Alice Bianchini*
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, Resolução 492/23)[1] traz apontamentos sobre o trabalho doméstico das mulheres e denuncia vários de seus desdobramentos, todos prejudiciais às mulheres:
No que diz respeito ao trabalho, no Brasil, mulheres, em geral, ainda se dedicam muito mais a afazeres domésticos e a trabalhos maternos do que homens, o que faz com que eles ocupem postos laborais mais valorizados e mais bem pagos, e elas fiquem em situação de dependência financeira deles. Mesmo em trabalhos remunerados, muitas mulheres são levadas a ocupar cargos análogos ao trabalho doméstico. Quanto à política, mulheres continuam sub-representadas. Isso ocorre em parte porque entende-se que as mulheres são inaptas para ocuparem cargos públicos ou então porque não são dadas oportunidades para elas. Ao serem excluídas desse meio, as mulheres perdem a chance de dar ênfase a pautas necessárias para melhorar questões relevantes à desigualdade de gênero. Esses são apenas exemplos.
Ainda de acordo com o mesmo documento[2],
A divisão sexual do trabalho implica a naturalização da responsabilidade da mulher pelo trabalho doméstico e de cuidado e tem efeito também na sua inserção no mercado de trabalho, seja por discriminação com base nos estereótipos, seja pela dificuldade em conciliar família e trabalho, decorrente da falta de serviços apropriados e de baixo custo destinados ao cuidado das crianças, além da incompatibilidade dos horários de trabalho com os de escolas e creches. O fato de as mulheres brasileiras contarem, em média, com mais anos de estudos do que os homens, mas manterem seus salários inferiores aos deles é um reflexo desta diviso. Da mesma maneira, a progresso na carreira das mulheres fica sujeita ao “teto de vidro”, reduzindo a participação feminina nos cargos de poder decisório e as chances de pautar a prevenção e o enfrentamento das violências de gênero.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-c) do IBGE[3], em 2022, as mulheres dedicavam, na média, 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado enquanto os homens dedicavam 11,7 horas. O cenário piora: o estudo mostra que 86% das mulheres entre 14 e 24 anos cuidam dos afazeres da casa, enquanto os homens – na mesma faixa etária – são apenas 69%.
Essa situação é ainda mais drástica quando se trata das mulheres negras: 32% delas não podiam ingressar no mercado de trabalho devido às responsabilidades com os cuidados, enquanto para as brancas essa porcentagem era de 26,7%. Mais dados:
– Homens dedicam tempo a estas tarefas quando moram sozinhos. Elas, em contrapartida, quando dividem a casa.
– As mulheres se sobressaem no preparo de alimentos e lavação de louça, cuidado com roupas, limpeza/arrumação da residência, pagar contas (contratar serviços e orientar empregados também), fazer compras e cuidar dos pets. Os homens só se destacam em uma atribuição: fazer reparos ou manutenção.
Mais um recorte por raça: mulheres pretas (38%) são as que mais cuidam de outras pessoas, seguidas por mulheres pardas (36,1%).[4]
Outra pesquisa, agora elaborada por Lucila Nejamkis, sobre o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, traz as seguintes informações[5]:
– O trabalho doméstico e de cuidado não remunerado representa, em média, 21,3% do PIB da América Latina e Caribe. Além disso, as mulheres contribuem com 75,5% da atuação. A informação é da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
– Ainda na América Latina, 14,8 milhões de pessoas se dedicam ao trabalho doméstico remunerado. Do total, 91,1% são mulheres e 72,3% delas não possuem acesso a emprego formal. A informação é da Oxfam, Desigualdad S.A.
– Em todo o planeta, o trabalho doméstico e de cuidado, não remunerado ou mal remunerado movimenta cerca de 10,8 bilhões de dólares por ano. A informação é da Oxfam, Desigualdad S.A.
