Projeto de reforma do CC – Parte Geral
Maria Berenice Dias. Advogada. Vice Presidente Nacional do IBDFAM
A Comissão de Juristas constituída pelo Senador Rodrigo Pacheco, em 04/09/2023, para propor alterações ao Código Civil, sob a Coordenação do Ministro Luis Felipe Salomão, em 05/04/2024, aprovou Projeto de Lei a ser encaminhado ao Sendo Federal.
Na Parte Geral do Código, algumas proposições produzem reflexos significativos, tanto no âmbito do Direito das Famílias, como no das Sucessões.
Entre elas:
Das pessoas naturais
Da personalidade e da capacidade
Art. 3º, II
Foi acrescentada mais uma hipótese de incapacidade absoluta além dos menores de 16 anos:
III – Aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente.
Art. 4º inc. II e parágrafo único
Quanto a capacidade relativa, foram excluídos tanto os ébrios e os viciados em tóxicos, bem como aqueles que, sendo dada nova redação ao dispositivo a quem, por causa transitória ou permanente, não pode exprimir sua vontade. E dada nova redação ao dispositivo:
II – Aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento, que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado.
O parágrafo único, que tratava da capacidade dos indígenas, foi substituído:
As pessoas com deficiência mental ou intelectual, maiores de 18 (dezoito) anos, têm assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade.
Observação: Em boa hora foi excluído o dispositivo que tratava os indígenas como relativamente capazes. A vulnerabilidade dos povos originários merece especial proteção, o que, no entanto, não afeta sua plena capacidade.
Art. 4º-A
A deficiência física ou psíquica da pessoa, por si só, não afeta sua capacidade civil.
Art. 5º, parágrafo único, III
No elenco das causas que fazem cessar a incapacidade das pessoas entre 16 e 18 anos, além do casamento foi incluída a constituição de união estável:
III – pelo casamento ou constituição de união estável registrada na forma do art. 9º, III, desde que com a autorização dos representantes.
Observação: A referência é ao registro no Livro “E” do Cartório de Registro Civil. Ou seja, nem a escritura pública e nem a o termo declaratório da união estável firmado em cartório serve para a emancipação dos conviventes.
Com isso, acabou a Reforma por criar e hierarquizar duas categorias de união estável, em total afronta ao comando constitucional que não faz qualquer desequiparação. Assim, a união estável não formalizada, bem como a reconhecida por escritura pública ou apenas mediante termo declaratório perante o registro civil não produz qualquer efeito caso não tenha sido levada a registro no Livro “E”.
Esta diferenciação produz sérios reflexos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões.
Ausente o registro:
- 9º, § 1º: a união não registrada não produz efeitos patrimoniais perante terceiros.
- 10, IX: somente pode ser averbada a certidão de óbito se a união estável tenha sido levada a registro.
- 1.564-A: somente o registro da união estável altera o estado civil para conviventes e torna obrigatório ser declarada em todos os atos da vida civil.
- 1.647, § 3º: a exigência da autorização do convivente para a venda de bens imóveis ou para a fiança só é necessária se a união estável estiver registrada.
No entanto:
- 1.511-B: a união estável é reconhecida como família, sem qualquer exigência de registro cartorário.
- 426, § 1º: para a renúncia da condição de herdeiro não é exigido o registro da união estável.
- 1.565: no entanto, nada é exigido para o acréscimo do nome do convivente.
Art. 9º, III e § 1º
O dispositivo elenca os documentos que podem ser registrados ou averbados no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Entre eles:
III – a escritura pública de reconhecimento e de dissolução, o termo declaratório formalizado perante o oficial de registro civil, o distrato e a certificação eletrônica de união estável, firmada por maiores de dezoito anos ou por emancipados;
Com a seguinte ressalva:
- 1º Os efeitos patrimoniais da união estável não registrada no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais não podem ser opostos a terceiros, a não ser que estes tenham conhecimento formal do fato, por declaração expressa de ambos os conviventes ou daquele com quem contratarem.
Observação: Apesar de ser exigido o registro para emprestar eficácia à união estável, acaba sendo chanceladas duas exceções. Uma delas não há como saber do que se trata, o tal do “conhecimento formal”. A outra reconhece como válido qualquer documento, ou seja até o particular.
Art. 9º, VIII e § 2º
No rol dos documentos que podem ser levados a registro, se encontra:
VIII – a sentença que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção de crianças e de adolescentes e a escritura pública ou a declaração direta em cartório que reconhecer a filiação socioafetiva ou a adoção;
Mas foi previsto um retrocesso:
- 2º – O reconhecimento de filiação socioafetiva de menor de dezoito anos será necessariamente feito por sentença judicial e levado a registro, nos termos deste Código.
Observação: Este injustificável vedação, ratificada no art. 1.617-C, vai de encontra à normatização do Conselho Nacional de Justiça, que autoriza o reconhecimento extrajudicial da, a partir dos 12 anos de idade, desde que haja a concordância de todos. (CNJ – Provimento 149/2023, art. 505).
