Sintomas de uma crise da dignidade humana

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Coluna Reflexões sobre Direito Público e Democracia, por Felipe Bizinoto Soares, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

     O pensamento de Thomas S. Kuhn (2003) traduz duas ideias constantes não apenas para a ciência, mas para os fenômenos que vão além – cultura, moral, emoções -, e são elas a de destruição e criação. Na ideia do teórico citado, existe um movimento de busca por um novo modelo de ciência quando aquele vigente deixa de atender certas circunstâncias fáticas que se tornam mais e mais recorrentes.

     Por ser uma ciência, o Direito, a ciência jurídica ou dos e das juristas, tem um ponto central. Dando alguns saltos cronológicos – senão de milênios -, o atual ponto cerne jurídico é a dignidade humana. Como mostram Ana Paula de Barcellos (2011, p. 125 e ss.) e Norberto Bobbio (2004, p. 46 e ss.), a dignidade humana está (ou deveria estar) aqui, lá, em todo lugar.

     A Carta das Nações Unidas (1946) expõe que os povos signatários resolvem ‘’reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano’’. A dignidade do ser humano consta como norte jurídico, p. ex., na Constituição do Brasil (1988), na Constituição da Espanha (1978), na Lei Fundamental de Bonn (1949), na Constituição de Portugal (1976), na Carta Política da China (1982) e na Constituição da Rússia (1993). Senão em todo lugar, ao menos em muitos a dignidade é vetor para atuação das atividades públicas e privadas.

Créditos: PixaBay / WilliamCho

     Os textos jurídico-políticos citados partem de um estopim histórico que envolveu o predomínio do Poder Público sobre a individualidade. São os traumas causados pelas Grandes Guerras, em particular pela 2ª Guerra Mundial, que mostra as atrocidades do Holocausto Judeu, da perseguição aos homossexuais, aos negros e a todos aqueles que não eram considerados como dotados de certa pureza atávico.

     Com os traumas que sobreveio a discussão desenvolvida por Karl Larenz (1978, p. 44-56) acerca da juridicização da ideia desenvolvida – ao menos no aspecto conceitual conhecido – aos tempos do Renascimento, com destaque para Giovanni Pico della Mirandola, e que recebeu imenso contributo de Immanuel Kant.

     A norma-princípio da dignidade da pessoa humana, como consta na Lei Fundamental brasileira, reflete duas ideias interligadas. A primeira ideia está no sentido ético, que está na visão kantiana de que a pessoa não é um meio, e sim um fim em si mesma, sendo que tal premissa parte da perspectiva de que os seres humanos são dotados de dignidade, pois são racionais, enquanto as coisas (inclusos outros animais) têm preço (KANT, 2007, p. 77-85).

     A segunda ideia está no sentido jurídico, que determina que toda pessoa nasce com dignidade, o que recebe o reconhecimento do Direito por meio da figura da esfera jurídica, um conjunto de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, complexas e elementares, patrimoniais e não-patrimoniais atribuídas a uma pessoa pelo fato dela ser pessoa (= alguém com dignidade) (LARENZ, 1978, p. 44-46). Essa acepção jurídica pode ser simplificada: o ser humano torna-se centro de imputação jurídica por nascer com dignidade.

     Essa concepção jurídica de dignidade humana como o princípio que determina o reconhecimento de posições jurídicas ao ser humano por ele ser um fim em si mesmo, e para que ele se valha do Direito para perseguir seus projetos legítimos, permeia os textos jurídicos vigentes.

     A partir das noções acima que, pelo menos, quase um século de lições e práticas jurídicas foram consolidadas.

     Como um motorista que transita com seu veículo, a chegada de um cruzamento exige atenção, pois as circunstâncias podem ou não resultar em um choque. Tal analogia se aplica ao plano jurídico pelos movimentos recentes que retomam a noção de que os animais em geral têm sentimentos, sentem e, por isso, merecem um tratamento digno.

     A Constituição de Portugal, p. ex., enuncia que ‘’Os animais que sejam dotados de uma sensibilidade física e psíquica que lhes permita   experienciar o sofrimento são seres intrinsecamente merecedores de respeito e de protecção por parte de todas as pessoas e do próprio Estado’’ (artigo 73º, 1).