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre) mostra que 65% do trabalho de cuidado é realizado por mulheres. Além disso, caso fosse remunerado, o esforço representaria 8,5% do PIB nacional.
Estudo preparado em conjunto pelo Escritório Regional para as Américas e o Caribe da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) e pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) “Rumo à construção de sistemas integrais de cuidados na América Latina e no Caribe: elementos para sua implementação”[6] mostra que alguns países da América Latina já possuem iniciativas e até legislações para aumentar a visibilidade e reconhecer o trabalho de cuidado das mulheres:
Argentina — Possui um projeto de Sistema Federal de Cuidados, desde 2020, para construir políticas públicas que reconheçam o cuidado como trabalho.
México — Foi aprovada pela Câmara, em 2020, uma reforma que “eleva o direito ao cuidado ao status constitucional”. Ainda existem discussões sobre a elaboração de um Sistema Nacional de Cuidados.
Uruguai — Criou um Sistema Integrado de Cuidados, em 2015. É o país sul-americano pioneiro nestas discussões.
Agora, com a Lei 15.069/2024 (que institui a Política Nacional de Cuidados), o Brasil se soma a países que possuem normativas sobre o tema da Política de Cuidados.
Voltando aos números trazidos nas pesquisas mencionadas no presente artigo, fácil a compreensão de que “a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado gera uma importante pobreza de tempo e impõe fortes barreiras para a o exercício dos seus direitos em outros âmbitos da vida, como a conclusão das suas trajetórias educacionais e de formação profissional, a inserção no mercado de trabalho e na vida pública em igualdade de condições com os homens, comprometendo suas possibilidades de geração de renda e a sua autonomia econômica. Isso contribui significativamente para a reprodução da pobreza e das desigualdades sociais.”[7]
Em relação à remuneração feminina, o impacto direto dos trabalhos domésticos e de cuidados é trazido no “2° Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios”[8], divulgado no segundo semestre de 2024: as mulheres recebem 20,7% a menos do que homens em mais de 50 mil empresas – acima de 100 empregados. Abaixo, alguns outros achados:
– A remuneração média de uma mulher negra é ainda menor: R$ 2.745,76.
– 31% das empresas possuem diferença salarial entre homens e mulheres de até 5%.
– Mesmo em cargos de liderança, mulheres ganham 27% menos que os homens.
– Apenas 22,9% das empresas têm política de auxílio creche, enquanto só 20% possuem política de licença paternidade/maternidade estendida.
– Em 53% negócios, mais de 26 mil, não havia pelo menos três mulheres em cargos de gerência ou direção da empresa.
Na mesma data em que o relatório foi divulgado, os ministérios das Mulheres e do Trabalho e Emprego lançaram o “Plano Nacional de Igualdade Salarial e Laboral entre Mulheres e Homens”[9]. O objetivo é combater a disparidade salarial, além de estimular a entrada e permanência da mulher no mercado de trabalho.
O documento lista 79 ações, em três eixos distintos: acesso e ampliação da participação das mulheres no mundo do trabalho; permanência das mulheres nas atividades laborais; e ascensão e valorização profissional das mulheres no mundo do trabalho. Entre as ações estão:
– Capacitar mulheres sindicais sobre a Lei de Igualdade Salarial.
– Capacitar mulheres de 15 aos 29 anos, em situação de vulnerabilidade social, para atividades de alta qualificação no comércio exterior.
– Capacitar empreendedores de micro e pequeno porte sobre empreendedorismo inovador de base tecnológica.
– Garantir o cumprimento das contratações públicas com percentual mínimo de mão de obra de mulheres vítimas de violência doméstica, conforme determina a legislação.
– Elaborar cartilha de direitos para as mulheres no trabalho remunerado e proteção à maternidade.
– Promover a concessão de bolsas de doutorado sanduíche e pós-doutorado para mulheres negras, indígenas, quilombolas e ciganas.
– Ampliar a oferta de vagas em creches e universalização de pré-escolas públicas.
