Redes sociais e tribalização: é o fim da alteridade?

Álvaro Henrique Secretaria de Educação do DF

 

A ascensão das redes sociais e a inserção de grande parte da vida social brasileira nas plataformas digitais carrega inúmeros desafios que nossa geração tem enfrentado. Dá-se ênfase à realidade brasileira por ser realidade a qual nos circunscreve, mas também por figurar, o Brasil, segundo dados do datareportal [1], no 3o lugar do ranking de países que mais tempo despendem nas redes sociais, significando 03 horas e 37 minutos por dia, atrás apenas do Quênia e da África do Sul. São 144 milhões de pessoas com mídia social ativa no país.

Diante da intensa presença nas redes, é preciso destacar que a lógica que guia as informações e as relações nesse ambiente são moldadas por algoritmo, o que conduz a afirmar que a redes não são neutras. A propósito, a questão de neutralidade da rede (net neutrality) foi cunhado pelo pesquisador estadunidense, Tim Wu, em 2003. [2] O autor conduziu por uma abordagem predominantemente economicista e autores como Christopher Marsden, Lawrence Lessig, Barbara van Schewick, dentre outros, também desenvolveram importantes pesquisas nesse sentido. Em síntese, neutralidade significa um princípio de arquitetura, em que impõe o dever de não haver tratamento discriminatório quanto a conteúdos que trafegam de uma ponta a outra da rede (design end-to-end), tampouco de não permitir desvantagem na prestação de serviços.

A ideia de neutralidade foi debatida no Brasil em torno do Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 2014), encontrando assento dentre os princípios que disciplinam o uso da internet (art. 3o, IV).

Dentro da lógica algorítmica, ocorre o direcionamento de conteúdos específicos a perfis determinados, com aptidão de mostrar visões de mundo e posicionamentos a partir de si (de suas preferências, traços de personalidade e comportamento em rede), resultando em uma significativa fragmentação desse espaço, tornando impossível defini-lo como esfera pública, na perspectiva habermasiana. E aqui enaltece-se conteúdos de cunho social e político, capazes de direcionar a uma visão de mundo e formar opinião que tem repercussões em processos eleitorais, por exemplo, e sociais.

Essa personalização algorítmica acaba por criar “tribos” [3], a unir e identificar grupos através de suas preferências e tendências, de modo que o que passa a uni-los não é a informação como um saber, mas como identidade. Nesse processo de tribalização há uma forte experiência de identidade e pertencimento, de modo que renunciar às convicções que ali circulam e se compartilham, seria perder a própria identidade. Assim, esses grupos se isolam e selecionam informações a partir de si, numa espécie de looping-do-eu [4], no que Byun Chul Han chamou de infobolhas [5], dando um tom não de racionalidade ao que é dito e compartilhado, mas de sagrado. E é a partir desses espaços que se dá a formação da opinião, cada vez mais estreitos e compactos, numa ausência de racionalidade, que conduzirá também a uma postura niilista diante da realidade (do factual).

É pela mesma lógica de identidade criada pela tribalização que o outro, o que não compactua com tais opiniões e posicionamentos, é visto como inimigo. Aquilo que o outro externa, em termos comunicativos, também é concebido como identidade e deve, portanto, ser atacado, negado, não trazido pela via do discurso.

Aliás, a palavra discurso decorre do latim, discursus, particípio passado de discurrere. Significa “correr ao redor”, lidar com o assunto de pontos de vistas variados, de modo que dis, remete à fora, e currere, correr. Pela etimologia da palavra, a ideia é que somos desviados de nossas próprias convicções justamente pelo outro. Acontece que no ambiente de tribalização não há o outro. Portanto, não há discurso, não há ação comunicativa e, consequentemente, não há ambiente para construção democrática.

O outro desaparece e o que se verifica é uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda racionalidade comunicativa [6]. Tal estrutura, que nega a alteridade, também carecerá de empatia e promoverá bons valores apenas dentro do próprio grupo.

É uma das características morais e psicológicas do tribalismo, em que a caixa de ferramentas morais é projetada para nos ajudar a funcionar dentro de um grupo definido e quando nos sentimos pertencentes a um grupo, intuitivamente exibimos comportamentos altruístas e cooperativos. Com um grupo de estranhos, que segue a dinâmica do inimigo, inclina-se à hostilidade, por uma lógica de comportamento oposta.[7] Afinal de contas, essas boas posturas correspondem apenas a um ímpeto individual e severamente egoísta.

Hermann Hesse, no século passado, impactado com as Grandes Guerras e fortemente influenciado pela psicanálise e pela psicologia analítica, em sua magistral obra Demian, publicada em 1946, escreveu que os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais, de modo que não configuram uma comunidade, mas um rebanho. E segue apontando que esses homens estão cheios de medo e de maldade, nenhum se fia do outro, que revelarão a falência dos ideais de hoje e forçarão a derrocada de toda uma série de deuses da idade da pedra. Conclui o raciocínio do personagem (Demian) apontando que esse mundo, tal como é hoje, quer morrer, quer aniquilar-se e vai aniquilar-se. E o que será de nós em tudo isso?, pergunta o personagem Sinclair, vez que Demian responde: Talvez pereçamos com ele. (…). [8]

A aniquilação, dentro das duas realidades narradas, seria o caminho induzido pelo fim da alteridade. A saída será sempre a inclusão do outro, em especial, aqui, no discurso, componente imprescindível para sua própria configuração, acrescido do conhecimento autêntico de si, que o algoritmo também passa a moldar/forjar.

Embora haja uma predisposição humana para tais estruturas relacionais, como mesmo Hermann Hesse apontava (e não foi o único), no século XXI elas são enaltecidas por uma engenharia de algoritmos. Trata-se de arquitetura tecnológica que projeta e enaltece tal tribalização e que pode, em termos de arquitetura, projetar outra coisa. A finalidade deve ser ditada por critérios humanitários e não por estruturas supostamente neutras, carregadas de finalidades outras, sempre opacas às vistas do cotidiano.

Para não terminar em tom de “aniquilamento”, a partir de Herman Hesse, seguindo a resposta indicada de que pareceremos, o personagem também indica a possibilidade de que quando as coletividades atuais se arruinarem haverá lugar para todas essas correntes, que, naturalmente, podem variar de aspecto cada dia (…).

Individualidade verdadeira, no sentido de autêntica, acrescido de alteridade. Um caminho ainda longe, mas é preciso traça-lo. Que esse seja o cálculo.

 

[1] DATAREPORTAL. Digital. Global overview Rerport, 2024. Janeiro de 2024. Disponível em: https://datareportal.com/reports/digital-2024-global-overview-report. Acesso em 20 de junho de 2024.

[2] WU, Tim. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, p. 141, 2003. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=388863. Acesso em 20 de junho de 2024.

[3] SEEMAN, Michael. Digital Tribalism: The Real Story Aboute Fake News. Disponível em: https://www.ctrl-verlust.net/digital-tribalism-the-real-story-about-fake-news/ Acesso em 20 de junho de 2024.

[4] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S. Philipson, Petrópolis: Vozes, 2022, p. 54

[5] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S. Philipson, Petrópolis: Vozes, 2022, p. 59.

[6] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S. Philipson, Petrópolis: Vozes, 2022, p. 61.

[7] SEEMAN, Michael. Digital Tribalism: The Real Story Aboute Fake News. p. 14. Disponível em: https://www.ctrl-verlust.net/digital-tribalism-the-real-story-about-fake-news/ Acesso em 20 de junho de 2024.

[8] HESSE, Hermann. Demian. 61a ed. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2023, p. 154-155.

 

 

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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