     Antes de adentrar ao tema, cabe destacar que foi falado em retomada da igualdade entre humanos e outros animais. A teoria da senciência é uma inovação hodierna, mas reflete uma perspectiva dos primórdios humanos, a saber, o de que os seres humanos reconheciam como seres vivos, não como coisas, os demais animais. Yuval Noah Harari (2020, p. 73 e ss.) mostra que a partir da Revolução Agrícola, homens e mulheres tornaram-se sedentários, criaram assentamentos permanentes e subjugaram os demais animais, com os quais conviviam até então em um reconhecimento como igual dentro de uma biosfera.

     Retomando a questão de Direito, vê-se que a prática mostra uma certa acomodação dessa dignidade animal, em especial nos casos que envolvem a guarda pós-divórcio. Ocorre que uma visão mais profunda desse reconhecimento faz com que as bases kantianas se tornem questionáveis, pois todo o desenvolvimento se baseou na dignidade humana e no preço das coisas e animais não-humanos, tudo com base em uma turva divisão entre mente e corpo, bem como uma diferenciação com base na razão.

     Se a razão é o marco diferenciador entre pessoa e não-pessoa, a dúvida que deve ser respondida é se os animais não-humanos são racionais. Partindo de estudos transdisciplinares, a visão de Marilena Chauí (2000, p. 102 e ss.), todos os seres vivos são dotados de racionalidade, pois eles têm uma aptidão de organização individual e coletiva que serve de base para compreender alguns fenômenos internos e externos ao ser. A grande diferença dos humanos é a capacidade de ruptura, ou seja, de que romper com as bases racionais até então criadas, desenvolver novas bases racionais.

     A questão da ruptura, como mostra Yuval Noah Harari (2020, p. 73-77) sofre mitigação pelo fato de que o estímulo de certos seres não-humanos os leva a romper com certas bases racionais pré-constituídas.

     O que importa para os campos filosófico, jurídico e biológico é que os seres vivos são dotados de razão, o que rompe com o pressuposto essencial kantiano, afetando diretamente a contemporânea noção de dignidade, que era voltada ao ser humano.

     Alastrada a crise, a dúvida que persiste é se os muitos sistemas jurídicos vigentes, aqui incluso o brasileiro, sofre com a crise da dignidade humana. A igualdade que parte do Direito e da Filosofia poderia resultar em sérias mudanças nos hábitos alimentares, no tratamento ecológico, na atividade econômica.

     Retomando o que desenvolvido por Thomas S. Kuhn (2003), o caso pelo qual pode estar passando o paradigma da dignidade humana pode ter dois destinos: ou a destruição, com a criação de novas fundações para o prédio jurídico, ou a reformulação, mediante adequação das estruturas em voga aos demais animais.

     Se houver a adequação, muitas formas e muitos institutos jurídicos sofrerão mudanças ou até serão abolidos (vide, p. ex., o semovente, um bem móvel para o Direito civil brasileiro). Por outro lado, a destruição será, segundo conceito de Josef Alois Schumpeter (1942), uma destruição criativa, pois os desenvolvedores das novas estruturas continuarão com algumas respostas contidas no paradigma anterior, o da dignidade humana, mas novos horizontes serão criados para trazer os animais não-humanos para o centro do sistema.

     A insuficiência do personalismo ético, movimento que melhor reflete a dignidade humana, é explicitada por Antônio Junqueira de Azevedo (2008), que mostra que os rumos que devem ser adotados não são mais puramente humanos, mas sim em prol da vida como um todo, um movimento de cunho biocentrista, que começa no plano filosófico e afetam o mundo jurídico.

     O que persiste é que as pessoas sempre tentaram se diferenciar dos demais seres vivos: ora como os predestinados a serem reis e rainhas do planeta, pelas religiões, ora como os seres racionais, pelas filosofias (HARARI, 2020). Tal qual acontece no plano jurídico, será que os humanos são tão distintos dos demais seres vivos que habitam o planeta? As estruturas construídas até então foram demasiadas humanistas, mas não está na hora de trazer a perspectiva (reformadora ou rompedora) biocentrista?

 

Referências.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma ética biocêntricaRevista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo[S. l.], v. 103, p. 115-126, 2008. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67800. Acesso em: 5 dez. 2020.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. 51. ed. Porto Alegre: L&PM, 2020.

KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.

KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. 8. ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalism, socialism, and democracy. New York: Harper & Bros, 1942.

 

* Felipe Bizinoto Soares de Pádua é Articulista do Jornal Estado de Direito, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional Material e Processual, Direito Registral e Notarial, Direito Ambiental Material e Processual pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

 

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