bem Estar Social e o aumento do desemprego, o jovem deixa de ser “o futuro do amanhã” para tornar-se “o problema de hoje”, criando uma associação entre juventude e violência (Gonzales e Guareschi, 2008). Nessa época disseminam-se bolsões de pobreza, como os guetos negros nos EUA e as favelas no Brasil. O cotidiano dos guetos envolve processos sociais complexos que
atuam sobre a subjetividade de seus moradores. Os mais corrosivos são as barreiras invisíveis com a cidade e a criação do estigma, que forma identidades maculadas pelo endereço postal (Waquant, 2004). Por outro lado, a heterogeneidade de seus moradores produz um maior intercâmbio cultural que propicia manifestações como o samba, o hip hop e o funk. Porém o paradoxo entre os ícones hostis sobre o gueto e a afinidade interna, gera uma ambivalência entre os moradores. Apesar das favelas constituírem-se sobre o campo da ilegalidade (a apropriação de terrenos, o transporte irregular, as ligações diretas de luz, etc) estas práticas não ferem noções internas de “trabalhador” e “bandido”. Mesmo assim, os discursos sobre as favelas seguem produzindo uma só imagem para fora: a do criminoso armado e perigoso.
O jovem de perifeiras talvez seja o que mais sinta os efeitos dessa estigmatização. Diferenciado dos demais jovens da cidade, sente-se representado pelo rapper que ataca as forças policiais com suas músicas ácidas. A melodia realiza o duelo que ele não pode honrar quando foi revistado pela polícia. Por outro lado, sente medo e raiva diante de tiroteios provocados pelo tráfico de drogas, após um dia de trabalho. Além disso, recebe pelas músicas os convites da sociedade de consumo globalizada. A maior parte dos jovens que frequenta os bailes funks, veste-se como rappers ou reúne-se nas esquinas das periferias não são criminosos. Mas sua proximidade com uma cultura vista como marginal, os coloca em uma encruzilhada. Uma de suas opções é incluir-se em políticas públicas compensatórias, tornando-se sujeitos de “oportunidades” de subempregos. Relações que entendem sua criatividade e rapidez, como sinais de uma malandragem nociva. Ou então, podem optar por assumir a identidade do “bandido”, projetada pela mídia e atualizada pela polícia.
“Tornar-se aquilo que se é” para o jovem que vive em periferias brasileiras é uma armadilha, pois a poesia que o sustenta abraça a morte, seja ela política ou física. Talvez coubesse, nesse caso, um retorno à filosofia de Nietzsche, permitindo-se abraçar o trágico da vida em favelas como potencia criativa para seus jovens, ao invés de buscar higieniza-la em torno de dicotomias entre o “bem” e o “mal”.
Fernanda Bassani Doutoranda em Psicologia Social e Institucional – UFRGS
Psicóloga Atua no sistema penitenciário do Rio Grande do Sul há 10 anos Email: febassani@hotmail.com