– Implementar projeto de qualificação para jovens mulheres em situação de vulnerabilidade.
Todas essas ações não serão suficientes para anular a desigualdade de gênero, mas podem amenizar, em muito, as injustas disparidades existentes em nossa sociedade. E, importante ressaltar que a diminuição da desigualdade impacta diretamente na diminuição da violência de gênero.
Ainda no tocante à violência de gênero, convém ressaltar que a condição econômica da vítima tem sido apontada por elas como motivo para permanecer no relacionamento violento. É o que mostra a Pesquisa DataSenado sobre “Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”, de novembro de 2023[10], que identifica os motivos pelos quais as mulheres não fizeram nada em relação à violência. Com o mesmo percentual de 23% aparecem as duas principais motivações: depender financeiramente do agressor e preocupação com a criação dos filhos.
É importante que os homens se sensibilizem sobre a importância da participação deles nos afazeres domésticos e de cuidados, bem como dos impactos negativos que a desigualdade exerce na vida das mulheres e de toda a sociedade. É preciso que dividam igualmente as tarefas e estimulem modelos de comportamento igualitários entre filhos(as).
Sobre a autora Alice Bianchini – Doutora em Direito penal pela PUC/SP. Vice-Presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas; Coordenadora da Pós-Graduação Direito das Mulheres (meucurso.com.br). Autora de vários livros e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, dentre eles: Manual de Direito Eleitoral e Gênero: Aspectos Cíveis e Criminais, Juspodivm, 2024; Crimes contra mulheres, Juspodivm, 2024; Crimes contra Crianças e Adolescentes, Juspodivm, 2024; Lei Maria da Penha, Tirant, 2021; Feminismo(s), em coautoria com Sílvia Pimentel, Matrioska, 2021. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade – PUC/SP. Conselheira do Notório Saber do CNDM. Ministra cursos de capacitação para profissionais do direito sobre práticas da Lei Maria da Penha, perspectiva de gênero e violência contra mulheres.
[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf, p.17.
[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf, p. 113.
[3] Em novembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial. Relacionado ao Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, o documento trata sobre o racismo e propõe condições específicas de processos judiciais, considerando a raça e etnia. Além disso, o protocolo discute as interseccionalidades com questões de gênero. Para que seja aplicado da forma esperada, o CNJ definiu algumas recomendações específicas, como, por exemplo, formação continuada para todos no Poder Judiciário e monitoramento contínuo por meio de estudos analíticos sobre gênero, raça, cor e identidade de gênero. O material foi feito a muitas mãos, por magistrados, servidores da Justiça, mestres, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades da sociedade civil. Disponível em: https://www4.trf5.jus.br/comunicacao-social/anexo/112687
[4] Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/refens-da-vida-domestica/?fbclid=IwAR2KcsUSa65V4rPspc-iLFeCY_PK31B_ufV7hhGZ-TkFkUx02NcJyGfHwFo
[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2024/07/nesse-ritmo-levaremos-quase-300-anos-para-alcancar-a-igualdade-de-genero.shtml
[6] Disponível em: https://lac.unwomen.org/sites/default/files/2023-01/rumo_construcao_sistemas_integrais_cuidados.pdf
[7] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2450045&filename=PL%202762/2024. Acesso em: 09 jan 2025.
[8] Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Setembro/mulheres-ganham-20-7-menos-que-homens-em-empresas-com-mais-de-100-funcionarios-aponta-2deg-relatorio-de-transparencia-salarial/Apresentacao.MTE.17092024final.pdf
[9] Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2024/setembro/governo-federal-lanca-plano-com-79-acoes-para-promover-a-igualdade-salarial-e-laboral-entre-mulheres-e-homens/PlanoNacionaldeIgualdadeSalarialeLaboralMMulhereseMTE.pdf
[10] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/pesquisa-nacional-de-violencia-contra-a-mulher-datasenado-2023. Acesso em 25 out 2024.