Sobre golpes, intervenções e “reformas”

Coluna Valdete Souto Severo

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O golpe e as “reformas”

O golpe parlamentar havido em 2016 não foi o início do período de exceção que culmina, agora, na notícia de intervenção militar no Rio de Janeiro. O Direito do Trabalho, e bem assim as liberdades individuais, vêm sendo atacados há muito tempo. Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, traduzindo-se como um pacto de acomodação de forças opostas, em um país que pretendia sair de um período de ditadura civil-militar conciliando torturadores e torturados, o projeto social nela contido vem sofrendo ataques.
É difícil consolidar uma ordem social que se pretende justa, fraterna e solidária, quando somos o país com o maior número de trabalhadoras domésticas (com maioria absoluta de mulheres negras no exercício dessa função), conforme anunciou recente reportagem da BBC. Sequer nos indignamos suficientemente com declarações como a de Bolsonaro, quando se referiu e 2014 a uma colega parlamentar dizendo-lhe que não a estupraria porque ela “não merece” ou quando, em 2016, homenageou o comandante Ustra ao declarar seu voto em favor do impeachment.

Todo nosso ranço de cultura conservadora e fascista já estava presente quando Dilma foi afastada do poder e as “reformas” passaram a ser a principal (talvez única) preocupação de Michel Temer. Nenhum dos candidatos à Presidência nas últimas eleições teve a coragem de propor o que Temer, com o beneplácito de um Congresso extremamente conservador, conseguiu realizar. E não foi apenas o Congresso que viabilizou o desmanche, é preciso admitir. A magistratura trabalhista, ao menos através de figuras isoladas, mas que ocupavam espaços importantes no jogo político (e que posteriormente se autoentitularam “pais da reforma”), fez a sua parte para que mais de 200 alterações fossem realizadas no texto da CLT. Todas elas contrárias à proteção de quem trabalha, princípio que justifica a existência mesma de um direito do trabalho em um país capitalista de produção.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

E essa foi apenas uma das “reformas”. Há, ainda, no horizonte, a PEC 287 que pretende desfigurar o sistema de seguridade social do país, e a PEC 300, que uma vez aprovada praticamente impedirá o acesso dos trabalhadores e trabalhadoras à Justiça do Trabalho.
O caráter ideológico dessas “reformas” tem componentes complexos. Passa tanto pela crença sincera de alguns, de que as alterações irão dinamizar as relações de trabalho, gerar empregos e aumentar a competitividade; quanto pelo ódio de classe que não suporta a inclusão social (por renda e consumo, é verdade) produzida nos últimos anos no Brasil e que tem raízes em nossa herança escravista; quanto, ainda, por um propósito objetivo de destruir o mercado interno, impedindo a competição em patamares mínimos de igualdade, entre pequenos empreendedores e grandes grupos econômicos.
A crença sincera decorre de um recurso ideológico muito utilizado: apresentar falsas soluções para problemas reais. Ora, todos sabemos que há desemprego estrutural no país ou que sem sindicatos fortes não há resistência possível no embate entre capital e trabalho. A questão é que nenhum dos efeitos pretendidos foi ou será alcançado, em razão das alterações introduzidas na CLT pela Lei 13.467/2017. Não há nem haverá aumento de emprego, de competitividade ou de autonomia coletiva. Isso não ocorreu nos países que antes de nós se submeteram a essa investida liberal, e não ocorrerá aqui. A razão é simples: aumento de jornada reduz o número de trabalhadores e trabalhadoras necessários para realizar determina função e aumenta episódios de afastamento por doença e acidente de trabalho; trabalhos precários e subremunerados impedem concretamente o consumo; sindicatos acoados são o exato contrário de sindicatos fortes.
Pior do que a impossibilidade concreta de que as alterações legais resultem os objetivos declarados por seus defensores, é o fato de que a perda da capacidade de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras, que parece ser a consequência natural desse desmanche, também não serve, nem mesmo para o capital.

