Coluna Direito à Cidade
Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Teorizar
A palavra “teoria” evoca, desde a origem grega, a ação contemplativa, e também o pensamento racional. Teorizar é recorrer à abstração, à generalidade, indispensáveis para que a teoria seja verificável. Ela, afinal se volta a descrever situações gerais, embora a referência prática seja fundamental para seu processo construtivo.
Uma teoria do Direito à Cidade, por consequência, precisa obedecer a esse arranjo. Ela enuncia pressupostos gerais e, ao mesmo tempo, os constrói a partir de uma análise atenta da realidade. Henri Lefebvre, na obra “O Direito à Cidade”, da década de 60 do século XX, estava atento a isso e, ainda, ao papel da interdisciplinaridade na construção desse objeto de estudo.
Símbolo de reivindicações
A expressão “Direito à Cidade” é, sabidamente, polissêmica. Durante décadas, serviu como bandeira para a mobilização de inúmeros atores e movimentos sociais. Luta pela moradia adequada, pelo transporte público, pela fruição do espaço público e por novas maneiras de habitar a cidade e de interação social no espaço urbano aproveitaram-se de sua potência semântica, sempre generosa em abrigar um amplo horizonte de reivindicações.
Tal polissemia é democrática por natureza, mas isso não elimina a necessidade de definição de parâmetros conceituais. Mais do que mero exercício nefelibata, esse esforço é um passo atrás importante para a ação prática. E também uma maneira de impedir o sequestro linguístico da expressão por discursos menos progressistas e menos comprometidos com a ideia de uma vida urbana em que o convívio com a diferença seja a mola impulsionadora da emancipação.
Qual o pressuposto básico desse conceito? O de que o direito à cidade se apresente como direito à vida emancipada nas cidades. Vida emancipada é uma ideia pouco tangível, mas parece lógico associá-lo a caracteres como a autonomia, a liberdade e a solidariedade. Desde que Max Weber concebeu a cidade no interior da ideia de poder não-legítimo, parece claro que a vida urbana tem um papel essencial nas transformações da sociedade nos últimos séculos. Revoluções, como a francesa, e o turbilhão de acontecimentos que marcou o século XX, não seriam possíveis sem que os cidadãos estivessem próximos, partilhando experiências e valores comuns.
Disciplina essencial
A clareza acerca do direito à cidade é imprescindível para o avanço do direito urbanístico no Brasil, país que, segundo dados do IBGE de 2010, conta com 86% de sua população vivendo nas cidades. Essa disciplina do saber jurídico adquiriu enorme centralidade a partir das manifestações que tomaram as grandes cidades brasileiras em junho de 2013. Até então, a cidade – e seus problemas – era vista de maneira fatiada. As funções essenciais da cidade, quais sejam, o habitar, o se deslocar e o trabalhar não apareciam, ao menos para parte expressiva do debate público do país, entrelaçadas. Tampouco eram vistas sob um enfoque mais amplo pelo direito.
O espaço urbano, para o pensamento jurídico, sempre foi o resultado de uma somatória de relações sociais mediadas normativamente, dentro de um território também regulado segundo pressupostos que ora pendiam para o exercício das funções típicas do Estado, ora recaíam sob a tutela dos interesses individuais próprios do direito de propriedade. Ao se deslocar para o âmbito de objeto do direito urbanístico, o direito à cidade inaugura uma nova maneira de se pensar juridicamente a polis. Esse novo olhar pode, aliás, se irradiar pela maneira segundo a qual se enxerga os direitos sociais inscritos no caput do art. 6º da Constituição Federal de 1988. De uma maneira ou de outra, todos encontram na cidade o seu espaço de materialização, enfeixados, podem conduzir à ideia de vida emancipada nas cidades, além de podem servir de conteúdo substancial da ideia de “funções sociais da cidade”, prevista no caput do art. 182 da Carta Cidadã, regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), que completou 15 anos em 2016.
Planejamento das cidades, regulação do mercado imobiliário, interpretação dos direitos derivados da tradição privatística, compreensão das interfaces do direito registrário com o espaço urbano, interação com a proteção jurídica do meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito administrativo, todas essas áreas podem sofrer impactos semânticos e conceituais no momento em que a cidade passa a ser o centro, e não a consequência, de sua aplicação.
Acima de tudo, é uma forma de garantir ao direito o protagonismo que lhe cabe neste debate. É um protagonismo humilde, que reconhece o seu lugar (tardio) no debate sobre o direito à cidade, mas é também um protagonismo decisivo, capaz de assegurar normatividade a esse conceito.