Art. 10, III
É facultada também averbação ou o registro no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais:
III – da escritura pública pela qual os cônjuges ou conviventes estabelecerem livremente sua separação consensual, ou o restabelecimento da sociedade conjugal;
Observação: Olvidou o Projeto que a separação judicial não mais existe. Foi eliminada pela EC 66/2010 e definitivamente sepultada pelo Supremo Tribunal Federal.[1] Assim, descabida a previsão.
Art. 10, IV
Um acréscimo bem-vindo às possibilidades registrais:
IV – da sentença de separação de corpos em que ficar reconhecida a separação de fato do casal
Observação: Ainda que seja um avanço que traz segurança jurídica, a previsão é limitada. Reconhecido que a separação de fato termina com os deveres mútuos e a comunicação patrimonial (art. 1.576-A), injustificável que a documentação desta realidade não possa ser levada a registro a separação de fato quando formalizada por documento particular ou escritura pública, inclusive de forma unilateral.
Art. 10, IX
Mais uma hipótese do que pode ser averbado no registro civil.
IX – da certidão de óbito dos cônjuges ou conviventes que viverem em união estável registrada.
Observação: Cabe repetir, descabido que não seja possível promover a averbação da certidão de óbito caso a união estável não tenha sido registrada. Bastaria a exigência de ser comprovada.
Art. 10 § 1º
No assento de nascimento da pessoa natural, nos termos da lei de registros públicos, será reservado espaço para averbações decorrentes de vontade expressa pelo interessado que permitam a identificação de fato peculiar de sua vida civil, sem que isto lhe altere o estado pessoal, familiar ou político;
Observação: Mais uma impropriedade. Descabido exigir o registro da família parental no registro de nascimento de seus integrantes, até porque, se um deles é ou já foi casado sua identidade é o registro do casamento e não o de seu casamento.
Dos Direitos da Personalidade
Arts. 11 a 21
Minuciosa a regulamentação dos direitos de personalidade, que mereceram vários desdobramentos.
Art. 14. § 1º
Cabe destacar a inserção de um parágrafo ao artigo que autoriza a disposição do próprio corpo.
Havendo, por escrito, disposição do próprio titular, não há necessidade de autorização familiar e, em não havendo, esta será dada conforme a ordem de sucessão legítima. É válida, com objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Comentário: Este dispositivo chega em muito boa hora, uma vez que a legislação existente se limita a exigir a concordância dos familiares (Lei 9.434/1997, art. 4º), o que em muito restringe a doação de órgãos. Em face da ausência de especificidade, a resistência de um dos membros da família impede a retirada de órgãos.
Art. 15
No desdobramento deste artigo que assegura direito de ninguém ser constrangido a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, foram inseridas várias práticas já largamente utilizadas como:
- Elaboração de diretivas antecipadas de vontade
- Indicação de pessoa para a tomada de decisões a respeito da saúde
- Admite a recusa terapêutica
- Autoriza o registro no assento de nascimento de todas estas vontades.
Art. 16, § 7º
A inclusão ao sobrenome da criança ou adolescente por força de novo casamento ou união estável de seus ascendentes só poderá ocorrer a partir dos 18 anos.
Observação: Certamente um dos grandes retrocessos perpetrados pelo Projeto. Desde o ano de 2009 a Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973, art. 57, § 8º) admite aa inclusão do nome do padrasto na certidão de nascimento do enteado. De todo descabido impedir este acréscimo antes dos 18 anos de idade. Até porque, tal inserção, não gera vínculo de parentesco e nem qualquer consequência de ordem pessoal ou patrimonial entre ambos, uma vez que o nome do padrasto não é incluído no registro.
Direito dos animais
Art. 19.
A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.
Observação: Claramente um dispositivo que nada diz, mas foi incluído em face do movimento de os animais serem reconhecidos como sujeitos de direito.
Art. 91-A.
Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
- 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais;
- 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.
Observação: Claro que a inserção deste dispositivo tem importante significado. Os animais deixaram de ser tratados como coisas. Foram reconhecidos como seres vivos sencientes, passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.
Delegada a regulamentação jurídica a lei especial, até sua edição foi prevista a aplicação subsidiária as disposições relativas aos bens, desde que não incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.
No entanto, descabido remeter a aplicação subsidiária das disposições relativas aos bens. Ainda uma coisificação dos animais de estimação. Mais coerente seria determinação a aplicação das regras que regem a convivência de crianças e adolescentes. Afinal, como reiteradamente vêm decidindo os tribunais, quando da separação dos tutores, é necessário garantir o direito de convivência com ambos e impor o compartilhamento dos custos de manutenção dos seus pets.
[1] STF – Tema 1.053: Após a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio, nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de um ato jurídico perfeito.