Estado e trabalho

O conflito entre capital e trabalho não é criado pelo Direito, quando reconhece a greve como fato jurídico relevante, estabelece direitos trabalhistas ou disciplina a atividade sindical. O Estado apenas curva-se à necessidade de regulação de fenômenos sociais e o faz com objetivos muito claros. Reconhecer o direito de greve, por exemplo, é também adaptá-lo à realidade da sociedade capitalista, impedindo-o de assumir sua verdadeira função de agente da ruptura.
Do mesmo modo, quando disciplina a atividade sindical, o Estado age para conter a tensão entre trabalhadores e tomadores de trabalho. Tensão objetiva, que decorre do fato de que o trabalho não é apenas meio de realização pessoal e social, mas também fonte de subsistência, em uma lógica social em que não há trabalho para todos e todas. O Estado se imiscui nas relações entre trabalho e capital, regulando tempo de trabalho, salário mínimo, possibilidade de organização sindical, greve, para: a) conter a crescente insatisfação dos trabalhadores e trabalhadoras que, miseráveis e marginalizados, não suportavam mais tais condições e agiam tensionando a ordem vigente; b) permitir que o sistema capitalista seguisse se desenvolvendo, na medida em que tais direitos passaram a conter o conflito e, ao mesmo tempo, garantir a possibilidade de consumo e, portanto, de circulação de riquezas, elemento básico de nossa forma de organização social; c) promover uma concorrência minimamente equilibrada entre grandes e pequenos empreendedores.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

O Direito do Trabalho serve, portanto, ao sistema do capital. Transformá-lo em direito empresarial (é isso que Lei 13.467/2017 pretende fazer) é aguçar elementos de tensão que seguem presentes, e que seguirão presentes enquanto não alterarmos nossa forma de organização social.
O resultado é a ausência de limites à concorrência, de sorte a aniquilar nossa economia interna, formada basicamente por pequenos e médios empreendedores, que são aqueles que efetivamente empregam no Brasil. É também a perda do poder de consumo, que concretamente fará (já está fazendo) com que lojas, minimercados e outros empreendimentos menores fechem suas portas. A ausência de trabalho decente, a insegurança acerca do vínculo e da remuneração, são, ainda, fatores que contribuem para o aumento da violência urbana. Ou seja, o resultado é uma sociedade pior para todos e todas.
Podemos escolher acreditar nos que insistem em nos repetir todos os dias que a economia do Brasil está melhorando e que, portanto, as “reformas” são positivas. Mas para isso, precisaremos fechar os olhos para o número cada vez maior de pessoas morando em nossas ruas, para as salas comerciais fechadas, os prédios com anúncio de venda que se multiplicam nas grandes cidades.
A intervenção militar promovida no RJ dialoga diretamente com a ideologia por trás das ‘“reformas”, pois seu principal objetivo é desvincular o aumento da violência urbana à evidente falência do Estado, pela ausência de educação, saúde, moradia e trabalho decente.
Para que não reste dúvida de que se trata de discurso que mal disfarça as causas do problema real da falência do Estado, basta perceber que o atual governo, após ter gastado mais de R$ 153 milhões nos últimos meses com propagandas em favor da “reforma” da previdência, ao verificar a impossibilidade de aprovação da PEC 287, promoveu uma intervenção militar que impede a sua votação.
Então, o que até a semana passada era indispensável para que enfrentássemos a crise econômica, condição para que o país retomasse o curso de desenvolvimento (a chamada “reforma” previdenciária) simplesmente não importa mais. Até dezembro, a proposta, em favor da qual o governo empenhou mais de R$ 153 milhões de reais dos cofres públicos de acordo com a mídia, sequer poderá ser submetida à votação.
Nada mais emblemático: todo o discurso de que a “reforma” da previdência seria a nossa única saída é deixado de lado em nome da segurança, em uma clara tentativa de reeditar experiência que já vivemos (e que bem sabemos o que resultou), fazendo crer que a miséria e a exclusão social se resolvem pelo extermínio de pretos e pobres. Novamente, utiliza-se de um problema real (a violência e a completa falência do Estado) para propor falsas soluções.
Com isso, toda a miséria e violência que o desmanche de direitos sociais concretamente está provocando passa a ser tratada como caso de polícia. E quando já estivermos convencidos de que nossa liberdade pode ser sacrificada em nome de uma segurança que também não virá, poderá ser tarde demais para reagir.

 

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Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
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